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Editorial
Essência e Evanescência
Por Carlos Vogt
10/09/2007
Quando, os olhos cerrados, numa noite de outono,
respiro fundo o cheiro ardente dos teus seios cheirosos,
descortino ao longe litorais radiosos
que seduzem o brilho de um sol monótono.

Uma ilha preguiçosa onde a natureza em sono
de estranhas árvores e frutos saborosos
abriga homens fortes, esguios, vigorosos,
e mulheres de olhar sincero, desafiante e franco.

Guiado por teu perfume que ao perseguir alastro,
vejo um porto pleno de ondulações de mastros
ainda exaustos da confrontação marinha,

enquanto o aroma dos verdes tamarineiros,
que no ar circula, invade a vida minha,
mistura-se na alma com a voz dos marinheiros.

Charles Baudelaire (tradução: Carlos Vogt)


Por todos os estudos conhecidos, pode-se dizer que o olfato é o mais direto dos nossos sentidos, tem efeito imediato, provocando, inevitavelmente, alguma sensação agradável ou desagradável que é instantaneamente capturada pela mente transformando-se em registro, ou resgatando memórias olfativas e afetivas. Não existe falta de memória para o olfato. Pesquisadores da área de medicina trabalham com êxito, usando olfatoterapia, com vítimas de doenças e acidentes que tenham afetado de alguma forma o funcionamento do cérebro e relatam resultados espetaculares. A chamada memória olfativa, por resgatar emoções e pela capacidade de armazenar milhares de cheiros diferentes, interfere fortemente nos processos de recuperação de pacientes. As nossas diferentes atividades, ao longo da vida, são certamente mais produtivas e, principalmente, mais prazerosas pela ação do olfato. Diz-se que o aroma é alma da comida, por exemplo. Todos esses fatores, aliados ao fantástico senso de oportunidade que observamos nos seres humanos, faz girar a rica roda do mercado de aromas e perfumes, movimentando paixões e milhões.

Tanto poder de um lado, tanta fugacidade de outro. Uma das características do perfume – segundo a etimologia, o perfume dissipa-se em fumaça – é que se esvaece rapidamente, evapora-se, é fugaz, perde-se facilmente, não pode ser acumulado. Quando sentimos um odor muito bom, nos apegamos àquele momento num movimento de, quem sabe instintivamente, procurar retê-lo, conservá-lo, guardá-lo. Parece-se, assim, com a vida, intensa, forte, atraente, repulsiva às vezes e, principalmente, rápida demais para o tanto que gostaríamos de viver.

Os aromas estão ligados à nossa história desde a mais remota infância, o cheiro de mãe, depois os cheiros da casa, da rua, da cidade, de outras cidades, de outras casas, do outro, estes últimos, em princípio estranhos, tornando-se tão familiares como os primeiros.

São várias as pesquisas, com o objetivo de controlar comportamentos animais e pragas agrícolas, que estudam um hormônio chamado feromônio e que é produzido pelos animais em quantidades altas quando estão prontos para o acasalamento, o que libera determinado odor característico. Com os seres humanos isso também acontece, porém de maneira mais sutil, mas certamente só é possível ficarmos apaixonados por alguém de quem gostamos do cheiro, seja odor natural ou produzido artificialmente. Esse é apenas um exemplo de quão fundamental pode ser o perfume de algo ou alguém.

Poetas, cientistas, homens de negócio, literatos, psicanalistas, médicos, moralistas, padres e pecadores, reis, rainhas, prostitutas, todos, de alguma maneira, usamos o poderoso sentido do olfato nos jogos da vida, seja nas relações pessoais, seja nas profissionais, mesmo que isso passe, muitas vezes, despercebido para os próprios protagonistas.

O perfume criado de forma artificial pelo homem, além dos aromas produzidos naturalmente pela natureza e pelo corpo, existe como produto desde tempos remotos quando os homens invocavam os deuses por meio da fumaça da queima de ervas, mas já estabelecendo um critério que tinha relação com o aroma que liberavam ao serem queimadas. Foi nesse contexto que surgiu a palavra perfume, em latim per fumum, que significa: através da fumaça. Os livros religiosos são cheios de referências à fumaça e ao perfume dos rituais de purificação e de glorificação que, mesmo na atualidade, conservam a relação com a fumaça e o aroma, por exemplo o incenso nas missas católicas mais tradicionais ou acesos todo o tempo nos templos budistas.

Além dos rituais religiosos e das sensações de conforto ou desconforto, os homens sempre se importaram, de alguma maneira, com seus odores e com os dos outros, seja para escolher a comida, para escolher o parceiro, para disfarçar ou realçar odores naturais, para se defender, para atrair e também para obter sustento com um negócio de produção de perfumes. Originalmente os perfumes eram produzidos a partir de produtos naturais seja de origem animal ou vegetal, chegando aos produtos totalmente sintéticos e à sofisticação de perfumistas que com o tempo transformaram-se, de místicos feiticeiros criadores de cheiros, ou químicos amadores de quintal, em profissionais altamente remunerados que trabalham durante anos em longos processos de criação de perfumes famosos.

No século X, o filósofo e médico árabe Avicena, um dos nomes de maior importância para a medicina até os dias de hoje, descobriu o processo de destilar o óleo de flores que, diluído em água torna-se o primeiro perfume moderno. Também por essa altura, inventa-se o álcool que revolucionou essa indústria. O primeiro perfume com álcool, o Água da Hungria, surge em 1370 e deve seu nome à rainha da Hungria. No final do século XIX, com o desenvolvimento da indústria química, multiplicam-se as fragrâncias e começam a aparecer os aromas sintéticos que simulam os naturais e permitem baratear o produto tornando-o acessível cada vez mais.

Ao longo da história os perfumes também foram largamente utilizados equivocadamente, como elementos terapêuticos, quando se acreditava que o cheiro de determinadas substâncias, como o vinagre por exemplo, afastava o risco de contrair doenças como a peste, épocas em que mesmo os médicos, por desconhecimento da importância da higiene, recomendavam que as pessoas utilizassem alguma fragrância no corpo ou nos ambientes que proporcionassem limpeza, quando na verdade apenas disfarçavam odores de sujeira ou de doenças. Isso tudo mudou totalmente em termos de conhecimento, mas mesmo hoje em dia todos nós gostamos de um “cheirinho de limpeza” prometido, e cumprido, por produtos de higiene corporal ou ambiental que investem nos odores que remetem à limpeza e ao frescor. São raros os produtos sem perfume, infelizmente para os alérgicos que são obrigados a procurar muito mais.

Durante muito tempo os perfumes substituiram os banhos, não tanto de simples mortais que não tinham acesso aos produtos e usavam menos roupas, mas de nobres, reis e rainhas dos velhos continentes que podiam obter facilmente os preciosos frascos com essas fragrâncias milagrosas, usando-as nos jogos de poder e sedução das cortes. Mas é na Europa peninsular, particularmente França e Itália, e em alguns países da Ásia oriental que a indústria perfumista floresceu ao longo da história. Catarina de Medici (1519-1589) que transformou Paris na capital do perfume – o que permanece até hoje – quando chegou à França para casar-se com Henrique II, trouxe de Florença, seu perfumista particular. Também são famosos os “perfumes do Oriente” com todo seu exotismo e mistério tão cantados em versos.

Já nos novos continentes, a indústria do perfume, em grande parte, ainda é tímida. Até hoje não se encontra perfume da indústria nacional com a qualidade de um perfume francês ou italiano. A globalização promete acabar com esse problema, pena que não prometa também acabar com a pobreza. Dizem as “más línguas” que os protestantes na América do Norte e os jesuítas na América do Sul, pelo horror da sedução, cortaram qualquer iniciativa de surgimento de indústria perfumista. A relação entre aroma agradável e apelo sensual vem de épocas remotas e os religiosos sempre tiveram que inventar mecanismos de combate ao “cheiro do pecado”. É possível que, como afirmam alguns historiadores, para driblar os religiosos os perfumes tenham aparecido sob o singelo nome de “águas” o que remete a medicamento e purificação, algumas prometendo acalmar humores e furores. As propriedades dos perfumes, durante muito tempo, tiveram que ser atestadas por médicos para serem aprovadas pelos teólogos de plantão.

O Brasil, como outros países das Américas e da África, foi sistematicamente saqueado em suas riquezas vegetais, animais e minerais. Sempre houve a retirada, muitas vezes criminosa, de matéria prima inclusive para elaboração de perfumes. O caso mais escandaloso, em vários sentidos, é do pau-rosa, nativo da região Norte e matéria prima para o mais famoso perfume da história. É famoso pelo nome, porque associado a uma marca de alta costura muito conhecida mundialmente – já que a parceria entre moda e perfume é altamente lucrativa – e pela declaração do maior ícone sexual da história, Marilyn Monroe, nos anos 1950, de que dormia usando apenas gotas de Chanel nº 5, uma frase que transtornou corações, provocou ereções e colaborou para tornar a atriz, que teve vida curta e intensa, e morte trágica, num nome definitivo na história do cinema e num rosto quase tão conhecido e vendido como Che Guevara.
 
Atualmente, pesquisadores brasileiros, apoiados por políticas governamentais de incentivo e de sustentabilidade, promovem ações de preservação, cultivo e venda do pau-rosa, envolvendo comunidades locais. Muitas outras pesquisas são realizadas com a enorme biodiversidade existente na busca de matéria prima para perfumes. São centenas de espécies utilizadas popularmente para diversos fins e sobre as quais ainda não se tem conhecimento científico suficiente.

O olfato, apesar de tanta importância, ainda é pouco estudado pela ciência que privilegia os sentidos da audição e da visão nas pesquisas e durante muito tempo tratou o olfato mais como um instinto do que um componente importante do processo de conhecimento. Mais recentemente esse quadro vem se alterando e aumentando o número de pesquisas e de obras sobre o assunto.

Na literatura, o olfato e o perfume, os aromas, estão presentes nas obras de autores de diferentes épocas, nacionalidades e importância, como inspiração, motivação ou apenas compondo cenários. Inúmeros poetas e literatos, como Baudelaire, para citar um que é referência, perpassam sua obras pelas paixões olfativas. Há uma obra recente, perturbadora e interessante porque totalmente focada nessa relação olfato/perfume. Trata-se do livro O perfume (Das parfum - Die geschichte eines mörders), do escritor alemão Patrick Süskind, publicado pela primeira vez em 1985, que vendeu 15 milhões de exemplares em quarenta línguas, e que foi transformado em filme, em 2006, com direção de Tom Tykwer. O protagonista nasce na França do século XVIII em meio à pobreza, sujeira e horror. Ele não tem odor nenhum, o que assusta a todos com quem vive no orfanato, mas que permite que ele passe totalmente despercebido. Por outro lado ele tem um olfato extremamente desenvolvido, o que é uma fonte de alegria e o que lhe permite reconhecer os odores mais imperceptíveis podendo, então, com o tempo e mesmo sem experiência, confeccionar perfumes de alta qualidade. Acaba por matar uma jovem para apoderar-se de seu odor e, depois dela, muitas outras em busca do perfume perfeito.

Felizmente o horror é apenas uma das facetas da literatura e do cinema. Em 1974 Vittorio Gassman ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes com o filme Perfume de mulher (Profumo di donna), de Dino Risi, no qual interpretava um velho militar reformado, cego, que contrata um ajudante para um périplo com um final que só ele conhecia e, no qual, com seu olfato apurado e experimentado, identificava mulheres atraentes de quem se aproximava pelo perfume que estavam usando. Em 1992, Al Pacino voltou a emocionar as platéias dos cinemas, e ganhou o Oscar de melhor ator, com a refilmagem da história (Scent of a woman). São filmes belíssimos e emocionantes, onde o perfume é personagem importante. Há muitos outros romances e filmes onde isso acontece, como nos eletrizantes filmes policiais quando um perfume pode ser a pista principal, ou quando revela a presença de alguém, quando um personagem se recorda do grande amor ou do grande inimigo, enfim, temperando a história.

Os temperos, inclusive, são um capítulo à parte na história dos perfumes. As ervas não servem somente para fazer chás e dar sabor aos alimentos. Elas são todas donas de inúmeros odores e, sendo o olfato responsável por grande parte de percepção gustativa, têm papel fundamental no apetite e no prazer de comer.

Um perfume pode revelar traços de personalidade e também intenções. Interfere no teatro da vida, pois certamente influencia o estado de espírito das pessoas. Ao penetrarem pelas narinas, os aromas carregam bagagens cheias de mensagens que provocam sensações de euforia, tristeza, alegria, relaxamento, repulsa, fome, abalando tranqüilidades e impulsionando movimentos. A relação entre a capacidade olfativa e os odores do mundo, em particular os perfumes marcantes, produzem um processo fascinante, cuja essência e evanescência este número da revista procura um pouco captar.