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Reportagem
O sonho de um mundo sem cheiros ruins
Por Patrícia Mariuzzo
10/09/2007
No romance Germinal, de Émile Zola, a mulher do grande patrão quer abrir as janelas depois da visita de uma delegação de operários para esvaziar a sala dos odores da classe operária. Em Quincas Borba, Machado de Assis descreve com detalhes o cuidado do personagem Cristiano Palha com sua aparência. Ele ensaboa e esfrega o rosto, lava o colo e a cabeça em uma fina bacia de prata para depois enxugar-se, escovar-se e perfumar-se. Duas atitudes aparentemente sem importância são pistas fundamentais para entender grandes eventos da história contemporânea como a ascensão do narcisismo e o recolhimento para o espaço privado. A maneira de lidar com os cheiros de si mesmo e dos outros está impregnada de valores e, por isso, pode ser um dos meios para entender a criação e conservação de vínculos sociais. Somente uma história dos odores pode responder por que nos tornamos tão intolerantes a tudo que possa romper o silêncio olfativo do nosso meio ambiente.

Até o século XIX as emanações resultantes da atividade interna do corpo foram relativamente toleradas. O rei Henrique IV, à frente do poder na França no final do século XVII, foi pego urinando as paredes de seus próprios aposentos. Luís XIV, que governou entre 1661 e 1715, trocava periodicamente de residência para que os castelos Versalhes, Louvre e Fontainebleau pudessem ser lavados e reocupados, tal a quantidade de materiais fecais e urina em seu interior. Inconcebíveis aos olfatos de hoje, essas práticas se justificam porque havia uma crença entre os sábios do Ocidente no valor terapêutico do excremento. No livro Saberes e Odores (1987), o historiador francês Alain Corbin explica que em Madri, por exemplo, jogavam-se matérias fecais na rua. Os médicos achavam que o fedor espalhado protegia a saúde pública e afastava a peste. Sob Carlos II, as autoridades mandaram abrir as fossas sépticas da cidade de Londres para combater a peste com o mau cheiro. Alguns médicos aprovavam a prática de mergulhar partes do corpo nos reservatórios de esgoto para curar dores, reumatismos ou outras enfermidades resistentes a outros recursos. Os fedores excrementícios poderiam até ser incômodos, mas não insalubres.

A partir do século XVIII, entretanto, ocorre uma mudança na maneira de perceber e analisar os odores. Num movimento de acentuação da sensibilidade, inicia-se um processo de desodorização que transforma cheiros antes tolerados, em insuportáveis. Ainda segundo Corbin, o olfato informa sobre um grande sonho de desinfecção que atinge seu apogeu no século XIX. O sentido olfativo cria também novas intolerâncias. A burguesia trata de purificar o hálito da casa e tenta estar longe dos odores do povo. Por isso é conveniente arejar a sala após a permanência prolongada dos empregadoa ou após a passagem da delegação da classe operária. “O olfato, desde logo, precisa reforçar, com uma perspicácia nova, a complicação das hierarquias percebidas. Enojado pelas secreções da miséria, o burguês se torna atento a essas sutis mensagens corporais”, explica o historiador. Como demonstra Cristiano Palha, o personagem machadiano, as elites esforçam-se em não deixar seu odor transparecer. A desodorização burguesa supõe riqueza, ela atesta a inutilidade do recurso ao trabalho manual. O pobre, ao contrário, está completamente impregnado de cheiros. “Esse processo de distinção social pela desodorização é essencial para entender a sociedade do século XIX”, afirma Corbin.

Mudança de hábitos no Brasil

No Brasil, a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro, na primeira década do século XIX, disparou um processo de remodelamento de velhos hábitos coloniais. “A pressão exercida pelo novo contingente populacional, aliadas às suas exigências de conforto em níveis minimamente compatíveis com os do Ocidente europeu, agravaram ainda mais os problemas da cidade suja e doente, exigindo soluções em curto prazo”, explica Tania Andrade Lima, professora do Departamento de Arqueologia e Museologia da Universidade Estácio de Sá.

Assim, foi se instalando, gradativamente, uma ideologia de higienização que provocou consideráveis mudanças na sensibilidade olfativa da época, o que forçou uma completa domesticação dos odores e produtos decorrentes dos processos metabólicos. “Surgiu uma nova etiqueta corporal, cuja palavra de ordem passou a ser a discrição. Maus hálitos, maus cheiros, suores fétidos, ruídos intempestivos e os processos de excreção, entre outros, foram progressivamente submetidos a controles cada vez mais rígidos, filtrados pela vigilância e pela disciplina”, explica Andrade Lima.

Segundo esta pesquisadora - que realizou escavações arqueológicas em lixeiras domésticas de residências do século XIX da cidade do Rio de Janeiro - para disfarçar os odores aumentou-se consideravelmente o consumo de uma ampla gama de produtos. A franca disseminação de retretes (cadeiras com um orifício no assento, encoberto por uma tampa) e criados-mudos com um compartimento inferior reservado à guarda dos urinóis, nos ambientes domésticos da nossa burguesia, atesta a progressiva privatização e higienização desses espaços. Procurava-se atenuar o mau cheiro no interior dos aposentos por meio do seu confinamento às áreas íntimas da casa e também do recurso das tampas e portinholas. Pouco a pouco as camadas mais favorecidas se afastavam do contato direto com o conteúdo dos urinóis. O consumo desses produtos também traz incrementos à sua fabricação e a busca de novos materiais. Os primeiros urinóis eram fabricados com as mais finas porcelanas, destinados, portanto, às classes mais abastadas. Entretanto, com a popularização do uso da faiança inglesa (espécie cerâmica mais fina que a comum, porém mais rústica que a porcelana branca usada em louças) eles também puderam se expandir pelas classes populares, a partir da segunda metade do século XIX.

A erradicação de costumes antigos e a introdução de novas práticas é parte também de um projeto das grandes nações industrializadas – em especial a Inglaterra – que necessitavam ampliar os mercados consumidores para seus produtos. Com isso incentivavam a implantação de uma nova mentalidade nas colônias. Para consolidação de uma sociedade moderna, comprometida principalmente com o liberalismo europeu, a medicina adquire papel fundamental. Conforme explica Corbin, os médicos pensam então que as doenças são transmitidas, não pelo contágio, mas pela infecção, sobretudo da água e do ar. Na perspectiva dessa medicina infeccionista, o olfato serve para designar os perigos: perigo da fermentação dos alimentos, da podridão das carnes, do confronto com o outro, que, justamente, cheira mal.

É um tipo de medicina voltada para a prevenção da doença e não apenas para a cura. E uma das maneiras de prevenir doenças era manter o ar saudável, limpo, livre de maus odores. A remoção do lixo para áreas periféricas, a transferência dos cemitérios e seus miasmas para longe das cidades, inspeção de feiras, abatedouros, reformulação da arquitetura colonial com seus aposentos escuros e mal ventilados, são algumas medidas adotadas para sanear a cidade. “Nesse novo enquadramento a higiene teve papel fundamental, já que o progresso e a modernização eram incompatíveis com as pilhas de cadáveres resultantes das epidemias, com as vielas imundas e os corpos sujos e doentes da população”, explica Andrade Lima.

A estratégia do disfarce

Na nova ordem social que surgia e que buscava se espelhar na burguesia européia, inúmeros procedimentos foram incorporados à vida rotineira, buscando circunscrever o corpo e a cidade em estritas regras de higiene. Na opinião de Andrade Lima, entretanto, as soluções buscavam, sobretudo, atacar os problemas em sua aparência e não em sua essência. Segundo ela as pessoas ainda viviam em casas recendendo a urina e excrementos, preparavam os alimentos em cozinhas imundas para depois servi-los nas mais finas louças e cristais.

Exemplo disso foi o modo como se lidou com os pobres, varrendo-os das vistas por meio da remoção e demolição dos cortiços e sua imundície. “Era impossível negar os humores e odores daqueles corpos. O que fazer? Disfarçá-los, sumir com eles. Era impossível acabar com os miseráveis. A saída era tirá-los das vistas, tanto quanto possível”, conta Andrade Lima. Era uma sociedade que não podia tolerar o descontrole, a rebeldia, o desequilíbrio do corpo social.

O controle era feito, entretanto, por meio de estratégias superficiais de ocultação. O criado-mudo e as retretes eram parte do investimento numa espécie de estética da excreção, que tiravam da vista o que não devia mais ser visto, mas não disfarçavam os odores. Conforme explica Andrade Lima, o que antes era feito sem controle, continuou a ser feito, mas com mecanismos de controle e restrição: recipientes específicos, quartos exclusivos, espaços próprios. “As práticas corporais foram reposicionadas no espaço doméstico e social, transformadas em hábitos requintados, elegantes, mas sempre expostas a olhares alheios”, diz ela.

A sociedade do século XX, incapaz de suportar a visão de seus fluidos corporais, os escondeu completamente. “O hábito de escarrar em público, de estimular artificialmente a evacuação, de publicar em jornais textos sobre excreções de humores corporais e sobre doenças sexuais. É chocante para nós observar como a sociedade escravista lidava abertamente com eles”, ressalta Andrade. Segundo ela, a ascensão da burguesia foi paulatinamente complicando essa relação direta, fazendo com que o que era natural se tornasse repugnante. O que é de dentro não é para ser visto ou tocado, deve ser retirado do campo visual e olfativo. A disseminação do revolucionário water closet e das instalações hidráulicas, que no Brasil só aconteceu no final do século XIX e início do século XX, permitiu que a atividade de excreção ganhasse um cômodo especial, reservado, permanente e fixo na unidade doméstica. Com isso, “as matérias fecais, levadas pelas águas, tornaram-se absolutamente invisíveis, tragadas pelas profundezas da terra, impelidas por uma aversão de alto significado social”, conclui a pesquisadora.


História Cultural permite construir história da percepção olfativa


O livro Saberes e odores. O olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX dedica-se à história da percepção olfativa, a entender como a relação dos homens com os odores vincula-se com padrões culturais. Mas o historiador francês Alain Corbin também aproveita a obra para fazer uma defesa da história das sensibilidades que, segundo ele, permite uma nova leitura de grandes eventos da história contemporânea. Saberes e odores pertence a uma linha da chamada Nova História Cultural que pesquisa a história das sensações, do imaginário social. Esses historiadores defendem que o pesquisador se volte também para as banalidades do cotidiano. Em entrevista para a revista Pesquisa Fapesp, o historiador francês Michel Vovelle, especialista em revolução francesa, diz: “Penso que os estudos sobre a sensibilidade, sobre o imaginário coletivo, se integram diretamente numa história das representações que é parte integrante, agora, da nossa compreensão da história nacional. Não seria preciso opor uma história oficial clássica, aquela da estrutura política, a uma outra que seria, senão marginal, de tal maneira diferente que não haveria conexão possível entre uma e outra. Para mim, não há duas histórias”. Vovelle, entretanto, critica a chamada história em migalhas, uma fragmentação expressiva de campos: “há a história dos afetos, dos odores, há um monte de histórias que, creio, é necessário reunir numa cadeia. Porque na pulverização renuncia-se a dar um sentido à história”, diz.

Em entrevista publicada em 2005, pela Revista Brasileira de História, Corbin afirma que o que define a história cultural é a idéia de que os indivíduos que vivem um mesmo período não são contemporâneos. “A história cultural é feita de recobrimentos, de sedimentações, de inércias, isto é, não se sente as mesmas coisas, segundo uma série de critérios: o sexo, a idade, a categoria social, o local geográfico, a tradição, ou a cultura que se recebeu. O historiador da cultura deve sempre tentar entender essa complexidade, essa simultaneidade de atitudes muito diferentes segundo os indivíduos e segundo os grupos”, acredita ele.

Voltando à história dos odores, o processo de desodorização visa essencialmente o espaço público, às partes comuns dos insalubres imóveis e à habitação dos ricos. Conforme explica Corbin, a grande maioria da população quer ignorar o empreendimento em curso. Para eles o aprendizado das novas disciplinas efetua-se quase que somente por intermédio do hospital, da prisão ou da caserna. Isto justificaria a permanência de antigos costumes nos meios populares.

Este exemplo mostra a importância de confrontar as estruturas sociais e a diversidade dos comportamentos perceptivos. “É inútil pretender estudar tensões e confrontos desprezando a diversidade dos modos de sensibilidade, tão fortemente implicados nesses conflitos. O horror tem seu poder; o dejeto nauseabundo ameaça a ordem social; a reconfortante vitória da higiene e da suavidade acentua a sua estabilidade”, conclui Corbin.