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Artigo
Estrelas, que formam metais, que formam planetas
Por Helio J. Rocha-Pinto
10/08/2007
A diversidade de substâncias que compõe o mundo e boa parte do universo resulta das combinações de pouco menos de uma centena de elementos aos quais chamamos de átomos. O termo “átomo”, em si, pouco tem a ver com a natureza real desses elementos, pois hoje sabemos que eles não são indivisíveis como a palavra grega que lhes dá nome sugere, mas sim compostos por prótons, elétrons e nêutrons, alguns dos quais também são formados por outras partículas menores. Porém, na escala de dimensões macroscópicas em que vivemos, são os átomos que realmente desempenham o papel de blocos construtores da matéria. Nossos corpos, casas, alimentos, escrivaninhas e mesmo nosso computador são todos constituídos de incontáveis átomos. Alguns desses átomos são tão comuns na matéria que nos cerca que fazem parte do nosso cotidiano: carbono, oxigênio, enxofre, alumínio, ferro, ouro, etc. Já outros são tão raros que seus nomes causam estranheza à mera menção, como disprósio, itérbio, protactínio...

Mas, o que determina a abundância de cada espécie atômica, fazendo haver menos disprósio na Terra do que ferro ou alumínio? Antes disso, o que faz com que existam diferentes espécies de átomos no universo?

O modelo cosmológico atualmente mais aceito pela comunidade científica admite que uma “Grande Explosão” disparou a formação do universo. Essa formação aconteceu tanto em escala microscópica quanto macroscópica. A evolução macroscópica do universo corresponde à formação de grandes estruturas na distribuição da matéria luminosa e da matéria escura, tais como os aglomerados e superaglomerados de galáxias. Em escala microscópica, numa época ainda mais primordial, a Grande Explosão — seguida pela expansão do universo — levou à formação das partículas elementares, que se combinaram para formar alguns dos átomos que conhecemos, notadamente hidrogênio, deutério, hélio e lítio. Essa formação de átomos durante o início do universo é chamada de Nucleossíntese Primordial.

De acordo com cálculos que buscam reproduzir as condições do início do universo, nenhum átomo mais pesado do que o boro deve ter-se formado durante a Nucleossíntese Primordial. Isso se deve a que a formação de átomos afetou algumas propriedades globais da matéria que compunha o universo em expansão. Consideremos, por exemplo, o núcleo de um átomo de hidrogênio, que é composto por um único próton. Prótons são formados por uma combinação de três quarks. Para cada próton formado no universo, três quarks tiveram de combinar-se. Assim, antes da era de formação dos prótons, a densidade de partículas no universo era maior e, portanto, o número de colisões entre essas partículas era também muito maior. À medida que o número de prótons no universo tornou-se substancial, outros átomos mais pesados puderam-se formar, como deutério, hélio e lítio. A Nucleossíntese Primordial só foi interrompida pela própria expansão do universo, uma vez que esta acarreta a diminuição da densidade de partículas do universo, tornando menos freqüentes as colisões entre essas partículas. Uma vez que as colisões entre prótons, nêutrons e outros átomos tornaram-se mais raras, átomos muito pesados não chegaram a se formar.

Atualmente, o inventário químico do universo é bem variado, contendo 92 espécies de átomos que podem ser encontrados em forma estável na natureza. A maioria dessas espécies atômicas é composta por diversos isótopos, como o carbono, que pode ser encontrado na forma carbono 12, 13 e 14. Se não são progênie da Grande Explosão, toda essa diversidade de átomos teve de ser sintetizada após a formação do universo. Mas, como?

Foi somente na década de 50 que a nucleossíntese dos demais elementos químicos pôde ser compreendida, graças às pesquisas de Bethe, Hoyle, Gamow, Fowler, Burbidge e Cameron, entre outros, muitos dos quais laureados com o Nobel de Física. A Grande Explosão teve sucesso em compor os elementos leves porque reunia condições de densidade, temperatura e pressão favoráveis a que partículas elementares e átomos leves colidissem com energia suficiente para fundirem-se em átomos mais complexos. Para que átomos ainda mais pesados do que o boro pudessem ser formados, fornalhas igualmente densas e quentes precisavam ser consideradas. Hoje sabemos que o único local do universo onde as condições físicas permitem que a fusão nuclear prossiga além da formação do boro de forma eficiente é o interior de estrelas de grande massa.

As estrelas brilham porque consomem energia. Essa energia é de natureza termonuclear; surge da fusão de átomos no interior estelar, devido à enorme pressão e densidade a que estão submetidos. Em outras palavras, os núcleos atômicos são esmagados uns aos outros e, em função disso, combinam-se em novas espécies atômicas. Estrelas como o Sol vivem por cerca de 10 bilhões de ano, graças à constante transmutação de hidrogênio em hélio, em seu interior. Estrelas maiores do que o Sol experimentam redes de reações termonucleares ainda mais complexas, ao longo das diversas etapas de suas vidas, que resultam na paulatina sintetização dos demais elementos químicos que conhecemos. Quando essas estrelas morrem, ejetam parte de sua matéria ao meio interestelar. É neste material ejetado que vamos encontrar os elementos químicos mais pesados que não existiam no universo logo após a Grande Explosão. Uma rápida olhada na tabela periódica deixa claro que a grande maioria dos elementos químicos é mais pesada do que o boro e deve, portanto, ter sido criada no interior de estrelas. Isso inclui o ferro do nosso sangue, o oxigênio que respiramos, o silício da areia da praia, e muito mais... Essa formação de elementos químicos em estrelas é chamada de Nucleossíntese Estelar.

O resultado global da Nucleossíntese Estelar é que o gás interestelar acaba por ser enriquecido em novos elementos químicos, ao longo da vida galáctica. As primeiras estrelas que devem ter nascido no universo continham somente hidrogênio, deutério, hélio e muito, muito pouco de lítio, berílio e boro — aqueles elementos formados pela Grande Explosão. Já aquelas que nasceram após a explosão da primeira geração estelar possuíam diversos outros elementos químicos em quantidades não desprezíveis, herdados do gás enriquecido pela nucleossíntese da primeira geração. Cada geração estelar é acompanhada pelo enriquecimento do gás interestelar, do qual novas estrelas se formam.

Esse fenômeno se chama Evolução Química da Galáxia. Por meio desses processos, podemos afirmar que estrelas antigas possuem menos elementos químicos pesados do que as estrelas mais jovens, uma vez que as primeiras se formaram de um gás mais primordial do que as últimas. Grosso modo, a composição química da estrela pode ser considerada, destarte, como um indicador da idade dessa estrela.

A existência de uma relação entre idade e composição química das estrelas tem importantes conseqüências para a evolução de formas de vida complexa, uma vez que a vida, tal como a conhecemos, está fundamentada numa sofisticada teia de reações químicas que permitem a formação, metabolismo e reprodução das células. É fácil concluir que nos primórdios do universo, não havia moléculas orgânicas, devido à escassez de carbono, e, portanto, não deve ter havido vida. A vida há de ser um fenômeno que só pode manifestar-se quando o universo possuir condições de a abrigar e cultivar, isto é, quando houver elementos químicos em quantidade suficiente para formar organismos e planetas capazes de hospedar esses organismos.

Astrobiólogos ― os pesquisadores que tentam entender como a vida surge no contexto cósmico — acreditam que a vida complexa requeira a existência de um planeta sobre o qual possa evoluir. É possível que microorganismos alienígenas desenvolvam-se no espaço; mas para que seres mais complexos surjam é necessário que haja uma maior interação com o meio, tal que haja, ao mesmo tempo, desafios crescentes a serem vencidos e recursos a serem utilizados. Esses fatores só podem ser encontrados sobre a superfície de planetas cuja temperatura média permaneça relativamente amena e estável.

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Fig.1 - Probabilidade de encontrar estrelas que abrigam planetas potencialmente habitáveis em função do conteúdo metálico e da idade da estrela. O conteúdo metálico é representado por uma escala logarítmica de abundância de ferro em relação à abundância de ferro solar; quatro níveis de composição química em uma escala linear foram representados pelas linhas azuis tracejadas de modo a facilitar a comparação. Os níveis de cor no mapa indicam que para cada sistema planetário potencialmente habitável na região de cor rosa deve existir mais de 40 outros sistemas habitáveis na região de cor laranja. O Sol é representado pelo círculo com um ponto no centro, à idade de 4.5 bilhões de anos. Eventos importantes da evolução das atmosfera e biota terrestres foram sobrepostos ao mapa. Podemos perceber que o grosso de estrelas capazes de abrigar planetas potencialmente habitáveis são mais jovens do que o Sol. Se a vida nesses planetas desenvolveu-se na mesma escala que a vida na Terra, tais planetas devem conter vida principalmente microscópica.

No caso do Sistema Solar, este requisito é cumprido por basicamente dois planetas: Terra e, em menor escala, Marte. Os demais planetas são ou muito quentes ou muito frios para permitir que a química da vida possa manifestar-se em grande escala. Particularmente, cabe notar que os planetas gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) são pouco adequados a abrigar vida, uma vez que não possuem uma superfície propriamente dita ― neles, a atmosfera vai se adensando mais e mais em direção ao interior do planeta, sem que haja uma fronteira bem definida entre solo e ar. Assim, somos forçados a reconhecer que vida complexa só possa surgir em planetas terrestres, como no caso de Terra e Marte.

É nesse ponto que a astrobiologia e a Evolução Química da Galáxia confluem: para que haja vida, é preciso haver reações químicas complexas em um meio favorável (ou seja, um planeta habitável); e para que haja elementos químicos em quantidade suficiente para formar tanto os planetas terrestres, quanto os organismos vivos, é preciso que a galáxia já tenha abrigado algumas gerações estelares.

Mas qual deve ser a quantidade mínima de cada elemento químico para que a vida possa surgir? Os astrobiólogos ainda não sabem responder isso. Todavia, descobertas astronômicas recentes têm lançado luz sobre a questão.

Desde 1995, planetas têm sido encontrados em torno de outras estrelas. Hoje, conhecemos mais de 200 planetas extra-solares. Curiosamente, descobriu-se que a grande maioria desses planetas orbitam estrelas muito ricas em elementos químicos pesados. Esse fato era tão marcante, que os pesquisadores passaram a incluir de propósito estrelas muito ricas em seus programas observacionais com a expectativa de encontrar planetas em torno delas. E a previsão mostrou-se correta: as estrelas mais metálicas do que o Sol possuem de duas a três vezes mais chance de abrigar um planeta em seu entorno do que as estrelas que têm química similar a do Sol. O motivo disso parece ser simples: se há mais elementos químicos pesados no entorno da estrela, mais facilmente devem-se formar planetas.

Esse fato levou-nos a investigar quais devam ser os limites de idade e abundâncias químicas para as estrelas em torno das quais planetas capazes de abrigar vida complexa poderiam ter-se formado. Para isso, analisamos as idades e abundâncias de ferro de cerca de 550 estrelas semelhantes ao Sol. Usamos a abundância de ferro na atmosfera da estrela porque ela é facilmente mensurável e funciona como um indicador grosseiro da abundância global de elementos químicos pesados. Nossas pesquisas permitiram a criação de um mapa de probabilidade de ocorrência de planetas capazes de abrigar vida, em função da idade e abundância de ferro das estrelas em torno das quais orbitam.

De acordo com esse mapa, verificamos que a maioria desses planetas habitáveis orbitam estrelas mais jovens do que o Sol. Fortuitamente, o Sol encontra-se numa das regiões mais favoráveis à abrigar vida — embora não a mais favorável — o que, se não garante a precisão dos cálculos, ao menos não os deslegitima.

Algumas especulações tornam ainda mais interessantes esses resultados, quando sobrepomos a esse mapa alguns marcos da história da biota terrestre. Assim, se considerarmos que a evolução da vida, nesses planetas biofavoráveis, ocorre numa escala de tempo similar à verificada na Terra, podemos concluir que a maioria dos planetas habitáveis de nossa Galáxia ainda não deve ter desenvolvido vida muito complexa.

Parte desses cálculos pode ser melhor refinada, de forma a que limites mais confiáveis para a distribuição de idade de planetas biofavoráveis seja melhor conhecida. Ainda assim, nossa pesquisa sugere que o Sol seja membro de uma elite de estrelas que não apenas abrigam planetas habitáveis, mas que, de fato, acolhem, em seu entorno, vida complexa.


Hélio J. Rocha-Pinto é professor do Departamento de Astronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Observatório do Valongo.