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Reportagem
Debates em torno do determinismo econômico
Por Marta Kanashiro
10/07/2007

A idéia de que uma base econômica determina todas as outras esferas da vida social é o que, de forma geral, define-se como determinismo econômico. Para muitos intelectuais tal noção está presente na teoria marxista, na medida em que se compreende que a base (o econômico ou a infra–estrutura) determina, limita e influencia a superestrurura (outras esferas como a cultura e a política). Mas o debate posterior a Karl Marx (1818–1883) é longo e vai muito além disso. Enquanto alguns intelectuais observam esse debate, outros procuram vislumbrar determinismo econômico como algo que caracteriza outras correntes de pensamento na atualidade.

De acordo com o sociólogo Ricardo Musse, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Usp, Marx foi um opositor, ao longo de sua vida e obra, da prevalência das determinações espirituais, majoritárias na filosofia e na cultura de sua época. Em contraposição a essa situação, procurou chamar a atenção para a importância da produção material como condicionante da vida humana e ressaltar a primazia do social, destacando o papel fundamental das relações econômicas. Musse rebate a idéia de que o pensamento de Marx seria presidido por uma espécie de determinismo econômico. “Este é o ponto central de um catálogo de idéias preconcebidas sobre o marxismo, que surgiu na época da Segunda Internacional, no final do século XIX. Essa corrente política adotou o marxismo como linha política e programática e foi responsável não só por sua difusão mundial, mas também por sua banalização e empobrecimento, associando-o às tendências prevalentes na época, como o positivismo e o darwinismo”, argumenta.

O sociólogo também afirma que essa noção não se sustenta mais desde os anos 1920. “Não só porque outras vertentes do marxismo procederam à crítica dessa concepção, mas porque desde então foram publicados os textos em que Marx trata diretamente dessas questões: A ideologia alemã (editada em 1926), Os manuscritos econômico–filosóficos (em 1932) e o rascunho de O capital, conhecido como Gundrisse (em 1943), são exemplos disso”, diz ele.

Para Danilo Enrico Martuscelli, cientista político e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp, relacionar a obra de Marx com determinismo econômico requer um certo cuidado e pode significar uma redução do pensamento marxista. Segundo ele, a análise mais influenciada pelo determinismo é a dos textos de “juventude”, tais como A sagrada família, Os manuscritos econômicos–filosóficos, A questão judaica, nos quais os níveis político e ideológico aparecem apenas como efeitos do econômico. Já na fase de “maturidade”, de textos como O capital, esses níveis da vida social são concebidos de modo integrado, o que significa dizer que cada nível estrutural, seja ele econômico, político ou ideológico é condição necessária para a reprodução dos demais. “Nessa perspectiva, não faz muito sentido falar em determinação em última instância, mas sim em implicação ou causação recíproca entre níveis estruturais”, esclarece ele.

Martuscelli acrescenta ainda que a ausência de uma teoria do político e do ideológico na principal obra de Marx (O capital) deve–se ao fato do autor ter se restringido a formular uma teoria regional de um dos níveis estruturais da vida social: o nível econômico do modo de produção capitalista. “Marx, portanto, não sistematizou teoricamente uma análise dos níveis político e ideológico, apenas deixou indicações em estado prático, o que talvez tenha dado margem para muitos de seus críticos, ou mesmo assimiladores de seu pensamento, a confundir ou reduzir o significado de sua obra”, conclui o pesquisador.

Por outro lado, não se pode deixar de afirmar que durante um certo tempo perpetuaram correntes teóricas que se apropriaram de uma noção reducionista da teoria marxista. Segundo Musse, o determinismo econômico sobreviveu ao fracasso da Segunda Internacional e de sua “concepção materialista de história” tornando–se um dos esteios da doutrina difundida pela Terceira Internacional. “Com a chegada dos comunistas ao poder na Rússia e na China, essa concepção transfigurou–se em ideologia de Estado. Hoje, no entanto, após a desintegração da União Soviética e a penetração do capitalismo na China, quase ninguém mais, no campo do marxismo, defende que ele seja compreendido como um determinismo econômico. No campo dos opositores do marxismo, no entanto, essa tese alastrou–se”, explica o professor da USP.

Dentre as análises que reduzem a teoria marxista a um tipo de determinismo econômico, Martuscelli identifica dois grandes grupos. No primeiro está o que ele chama de bibliografia anti–marxista. “Para esse grupo, Marx estaria superado, pois deu demasiada atenção à economia e desconsiderou o papel que cumprem as demais esferas na vida social”, afirma ele. Nesse sentido, a obra de Marx e o marxismo em geral não teriam condições de explicar fenômenos culturais, questões relacionadas ao meio ambiente, questões de gênero, ou de identidade. No segundo grupo, o pesquisador situa a bibliografia ligada à prática política e às publicações dos partidos comunistas do século XX. “Neste grupo estão aqueles que sustentam a socialização política como decorrência natural da socialização econômica, levando alguns autores e militantes a sustentar que dadas as condições de implantação do socialismo na ex–URSS, o método taylorista de organização do trabalho seria totalmente compatível com esta empreitada revolucionária. Resta saber se esse sistema corresponde à revolução socialista ou é apenas uma reprodução, em moldes diferentes, do modo capitalista de organização do trabalho social”, argumenta. Martuscelli ressalta ainda que há um vício de origem nas análises desses dois grupos: “seja porque são informadas pela idéia de unidade da obra de Marx, seja porque relacionam mecanicamente essa obra com as experiências revolucionárias e dos partidos comunistas do século XX, ou porque talvez seja mais fácil “reproduzir” as ideologias do senso comum do que criticá–las, e por que não transformá–las?”, questiona ele.

O pesquisador continua sua avaliação dizendo que se tomarmos como referência a bibliografia marxista que trata da revolução burguesa no Brasil, é possível concluir que há um predomínio de análises influenciadas por uma boa dose de determinismo econômico. “A própria periodização dessa revolução realizada pelos autores, ao identificar seu início com o período pós–1930, parece ignorar ou reduzir a transformação do trabalhador escravo em trabalhador livre e o processo de assalariamento que se seguiu, incorporando grande número de imigrantes nos finais do século XIX e idos do século XX. Ou seja, essa bibliografia ignora um elemento político de extrema importância de toda revolução burguesa: a criação jurídico–política do trabalhador livre. Essa é uma das teses centrais da análise de Marx para a caracterização da revolução burguesa”, diz ele.

Por outro lado, um certo determinismo econômico pode ser vislumbrado em outras correntes de pensamento. Martuscelli relembra a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas para incentivar a cooperação econômica entre os seus membros. A Cepal, que reunia o pensamento desenvolvimentista latino–americano e pensadores como Celso Furtado, carrega, na opinião do pesquisador, uma dose de determinismo econômico. “Tomemos como exemplo o par conceitual centro–periferia para a análise da posição desigual que os países ocupam na divisão internacional do trabalho. Se nos perguntarmos qual é o conteúdo teórico desse par, chegaremos à conclusão de que o que diferencia fundamentalmente os países no mundo é o estágio de desenvolvimento das forças produtivas”. Assim, os países centrais representariam as economias de estágio de desenvolvimento mais “avançado” em detrimento das economias periféricas que representariam um estágio mais “atrasado”. Para ele, o problema desse tipo de análise é que recorre quase que exclusivamente a uma variável econômica para se referir às desigualdades de inserção dos países na divisão internacional do trabalho. “Nessa perspectiva, os conceitos de lutas de classes, Estado de classe ou imperialismo perdem sentido, ou são bruscamente esvaziados, para entender as relações interestatais, ou ainda, a dimensão política do problema é relegada ou mesmo considerada inoperante”, afirma.

Ricardo Musse discorda que haja determinismo nas teses cepalinas. “A teoria cepalina, em seus fundamentos econômicos – diz ele – não teve sua inspiração em teses marxistas. No máximo, convergiu com a política dos partidos comunistas acerca da necessidade de enfrentar o imperialismo a partir da periferia do capitalismo. Não considero que haja determinismo nas teses cepalinas. A teoria das relações desiguais das trocas, por exemplo, ressalta a dimensão política do fenômeno econômico”, argumenta ele.

Outra análise na qual se enxerga a influência do determinismo econômico é a recente discussão, por autores marxistas e não-marxistas, sobre o processo de fusão do capital produtivo com o capital financeiro. Para Martuscelli, muitas análises desse processo de fusão parecem reduzir o aspecto político do problema, deixando de considerar que “a multifuncionalidade é uma característica própria do grande capital, que a despeito de poder investir e obter rendimentos em mais de uma atividade, realiza a escolha na conjuntura política da atividade que considera principal ou dominante”. E conclui: “se prosseguirmos com o determinismo econômico, limitaremos ou mesmo sufocaremos a contribuição que o marxismo pode dar enquanto teoria para a análise dos fenômenos sociais contemporâneos”.

O revés: a economia desvinculada da política

Ludmila Abílio, socióloga e membro do grupo temático de pesquisa “A crise do trabalho e as novas formas de geração de emprego e renda”, financiado pela Fapesp, concorda que o termo determinismo econômico, muitas vezes empobrece a profundidade da teorização marxiana, da relação intrínseca entre a economia e todas as esferas da vida social e acrescenta que discutir a noção de determinismo econômico em Marx requer que estejamos atentos à força que a idéia de determinação econômica adquiriu nos dias de hoje.

Ela identifica na atualidade um obscurecimento das questões políticas, quando a economia aparece desvinculada da política. “Hoje torna-se dominante um discurso que descola a economia de seu caráter político, tornando-a uma esfera que paira sobre ou domina a sociedade. Esse é um determinismo econômico importante de ser pensado no momento. O que vemos é um discurso sobre a economia, que a esvaziou de sentido histórico e político. Isso em nada se parece com o que constitui a tessitura do social na teoria marxiana”, diz ela.

Para exemplificar sua argumentação, a pesquisadora cita frases correntes como “a crise de tal bolsa não alterou a política de tal país”, ou o que é mais sintomático em sua opinião “a crise do governo não alterou as bolsas, o risco-país”. Para ela, o que quer que seja que hoje tente dar formas para a relação entre economia nacional e global, sinaliza economia e política como duas esferas separadas e independentes. “Nesse sentido, é fundamental compreender o total imbricamento entre economia e política na teoria marxiana para que então possamos refletir sobre a centralidade que a noção de determinação econômica adquire em nossos tempos de esvaziamento da política”, afirma a pesquisadora.

Ela explica que para Marx a política não deve ser compreendida como determinada pela economia, pois se realiza enquanto própria constituição das relações de produção. “O cerne da questão é que política e economia não podem ser pensadas separadamente. Para Marx a política é o próprio conflito de classes, e esse conflito se realiza nas relações de produção. A relação – que é sempre de dominação e luta contra a dominação – entre os que vendem sua força de trabalho e os que detêm os meios de produção é a própria política. Ela se constitui enquanto uma relação de desigualdade e de exploração”, diz Ludmila. É nesse sentido que segundo ela surge a brecha para uma interpretação do determinismo econômico, pelo fato de que a formação das classes, sua consciência, a dominância ideológica estão fundadas nas relações de produção. No entanto, ela argumenta que isso não significa que as relações de produção possam ser pensadas autonomamente, como algo que se constitui por si só e que determina as outras esferas da vida. “É esta relação dialética, na qual as classes e a consciência de classes se constituem, ao mesmo tempo em que a constituem, que nega uma lógica causal ou determinista”, afirma ela.

A pesquisadora relembra o sociólogo Francisco de Oliveira para citar uma análise que se apóia numa perspectiva fundamentalmente marxista, e traz a política para o centro do debate e das relações de produção. É este tipo de análise, em sua opinião, que pode rebater o esvaziamento político da atualidade. “O neoliberalismo parece dotar a economia de uma autonomia em relação à política. Podemos discutir se essa autonomia determinista seria uma dominação ideológica, que afirma uma suposta inevitabilidade do curso da história, da ausência de alternativas possíveis; o que podemos compreender como o cerceamento dos indivíduos enquanto sujeitos políticos, que não mais transformam seu próprio tempo. Se assim for, obviamente essa é uma ideologia poderosa, que anula potencialidades políticas” diz ela.

Ludmila, insiste que presenciamos um momento histórico em que a política está descolada da economia, no sentido de que o conflito de classes vai sendo imobilizado pela crescente perda das “forças do trabalho”. Para ela, as mutações no mundo do trabalho, que se referem não só à precarização, mas à toda uma reconfiguração do processo produtivo, tornam difícil o reconhecimento e as organizações políticas de uma classe trabalhadora.

É nesse sentido que ela identifica que as correntes que hoje se apóiam na idéia de um determinismo econômico podem ser entendidas em um sentido diametralmente oposto ao lugar que a economia tem na teoria marxiana. “O que aparece hoje como a autonomização de uma esfera econômica que poderia assim se realizar descolada dos rumos políticos pode, em substância, ser entendida como esse obscurecimento do conflito de classes. Se não sabemos mais qual o lugar do trabalhador, e até mesmo do trabalho no processo produtivo e nas formas contemporâneas da acumulação, como reconhecer o lugar e o exercício da política e de suas próprias possibilidades?”, questiona Ludmila.

A questão, ela mesma responde, é que vivemos nos últimos trinta anos um processo profundo de reconfigurações do trabalho, que tem de ser entendido no contexto da flexibilização, da reestruturação produtiva e de uma revolução tecnológica que deu novas formas e substância ao processo produtivo. Nesse contexto, todas as referências que orientavam, fosse o marxismo ou outras importantes construções teóricas de explicação do mundo social se deslocam, se desmancham, se reconfiguram. De acordo com Ludmila, o que permanece é um momento histórico em que não se consegue identificar ou reconhecer onde está o capital e as formas de acumulação. “É nesse sentido que o determinismo econômico assume a força que tem hoje – argumenta ela – e a economia torna-se uma esfera autônoma, sem sujeitos definidos, onde pairam os juros, as bolsas, os riscos-país, os índices; termos que se tornam o iceberg de processos que se tornaram obscuros, quase que ilocalizáveis ou incompreensíveis”.

A pesquisadora conclui ainda que o esvaziamento da política tem de ser entendido politicamente, pois atende a interesses de classes dominantes. O problema, segundo ela, reside em reconhecermos que classes são essas, como esses interesses se realizam e quais são as formas da realização do conflito. “A dificuldade hoje é que já não sabemos nem determinar o que compreendemos por política. É como se houvesse o mundo dos negócios e um mundo social, da violência, do desemprego, do tráfico, das favelas, das prisões lotadas e dos condomínios armados. Resgatando a crítica aos dualismos, a ciência social tem de se dedicar ao enorme exercício de entender as relações que hoje constituem esse mundo social, libertando-se da constante tendência em determinar causas e efeitos. Nesse sentido, o marxismo permanece fundamental”, conclui Ludmila.