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Reportagem
Usos políticos da suposta desigualdade inscrita na natureza
Por Carolina Cantarino
10/07/2007

“Eu me pergunto se, sessenta anos depois da morte de Hitler, nós podemos pelo menos nos arriscar a perguntar qual é a diferença moral entre produzir biologicamente (breeding) uma habilidade musical e forçar uma criança a tomar aulas de música. Ou por que é aceitável treinar velozes corredores e saltadores mas não produzí-los? Eu posso pensar em algumas respostas, e elas são boas e poderão terminar por me persuadir. Mas não chegou a hora em que devemos parar de ter medo ao menos de colocar essa questão?” A possibilidade do aperfeiçoamento humano através da tecnologia genética é uma das idéias perigosas de Richard Dawkins presentes no posfácio do livro Dangerous ideas que acaba da ser publicado nos Estados Unidos.

O criador da hipótese do “gene egoísta” fala em designer babies e breeding, palavras correntes em 1904, quando um grupo de renomados cientistas norte-americanos recebeu patrocínio da Fundação Rockefeller e da Carnegie Institution para suas pesquisas. O resultado foi a proibição ou anulação de casamentos, esterilizações sem consentimento e a realização de eutanásias, práticas que se constituíram em políticas públicas adotadas por 27 estados norte-americanos em relação àqueles que, por serem considerados biologicamente inferiores, deveriam ser impedidos de ter filhos ou mesmo de viver. Considerada uma ciência prestigiosa na época, a eugenia resultou no Holocausto nazista e na morte de milhões de pessoas no mundo todo. Mais de 60 mil norte-americanos foram esterilizados. Dentre mulheres e homens negros, mexicanos, judeus, brancos pobres, epiléticos e alcóolatras, calcula-se que um terço dessas pessoas foram vítimas da eugenia mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Esse assustador movimento eugenista foi recuperado, em mais de 800 páginas, por Edwin Black, no livro A guerra contra os fracos. Para ele, não se pode esquecer desse passado no qual atrocidades foram cometidas em nome da ciência. O jornalista faz alertas em relação aos usos das descobertas recentes da genômica. A possibilidade é que, com a identificação genética, a crença que fundamenta o determinismo biológico de que as desigualdades sociais derivam de distinções herdadas e inatas se intensifique, deixando de lado os grupos sociais para tomar como alvo os indivíduos.

Bancos de dados genéticos espalham-se pelo mundo todo. A indústria de seguros, por exemplo, tem interesse especial por eles por conta da possibilidade de detectar “doenças pré-existentes” e que deverão entrar no cálculo de apólices de seguros de vida ou de saúde, privilegiando aqueles indivíduos que sejam “geneticamente” mais favorecidos. Bancos de dados genéticos de criminosos e suspeitos já são dezenas nos Estados Unidos, popularizados, inclusive, por seriados de TV como C.S.I. Os métodos utilizados nas análises criminais são os mesmos dos testes de paternidade, e ambos utilizam princípios da genética de populações. No Brasil, a polícia civil carioca já trabalha com a chamada genética forense.

Além dos bancos de dados, a identificação genética permeia atividades médicas ligadas à gestação, como o aconselhamento genético e a propagação de testes pré-natais para a detecção de doenças como as síndromes de Down e de Turner e outras possíveis alterações no feto. Levantam discussões polêmicas: o que fazer com esses diagnósticos? Embora o chamado aborto terapêutico seja ilegal no Brasil, existem evidências de que muitas mulheres interrompem a gravidez nesses casos. Nova eugenia?

Essas tecnologias estão sendo desenvolvidas em meio a um imaginário social marcado pela idéia de que características sociais e culturais também seriam hereditárias. O determinismo biológico ainda tem forte apelo social. “O desejo de ter um filho do próprio sangue” é o argumento comum dos casais que recorrem a algumas técnicas de reprodução assistida como a fertilização in vitro e a inseminação artificial em detrimento da adoção, por exemplo. Seja através da noção tradicional de parentesco como laço de sangue ou de uma noção mais científica de parentesco genético pelo DNA, muitos compartilham a crença na transmissão hereditária de qualidades não apenas físicas, mas também morais e culturais.

Diferenças ou desigualdades sexuais?

A sociobiologia de Edward O. Wilson esteve, por muito tempo, na berlinda das acusações de reducionismo biológico, sendo duramente criticada por antropólogos e biólogos renomados. Recentemente, a psicologia evolucionista recebe acusações de determinismo, principalmente, ao propor explicações biológicas para as diferenças cognitivas entre homens e mulheres e para o seu comportamento sexual.

Segundo a psicologia evolucionista, homens e mulheres escolhem os parceiros a partir de características que refletem saúde, juventude, posição social e potencial reprodutivo. “Estas preferências refletem uma longa história evolutiva que marcou nossas mentes de maneira que essas características são consideradas atrativas. Porém, atração e escolha são comportamentos diversos e a atratividade não é o único fator que leva à escolha de parceiros. Vários outros fatores devem e são considerados ao investigar as estratégias de acasalamento na espécie humana”, afirmam Maria Bernardete Cordeiro de Sousa e Maria Emília Yamamoto, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ao considerar esses outros fatores, a psicologia evolucionista não seria, segundo elas, determinista, na medida em que se acredita que as predisposições genéticas são moduladas pelo ambiente.

Para Susan Mckinnon, antropóloga da Universidade da Virgínia, a psicologia evolucionista promove uma “super-simplificação da cultura” ao naturalizar o comportamento humano nas suas explicações sobre gênero. Uma perigosa conseqüência política discutida por Mckinnon seria o risco da naturalização da desigualdade entre homens e mulheres, presente, por exemplo, no trabalho do psicólogo David M. Buss, que acredita que a preferência das mulheres por homens com recursos (o que aumentaria as chances de “sucesso reprodutivo”) explicaria a dominação masculina, ou seja, o ônus da desigualdade seria das próprias mulheres. “A afirmação de Buss de que ‘as forças que originalmente causaram a desigualdade de recursos entre os sexos, isto é, a preferência das mulheres e as estratégias competitivas dos homens, são as mesmas forças que contribuem para a manutenção das desigualdades de recursos de hoje’ (1994, p.213), sugere que essas forças produziram as mesmas estruturas por milênios e dificilmente poderiam realmente mudar. Isto tem conseqüências significativas para a política social que influencia estruturas políticas e econômicas de desigualdade e privilégio”, afirma a antropóloga, em artigo que discute as principais proposições e conceitos da psicologia evolucionista.

Nesse mesmo sentido é que as conseqüências políticas da afirmação, pela psicologia evolucionista, de que existem diferenças cognitivas inatas entre homens e mulheres, vêm sendo discutida. “Em relação às diferenças comportamentais e fisiológicas entre os sexos, acumulam-se hoje, na literatura, evidências experimentais de que os hormônios sexuais modulam circuitos responsáveis pelo comportamento e perfil de funcionamento de órgãos e sistemas que diferem entre homens e mulheres. O exemplo mais emblemático está em determinadas habilidades cognitivas como a discriminação espacial (maior nos homens) e a fluência verbal (maior em mulheres)”, lembram Cordeiro de Souza e Yamamoto. Partindo desse argumento é que muitos justificam a reduzida presença de mulheres em algumas áreas da ciência, como as exatas. Historiadoras e teóricas feministas rejeitam essa idéia e falam sobre as dificuldades (como o preconceito) enfrentadas pelas (poucas) cientistas em ingressar e ter sucesso nas carreiras acadêmicas nas áreas predominantemente masculinas.

“As habilidades diferentes no campo cognitivo são reais, mas não são determinadas por segmentos do DNA nem são definidas pela presença de hormônios diferentes. Se educarmos meninas e meninos do mesmo modo, oferecendo, por exemplo, jogos e brincadeiras a ambos os sexos indistintamente, certamente estaremos contribuindo para uma menor diferença entre eles”, acredita Ângela Maria Freire de Lima e Souza, professora do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Segundo a bióloga, áreas de pesquisa como educação e gênero analisam livros didáticos e certas práticas pedagógicas que, desde cedo, imprimem nos estudantes uma percepção de diferenças naturais entre os sexos e que podem, por exemplo, resultar em destinos profissionais diferentes para meninos e meninas, a partir de certas “inabilidades naturais” das mulheres para determinadas carreiras.

Lima e Souza através da pesquisa “Identidades de gênero e determinismo biológico: percepções de estudantes de graduação da Ufba” (2006), que abordou as diferenças entre homens e mulheres a partir da perspectiva de 80 estudantes de ambos os sexos dos cursos de ciências biológicas e pedagogia da universidade. "De um modo geral, para os depoentes, aspectos biológicos de ordem genética, hormonal ou neurológica determinam diferentes habilidades cognitivas e diferentes comportamentos sexuais e sociais, além de afetividade, entre homens e mulheres”.

Das falas das pessoas entrevistadas surgiram quatro categorias: afetividade, cognição, comportamento sexual e comportamento social. Sobre a afetividade, 77,5% dos estudantes de biologia e 75% dos estudantes de pedagogia concordam que as mulheres são mais emocionais do que os homens por causas genéticas e emocionais. Além disso, 42,5% dos estudantes de ambos os cursos concordam que homens são mais violentos que mulheres por causas hormonais, enquanto 41,25% dos estudantes discordam de tal afirmação.

Sobre cognição, 28,75% dos estudantes de biologia e 23,75% dos estudantes de pedagogia concordam que o desenvolvimento de áreas cerebrais de forma sexualmente diferenciada determina diferentes habilidades cognitivas entre homens e mulheres.

Sobre comportamento sexual, os dados apontam para uma similaridade entre respostas masculinas e femininas dos estudantes de pedagogia: 45% das mulheres e 48,5% dos homens concordam que o desejo sexual é mais intenso nos homens e que homens são polígamos (enquanto as mulheres são monogâmicas) por causas naturais. No caso dos estudantes de biologia, 28,5% das mulheres e 67,5% dos homens concordam com as mesmas afirmações.

Sobre comportamento social, 65% dos estudantes de biologia e 53% dos estudantes de pedagogia, ou seja, mais da metade dos estudantes de ambos os cursos concordam que os homens são biologicamente programados para luta pela sobrevivência enquanto as mulheres o são para preservação da espécie.

“Os dados apontam claramente uma visão determinista das diferenças entre homens e mulheres, por parte de estudantes de biologia e de pedagogia”, afirma Lima e Souza ao lembrar que, embora seja um estudo de caso, com uma amostra de estudantes de dois cursos, a pesquisa revela a permanência dos estereótipos sobre homens e mulheres. “É preocupante a prevalência de tais idéias entre estudantes universitários, teoricamente expostos a discussões mais amplas sobre os seres humanos e que reconhecem a influência marcante de fatores socioculturais na construção das identidades de gênero”.

Ângela Lima e Souza ressalta que as questões relacionadas às assimetrias de gênero demandam discussão e investigação, especialmente quando se considera que muitas das chamadas “verdades biológicas” sobre a “natureza” dos dois sexos têm sido amplamente divulgadas pelos meios de comunicação, com ênfase especial em certas características situadas no campo comportamental e cognitivo. “É muito sedutora, para alguns, a idéia de que nascemos programados, o que significaria manter indefinidamente as assimetrias entre os gêneros, posto que seriam naturais e, portanto, nem passíveis de discussão com vistas à sua superação”.