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Artigo
Aromas naturais produzidos por microrganismos
Por Claudete Corrêa de Jesus Chiappini
10/09/2007
Os microrganismos são freqüentemente associados à falta de qualidade ou à deterioração de alimentos. Entretanto, as biotecnologias de alimentos empíricas, praticadas há milênios, são as raízes da moderna tecnologia de alimentos e bebidas e produtos como cerveja, vinho, vinagre, queijos, pães e vegetais fermentados devem seu perfil de aroma típico a capacidade metabólica de numerosos microrganismos. Avanços recentes na biotecnologia de plantas e fungos, na tecnologia enzimática, na engenharia genética, no monitoramento de bioprocessos e nas técnicas de recuperação de produtos proporcionaram novas oportunidades em potencial para a biotecnologia de produção de aromas.

A importância do aroma na escolha dos alimentos e bebidas

Existem muitas razões pelas quais se consomem alimentos e, certamente, a mais importante vem a ser a obtenção de nutrientes para a manutenção da saúde. Entretanto, numa sociedade em que o suprimento de alimentos é abastecido por uma grande variedade de produtos industrializados, a escolha pela sensação de prazer que eles proporcionam vem crescendo em importância.

Estudos demonstram que as características sensoriais, em particular o aroma, têm efeito sobre a escolha do consumidor. Historicamente, gregos e romanos perfumavam seus vinhos com rosas, violetas, ervas e condimentos exóticos, trazidos da China, Índia e Egito pelos mercadores venezianos. Na Europa, esses ingredientes foram misturados, também, aos alimentos para torná-los mais palatáveis. Durante o século XIX, avanços na química orgânica tornaram possível que importantes substâncias aromatizantes, como a vanilina e a cumarina, fossem sintetizadas e adicionadas aos produtos alimentícios.

Pesquisas de mercado têm demonstrado que os consumidores esperam encontrar no comércio produtos alimentícios que constituam uma alimentação saudável. Neste contexto, o termo “artificial” em produtos alimentícios adicionados de aditivos sintéticos, vem tendo um impacto negativo na preferência do consumidor. Existe uma sensação de desconfiança de muitos consumidores quando lêem no rótulo a informação “sabor imitação” ou “aroma artificial”, levando a busca de produtos que possam ser rotulados de naturais.

A definição de natural

O conceito de natural tem um lugar importante aos olhos do consumidor. No caso dos alimentos, o consumidor geralmente acredita que materiais naturais, incluindo os compostos que conferem o aroma, são mais saudáveis e seguros que os seus similares sintéticos. Embora evidências científicas não suportem esta idéia, a crença dos consumidores é bastante forte, de modo que o termo natural sempre tem conotação positiva, especialmente para compostos aromatizantes.

No Brasil, em 1999, foi aprovado o Regulamento Técnico sobre Aditivos Aromatizantes e Aromas que, à semelhança dos regulamentos internacionais, define como aromatizantes ou aromas naturais àqueles obtidos exclusivamente mediante métodos físicos, microbiológicos ou enzimáticos, a partir de matérias primas aromatizantes e aromas naturais. A International Organization of the Flavor Industry (IOFI), organismo representativo da indústria mundial de flavorizantes, incluiu o uso de bactérias, leveduras, fungos filamentosos, células animais ou vegetais, e enzimas derivadas destas, como processo bioquímico para produção de substâncias flavorizantes naturais.

Tradicionalmente, as principais fontes de extração de aromas naturais eram materiais crus como carnes, frutas, folhas, ervas e sementes condimentares. Devido a questões ecológicas e políticas, o uso de animais e plantas foi se tornando problemático e essas fontes tradicionais foram sofrendo uma diminuição na sua disponibilidade, acarretando um aumento no valor comercial dos compostos extraídos. Além disso, a sazonalidade, a natureza do processo de extração dos compostos e a variabilidade na quantidade e na qualidade do produto final foram fatores que tornaram a obtenção onerosa e provocaram irregularidades no suprimento do mercado.

A biotecnologia do aroma natural

O primeiro relato publicado sobre a capacidade de bactérias e fungos selecionados produzirem fragrância foi realizado por Omelianski, em 1923. Em seu trabalho, o autor destacou as leveduras como um dos grupos mais importantes de microrganismos que produz, em cultura, um forte aroma etéreo, de variada intensidade, que lembra o odor de frutas como morango, abacaxi, maçã, pêra e melão. Os gêneros Mycoderma, Pichia, Willia e Torula e outros isolados de uva, de grãos úmidos de cevada, de suco de abacaxi, de folhas de ruibarbo, de queijo e de kumis foram citados pelo autor como produtores de um agradável e complexo aroma de frutas. Omelianski realizou uma série de experimentos com microrganismos isolados do leite, do pão e de algumas frutas, onde variou a composição do meio de cultura e obteve, em diferentes substratos, o que chamou de aroma de morango, aroma de fruta impuro e aroma de queijo.

A relação entre a fisiologia microbiana e a produção de metabólitos com odor, entretanto, só veio a ser identificada em estudos realizados nos anos 50. A partir daí, um número significativo de trabalhos sobre compostos aromatizantes produzidos por bactérias, fungos filamentosos e leveduras começou a ser publicado. As pesquisas foram inicialmente direcionadas à otimização da biossíntese e à identificação de compostos de aromas específicos. Uma primeira lista de compostos voláteis em alimentos compreendia umas poucas centenas de constituintes. Com o advento de instrumentos de análise modernos, particularmente a cromatografia gasosa acoplada a espectrometria de massas, o número de compostos identificados aumentou significativamente e uma compilação recente apontou mais de 10.000 compostos.

Tecnologias complementares contribuíram para a caracterização estrutural dos compostos aromatizantes, como os ésteres produzidos por Pseudomonas fragi, o aroma de coco detectado em cultivos de Trichoderma viride, Myocacia uda, Ischnoderma benzoinum, Trichoderma harzianum e de espécies do gênero Neurospora, o agradável aroma de maçã percebido no cultivo da levedura Dipodascus aggregatus, os vinte compostos voláteis, predominantemente ésteres e terpenos, que foram identificados no meio de cultura de Trichothecium roseum, os monoterpenos citronelol, linalool e geraniol que foram produzidos no cultivo de Kluyveromyces lactis, o aroma de ananás intenso e agradável que foi produzido pela levedura Dipodascus magnusii, os monoterpenos com qualidade sensorial de leve aroma frutal produzido por duas linhagens de Ambrosiozyma monospora, e as notas frutais e florais produzidas por Hansenula anomala.

O desenvolvimento de métodos biotecnológicos para a obtenção de aromas específicos pode se tornar bastante árduo porque a maior parte dos aromas naturais é o resultado da mistura de compostos que podem chegar a centenas. Produzidas em baixa concentração, essas misturas podem conter terpenos, aldeídos, ésteres, lactonas, álcoois superiores e outras moléculas complexas que resultam do metabolismo de fungos filamentosos e leveduras. O desafio de produzir compostos químicos do aroma por meio de biossíntese, entretanto, vem sendo vencido com entusiasmo pelas companhias produtoras, que apontam, como vantagens deste método, a produção de múltiplos componentes que contribuem para um perfil balanceado do aroma; a obtenção de novos efeitos de aroma, com características únicas não obtidos com processos tradicionais; a obtenção de perfis de aroma que são considerados naturais pelos consumidores; e a potencialidade para a produção de volumes que atendam ao mercado internacional. Uma análise do custo-benefício da produção de aromas por microrganismos demonstrou que para compostos aromatizantes com valor de mercado a partir de duzentos dólares por quilograma a rota microbiana torna-se econômica, enquanto, para aromas com preços inferiores a este valor a produção por biossíntese não é conveniente. Isto quer dizer que o valor de mercado do composto aromatizante e a elasticidade de seu preço irá tornar vantajosa ou não a biossíntese de um aroma. Entre os anos de 1987 e 1989, os aromas movimentaram cerca de sete bilhões de dólares por ano no comércio mundial, o que significava 25% do total de aditivos comercializados no mercado.

A biodiversidade como fonte de leveduras para produção de aroma

As leveduras estão amplamente distribuídas na natureza, associadas a diversos ecossistemas. Estão presentes no solo, na água, no ar e na superfície de insetos como, por exemplo, abelhas, besouros e moscas. Fazem parte, também, da microbiota da pele e do intestino de animais de sangue quente. Poucas espécies de leveduras são patogênicas para o ser humano, mas podem ser oportunistas causando doenças cuja gravidade dependerá da resistência do indivíduo.

As plantas representam o habitat mais importante para uma grande variedade de leveduras. Néctares de flores, folhas e frutos são habitados por grande variedade de leveduras selvagens devido à elevada concentração de açúcares simples, baixo pH e intensa visitação de vetores. A casca íntegra dos frutos faz com que esses microrganismos permaneçam na superfície até que ocorram lesões e eles cheguem ao interior do fruto. Inicialmente, as folhas e os frutos imaturos são dominados por leveduras não fermentativas, disseminadas, na sua maioria, por correntes de ar. Estas comunidades são compostas, principalmente, por basidiomicetos dos gêneros Cryptococcus e Rhodotorula e leveduras negras, como Aerobasidium pululans. Frutos maduros, especialmente os caídos no chão, são utilizados como alimento e local de ovoposição para numerosos insetos, que transferem leveduras do ambiente ao redor para os frutos. Nestas condições, os frutos passam a ser colonizados por ascomicetos que se multiplicam rapidamente e consomem os açúcares simples existentes nos frutos. Após alguns dias, os açúcares simples começam a se esgotar e são substituídos pelos produtos da fermentação e por moléculas mais complexas. Em sucessões posteriores, produtos como o etanol e os ácidos orgânicos são utilizados pelas leveduras. Frutos nessas condições possuem, freqüentemente, comunidades dominadas por leveduras fermentativas e tornam-se, portanto, iscas naturais para o isolamento de leveduras selvagens. Espécies dos gêneros Issatchenkia, Pichia, Candida e Kloeckera são comumente isoladas de frutos maduros em ambientes tropicais.

O Brasil possui uma grande variedade de ecossistemas com diferentes populações de microrganismos já estudados. As florestas tropicais, incluindo a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica, têm atraído a atenção internacional como as maiores fontes de biodiversidade. Dados preliminares têm demonstrado uma extensiva comunidade de leveduras associadas a Drosophila na porção da Mata Atlântica do Rio de Janeiro, em vinte diferentes frutos da Mata Atlântica de São Paulo, e no Amapá, fruto de árvore endêmica da Floresta Amazônica. A biodiversidade de leveduras vem sendo verificada, também, em frutos de consumo usual, como morango, cacau, coco, maçã, manga, abacaxi, umbu, cajá, banana, goiaba e jaca.

A uva é um caso especial. As interações ecológicas que ocorrem na uva, fonte primária de leveduras para o ambiente de vinicultura, vêm despertando grande interesse e, com isso, gerando vários estudos. Na superfície das uvas existem fungos filamentosos, bactérias e, principalmente, leveduras, das quais uma pequena porção participa da fermentação alcoólica que ocorre durante a elaboração do vinho.

Uvas verdes apresentam a predominância de espécies dos gêneros Rhodotorula, Cryptococcus e Candida. A maior parte dessas espécies é isolada, também, de uvas maduras mas, nesse estágio, espécies de leveduras apiculadas dos gêneros Hanseniaspora, Kloeckera, Metschnikowia, Candida, Pichia, Rhodotorula e Kluyveromyces são predominantes. Lesões na superfície da uva aumentam a disponibilidade de nutrientes e encorajam o crescimento e a diversidade da população de leveduras. Uvas neste estado têm a incidência de Hanseniaspora, Kloeckera e Metschnikowia aumentada, assim como as espécies de Saccharomyces e Zygosaccharomyces.

O conjunto dessas leveduras não-Saccharomyces - chamadas selvagens, indígenas ou autóctones – durante o esmagamento das uvas, é introduzido no mosto e conduz o primeiro estágio de fermentação espontânea da elaboração do vinho. A qualidade do vinho está estreitamente relacionada com a presença dessas leveduras porque elas utilizam os constituintes da uva, principalmente os açúcares, produzindo compostos voláteis e não-voláteis como produtos finais que contribuem para o aroma e sabor característicos do vinho.

A manipulação fisiológica, ou seja, a mudança das condições ambientais e nutricionais do meio de cultivo, vem permitindo conhecer a influência de diversos parâmetros sobre a qualidade e a quantidade da produção de compostos voláteis. Pela alteração de parâmetros ambientais - aeração, temperatura e pH - e nutricionais - composição do meio de cultura e modo de fornecimento do substrato – objetiva-se obter maiores quantidades de produtos de alto valor ou que atendem a preferência do consumidor por produtos naturais, tornando a área de biotecnologia de aromas uma importante área de pesquisa.


Claudete Corrêa de Jesus Chiappini é professora do Departamento de Nutrição e Dietética da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal Fluminense - UFF.