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Reportagem
Poesia, cultura e ciência no céu indígena
Por Susana Dias
10/08/2007

Estrelas e humanos em íntima conexão. Céus povoando terras e terras povoando céus. Astros como morada de deuses, mitos e animais: Queixada do jacaré, Canoa do Sol, Sombra da Lua, O homem velho, Caminho da anta, Cobra Grande, Ema, Onça... Constelações que medem e prevêem o tempo, guiam caminhos, marcam estações do ano, regem calendários, orientam pesca, plantação, coleta e participam de rituais religiosos. Conhecimentos práticos que passam de geração a geração por relatos míticos e que garantem a sobrevivência dos povos. Assim a relação dos índios com os corpos celestes é descrita nos estudos científicos das áreas de antropologia climática, etnoastronomia e arqueoastronomia, que têm enfoques e metodologias diferentes, mas que se encontram ao considerarem a astronomia indígena uma complexa rede de conhecimentos onde não existe uma oposição entre céu e terra, entre naturezas e culturas, mas uma estreita ligação onde essas fronteiras são indecidíveis.

Mas se estes estudos dizem muito dos pesquisados – os povos indígenas – dizem também dos pesquisadores e de suas preocupações. As pesquisas sobre as relações dos índios com as estrelas, feitas a partir da análise de máscaras, panos, gravuras, peças de cerâmica, monumentos e relatos dos indígenas (geralmente pajés/xamãs e anciãos), expõem as dificuldades de entender os outros para mostrá-los ao mundo acadêmico ou ao público em geral. Os artigos científicos, com frequência, discutem como missionários, naturalistas e cientistas se aproximam e produzem sentidos sobre a astronomia indígena. Explicitam as várias versões criadas para os mitos indígenas ligados às estrelas, e, por vezes, denunciam o etnocentrismo presente em algumas versões. No artigo “Nos varadouros das representações: Redes etnográficas na Amazônia do início do século XX”, por exemplo, a antropóloga Priscila Faulhaber, do Museu Paraense Emílio Goeldi, expõe as diferentes interpretações dos etnógrafos, Tastevin, Koch-Grünberg e Stradelli, para a cobra-grande-arco-íris. Trazendo à tona aspectos da produção intelectual as influências de cada um deles, mostra não apenas os “diferentes pontos de vista”, mas, sobretudo, que embora esses etnógrafos tenham se distanciado do mundo europeu para dedicarem-se ao conhecimento das populações autóctones na Amazônia, “não deixaram de ser estrangeiros, parecendo impossível uma ruptura completa com sua condição de brancos e europeus”, conclui.

Para além do interesse pelo exótico, ressaltam-se nas pesquisas sobre astronomia indígena os desejos e expectativas de: combater as noções de selvageria, atraso cultural, misticismo e humanidade incompleta, que marcam algumas compreensões das sociedades indígenas no meio científico, e fora dele, até os dias de hoje; valorizar e despertar o interesse pelos conhecimentos e culturas indígenas; não opor a astronomia indígena à ocidental, considerando os saberes e previsões dos índios tão válidas e falíveis quanto as científicas; e contribuir com a reinvenção das identidades dos índios brasileiros. Os povos indígenas, por sua vez, percebendo a íntima conexão entre a divulgação de seus conhecimentos e as políticas de demarcação de terras, educação e saúde, têm cada vez mais participado (e exigido participação) na produção de exposições e mesmo constituição de museus, planetários e projetos de pesquisa onde são investigados e expostos conhecimentos, pertences, valores e culturas, seus e de seus antepassados.

A invenção do céu: astronomia indígena e ocidental

Há um certo consenso entre pesquisadores de diversas áreas de que os conhecimento indígenas sobre os céus são invenções, construções culturais que expressam valores, crenças e costumes próprios de cada povo. Suas descrições parecem não deixar margem para dúvidas.

Fonte: Artigo de Priscila FaulhaberPara os Ticuna, os corpos celestes, como a Lua e o Sol, são seres vivos e interferem no destino humano. Os mitos a eles relacionados integram a cosmovisão que explica a origem e o devir do Universo. Dizem respeito a fatos da vida cotidiana relacionados com a cultura material e as estratégias de sobrevivência. Faulhaber conta em artigo – “As estrelas eram terrenas: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna” – que a bibliografia já indicava que Lua, para os Ticuna, era um jovem responsável pela menstruação das mulheres. Desaparecer do céu quer dizer que desceu à Terra para abusar das mulheres jovens. As estrelas Woramacuri seriam o resultado de transgressões sociais, relacionadas à união incestuosa dos filhos de Lua, varões chamados de Woramacüri e Womatchi (termo que significa "carne torcida"). Durante uma oficina a antropóloga analisou, junto com índios Ticuna do alto do Solimões, um pano - coletado em 1941 por Curt Nimuendaju para o Museu Goedi - de antepassados e os Ticuna introduziram um terceiro irmão que seria filho da Lua, denominado Wora (em português "ondeante", "tremulante"). A esses seres corresponderiam os termos Emarüta e Emacüari (primo maior e primo menor). Como castigo para a vergonha social causada pelo incesto, as divindades isolaram os irmãos no mundo de cima, onde devem permanecer vigiando para que as transgressões não voltem a acontecer.

O homem velho. Uma mulher apaixona-se perdidamente pelo irmão de seu marido. Num ato violento mata o marido e arranca-lhe a perna. Os deuses, com pena do pobre homem, transformam o marido em uma constelação e ficam com sua perna. O Homem Velho é uma constelação que indica para os índios do sul do Brasil o início do verão, enquanto que para os índios do norte a chegada das chuvas, garante Germano Afonso, estudioso de arqueoastronomia da Universidade Federal do Paraná, que se dedica a astronomia indígena. Em "As constelações indígenas brasileiras", Afonso faz também descrições de outras constelações: Ema, Anta do Norte e Veado.

Fonte: Artigo de Germano Afonso

Fonte: Artigo de Germano Afonso


Diferente dos conhecimentos indígenas sobre os astros, os conhecimentos científicos são considerados, por vezes, como revelações da natureza dos céus, pois baseados em conhecimentos físicos, matemáticos, mediados por instrumentos (lunetas, telescópios), como analisa em artigo a equipe Planetário do Pará, Érika Akel Fares, Karla Pessoa Martins, Lidiane Maciel Araujo e Michel Sauma Filho. Entram em jogo aqui a velhas e conhecidas oposições entre objetividade e subjetividade, mundo natural e produções humanas, ciências e culturas.

A antropologia, não apenas nos estudos sobre astronomia indígena, é uma das áreas que tem contribuído para se pensar fora da oposição entre ciências e culturas, tomando as ciências também como produções culturais, como explicita Faulhaber em entrevista à ComCiência: “A preocupação com a previsão do tempo se registra tanto na nossa cultura como em muitas culturas indígenas. O curioso é que é próprio das previsões que elas sempre podem falhar. Ou seja, pode-se dizer que tanto as previsões calculadas com base na lógica matemática e em instrumentos técnico-científicos quanto as previsões baseadas no costume e no conhecimento prático são uma forma de fazer prognósticos, mas que não são necessariamente acertados”.

Para Faulhaber, o que interessa do ponto de vista antropológico não é tanto se os prognósticos indígenas têm ou não um fundo de verdade, mas como as preocupações dos povos indígenas, diante de fenômenos meteorológicos, constituem um modo de pensar, dentro de uma lógica própria, a possibilidade de controle humano sobre as transformações ambientais.

Museus e planetários: memória do futuro

Há uma aposta de alguns pesquisadores de que as exposições dos conhecimentos indígenas sobre os céus em museus e planetários possam despertar na população o reconhecimento da astronomia indígena como um conhecimento tão válido e complexo quanto a astronomia ocidental; reparar a história desses povos marcada por políticas de extermínio; contribuir para a reinvenção das identidades dos povos indígenas; bem como construir uma memória do futuro dessas populações e de seus conhecimentos.

Nessa direção, José Bessa Freire explora em “A descoberta do museu pelos índios”, a exposição itinerante “Ciência Kayapó - Alternativas contra a destruição” organizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi em 1992. O “Paço Imperial”, onde aconteceu a exposição, foi o lugar de onde emanaram políticas de extermínio dos grupos indígenas. A exposição resultou de pesquisas de mais de 15 anos e teve a participação dos Kayapó. Na fala da curadora, citada por Freire, a expressão de sua esperança no reconhecimento do valor dos saberes indígenas: "Se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma “ponte ideológica” entre culturas, que poderia permitir a participação de povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.

Freire comenta ainda de outras cinco experiências: o Museu Magüta, o Museu Amazônico da Universidade do Amazonas, o Museu do Descobrimento e o Museu de Brasília. Dá destaque a casos em que os índios solicitaram a devolução das peças expostas nos museus. Como quando os índios Krahô exigiram – e obtiveram – do Museu Paulista da USP a devolução da machadinha cerimonial Kyiré, levada da tribo na década de 40 pelo antropólogo Harald Schultz, e quando aconteceu a exposição “Memórias da Amazônia: Expressões de Identidade e Afirmação Étnica”, realizada pelo Museu Amazônico da Universidade do Amazonas, e a COIAB solicitou – e não obteve – ao governo português as peças produzidas no século XVIII que haviam sido levadas entre 1783 e 1792 pelo cientista Alexandre Rodrigues Ferreira.

Entre os seis museus citados, Freire apresenta críticas severas ao Museu do Descobrimento, na terra dos Pataxó na Bahia, por não valorizar os conhecimentos indígenas, taxá-los de primitivos, por não seguirem os padrões ocidentais, e não permitir a participação dos Pataxó nas decisões e organização do espaço. A história do Museu Magüta, localizado na cidade Benjamin Constant, próxima à fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru, é atravessada pela intensa relação entre museu e terra e explicita como não apenas cientistas descobriram o potencial dos museus indígenas, mas os próprios índios, madeireiros e empreendedores. O museu se constituiu pela necessidade do povo Ticuna de tornar evidente uma história documental de ocupação desse território, a resistência de uma organização social forte e de formas culturais próprias. Para Freire, os museus tornaram-se não apenas espaços de exposição, mas de disputa pela memória, ou seja, pelo futuro dessas populações. Como disse o Ticuna Liverino Otávio, no Boletim do Museu Magüta (mai/out de 1993), “o Museu Magüta serve para guardar nosso futuro”.

O foco do artigo de Freire é na descoberta dos museus pelos povos indígenas. Segundo ele, o conceito de museu, que vem sendo refinado na última década pelos museólogos, tem sido cada vez mais discutido pelos índios. Quase todos identificam a instituição como um lugar de conhecimento, de pesquisa, de estudo, de guardiã da memória, “mas não aceitam mais passivamente que os museus construídos por não-índios tenham o monopólio do discurso histórico que lhes diz respeito. Querem deixar de ser apenas um objeto musealizável e serem também – eles próprios – agentes organizadores de sua memória”, diz.

Leia mais:

Interrogando as teorias sobre o arco-íris.

Priscila Faulhaber. História da Ciência, Saúde.Vol.14 nº. 2 - Abril - Junho 2007, Pág. 503 a 527.