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Artigo
Más influências: o clima tropical e o Brasil
Por Lorelai Kury
10/07/2007

Estamos já acostumados a conviver com afirmações de que o comportamento humano é fundamentalmente regido por causas que independem de nossa vontade e decisão. Contextos históricos, estrutura mental, ambientes, instintos animais, hormônios, alimentos, DNA e diversos outros fatores são muitas vezes evocados como agentes determinantes para a ação de grupos e indivíduos. Muito antes do estruturalismo ou dos modernos inventários genéticos, nossos antepassados buscaram conhecer e sistematizar a ação de causas ocultas em nosso comportamento. Ao refletir sobre o imaginário brasileiro do século XIX a respeito dos climas e dos ambientes e sua permanência, percebemos os fios que nos conduzem a teorias passadas e a autores quase desconhecidos nos dias de hoje.

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Cena da natureza tropical, de livro de botânica do viajante von Martius, 1825
Fotos: Reprodução

Em um importante texto, Antonio Candido relata que o famoso livro de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala, de 1933, e o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936), foram recebidos pelos jovens estudantes da época como um sopro de ar fresco em um universo onde prevaleciam as interpretações deterministas, tanto climáticas quanto raciais. De fato, chama a atenção do leitor a complexidade da narrativa dos dois autores e a diversidade de causas que os ajudam a formar um panorama do desenvolvimento histórico do Brasil. Porém, o clima e o ambiente não estão totalmente ausentes de seus sistemas explicativos. A herança do século XIX se faz aí presente, transformada e adaptada aos conhecimentos sociais da década de 1930.

Freyre, por exemplo, considera a colonização portuguesa do Brasil uma façanha, pois permitiu a consolidação única e singular de uma civilização nos trópicos, fundada por europeus. O autor qualifica o clima do país como inóspito e hostil. Graças à sua plasticidade, os portugueses teriam conseguido se adaptar a essas novas condições. Os demais povos europeus teriam falhado em suas tentativas para se estabelecerem de forma permanente na região tropical. Segundo o autor, há inúmeras evidências de degeneração física e falta de energia de europeus do Norte em climas tropicais. Freyre considera o clima quente “amolecedor”, tanto no sentido físico quanto moral. É o caso das palavras que se teriam “amaciado” por influência da “boca africana” e do clima, considerado “corruptor das línguas européias, na fervura por que passaram na América tropical e subtropical”. Além disso, o sociólogo afirma que é inegável que o clima quente diminua a capacidade de trabalho e “excite aos crimes contra a pessoa”.

Poucos ecos do determinismo climático se ouvem em Raízes do Brasil. Talvez eles sejam mais perceptíveis na caracterização do ethos português e brasileiro, que em muito se assemelha a algumas considerações sobre os habitantes dos trópicos feitas em períodos anteriores. Assim, por exemplo, logo no início do famoso ensaio afirma: “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências ... o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem” (negrito meu).

Centenas de outros exemplos das primeiras décadas do século XX poderiam ser evocados, tanto em textos científicos como na ficção, que indicam a presença da tropicalidade como base de nossa sociedade, com efeitos que vão desde a preguiça até a falta de controle das paixões. Se aos poucos os elementos do imaginário brasileiro que associam os trópicos ao avesso da civilização européia vão se desfazendo ao longo do século XX, no século XIX os estudos sobre as más influências do clima encontram seu auge.

Se voltarmos os olhos para a literatura científica e médica do século XIX podemos perceber a existência de um corpo comum de crenças quanto ao que caracterizaria a vida nos trópicos. O calor e a umidade eram vistos como sendo causadores dos problemas brasileiros, com relação a nosso incipiente nível de “civilização” e como promotores de doenças. Além disso, o relaxamento das fibras do corpo, aliadas à suposta sensibilidade cutânea e pulmonar fariam com que os habitantes dos trópicos fossem indolentes e afeitos aos prazeres da carne. Em 1840, em sessão da Academia Imperial de Medicina, o Dr. De Simoni já afirmava que a “fibra orgânica” tem menor vigor e menor força de reação em um país úmido e quente. O médico Nuno de Andrade, em texto de 1876, indicava que, a fim de evitar as consequências malévolas dos climas tropicais, os imigrantes oriundos de climas frios e temperados deveriam evitar “Baco e Vênus”. Em 1890, o médico português Júlio Cardoso, ao dissertar sobre a possibilidade de adaptação dos europeus em países quentes, afirmava que a única possibilidade de se obter sucesso seria seguir os preceitos da higiene e evitar ceder aos impulsos do clima, como o hábito de comer alimentos muito picantes e temperados ou de se entregar à luxúria. Ele resume: “nas regiões quentes e úmidas, a aclimatação é a civilização”.

Os temas climáticos, tais como figuram na literatura médica do século XIX, podem ser grosso modo classificados como neo-hipocráticos, na medida em que têm por base, nem sempre de forma imediata, preceitos contidos no conjunto de textos conhecido como corpus hippocraticum, vinculados direta ou indiretamente ao grego Hipócrates (460 ? - 377 ? a. C.). Segundo o célebre médico, os costumes de um povo, seu temperamento e suas doenças mais frequentes seriam fenômenos relacionados aos climas, ao sistema alimentar, à qualidade da água ingerida, ao tipo de moradia, etc.

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Gravura de obra do médico Bernardino Antonio Gomes, que retrata um negro com boubas, 1820

Na Grécia, os textos hipocráticos podem ser inseridos num movimento de secularização do pensamento formalizado, identificável desde o século VI. Quanto ao neo-hipocratismo, apesar de ser possível vinculá-lo a tentativas de explicação do mundo de caráter empiricista, não seria correto destacá-lo de um fundo de idéias “deterministas” de caráter mágico. Lucien Febvre, em seu livro La Terre et l’évolution humaine, editado pela primeira vez em 1922, estabelece explicitamente a vinculação entre estes dois grupos de idéias. Preocupado em opor-se ao determinismo geográfico de inícios do século XX, Febvre analisa as obras de diversos autores, desde a Idade Média, de forma a enfatizar o caráter obscuro e misterioso das explicações que vinculavam os homens aos climas. Sobre os escritos de Jean Bodin, por exemplo, o autor formula a seguinte questão: “esta influência do clima não seria para ele uma influência exatamente da mesma ordem, não se exerceria ela da mesma maneira que a influência obscura, misteriosa e em parte secreta dos astros e do Zodíaco?”

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Obra médica do século XVII que relaciona corpo humano e zodíaco

As idéias de fundo hipocrático presentes no pensamento ocidental moderno são reforçadas no século XVII, principalmente na literatura médica, onde se destaca o inglês Sydenham. A partir da segunda metade do século XVIII e durante o século XIX as teorias neo-hipocráticas passam por uma fase de grande renovação, quando se aliam aos métodos empiristas e à filosofia sensualista, inspirada na obra de Condillac.

Além da medicina, a literatura política forneceu um modelo interpretativo importante quanto aos trópicos. A obra de Montesquieu constitui o modelo mais coerente e articulado de interpretação dos efeitos do “clima” sobre o caráter dos povos. Em seu famoso livro De l’esprit des lois, de 1757, o filósofo sintetizou e sistematizou diversos elementos tradicionais e modernos do determinismo climático, numa espécie de teoria das fibras. Segundo ele, o ar frio contrai as extremidades das fibras exteriores do corpo, o que as diminui e aumenta sua força e elasticidade. Isto favoreceria o retorno do sangue das extremidades para o coração. O ar quente, ao contrário, relaxa as extremidades das fibras e as alonga, diminuindo sua força e sua elasticidade. Daí, conclui que nos climas frios o coração tem mais potência. Os efeitos disto são: maior vigor, mais coragem, consciência de sua superioridade e menor desejo de vingança, maior franqueza. Além disso, o frio contrai a pele e fecha seus poros, reduzindo a sensibilidade das terminações nervosas, que ficam protegidas da ação dos objetos exteriores. O argumento prossegue:

“Nos países frios ter-se-á pouca sensibilidade para os prazeres; ela será maior nos países temperados; nos países quentes, ela será extrema. Como distinguimos os climas pelo grau da latitude, poder-se-ia distingui-los, por assim dizer, pelos graus de sensibilidade.”

Nos países quentes reinaria, assim, a busca pelo prazer sensorial e sexual, em detrimento da moral. A conclusão a que chega, estabelece um perfil dos habitantes do planeta, em consonância com o lugar em que habitam:

“Encontraremos nos climas do norte povos com poucos vícios, bastante virtudes, muita sinceridade e franqueza. Aproximemo-nos dos países do meio-dia, acreditaremos estar longe da própria moral: as paixões as mais vivas multiplicarão os crimes: cada qual buscará a tomar sobre os outros todas as vantagens que possam favorecer essas mesma paixões. Nos países temperados, encontraremos povos inconstantes em suas maneiras, nos seus vícios e virtudes; o clima não possui qualidade suficientemente determinada para fixá-los.”

As palavras de Montesquieu sintetizaram de forma tão convincente as relações entre climas e povos, que seus ecos se fazem sentir não apenas na época das Luzes. Por exemplo, os textos médicos que tratavam da aclimatação de pessoas a climas estrangeiros, ao longo de todo o século XIX, baseavam-se nas mesmas premissas do grande homme de lettres. É claro que idéias semelhantes às de Montesquieu, como já foi dito, estão presentes em diversos outros autores, inclusive no médico grego Hipócrates, sem o julgamento negativo dos climas quentes.

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Folha de rosto da tradução de Hipócrates por Littré

A tradição climática continua a fornecer padrões interpretativos para a cultura formalizada ainda no século XX. A geografia determinista de matriz alemã é bastante atuante desde o século XIX e influencia diversas obras políticas, históricas, médicas e biológicas. A marca característica dos últimos dois séculos é, no entanto, o fortalecimento paulatino das teorias raciais, em detrimento das interpretações climáticas, mesmo que estas persistam até hoje, principalmente no senso comum.
Apesar das grandes transformações ocorridas nas ciências humanas e naturais, incluindo as interpretações sobre o Brasil, o determinismo climático acompanha o pensamento ocidental dos últimos séculos como um elemento constante, enraizado nos estratos profundos de nossa cultura. Os temas hipocráticos são particularmente importantes entre nós, pois vivemos e pensamos nos trópicos, antiga “zona tórrida”, atraente e traiçoeira. As imagens do Brasil que vêm sendo construídas desde o século XVI sempre têm sido modeladas a partir de elementos da natureza, mesmo quando são elaboradas por brasileiros. O olhar sobre o Brasil parece considerar os elementos de cultura como elementos de natureza.

Lorelai Kury é pesquisadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e da UERJ. Tem experiência na área de história, com ênfase em história das ciências.