REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Clones, utopias e ficções - Carlos Vogt
Reportagens
Quase como nós
Yurij Castelfranchi
Pão e circo vigoram na mídia
Germana Barata
Contos de fadas ensinam as crianças a lidar com seus medos
Patrícia Mariuzzo
Monstruosa humanidade
Murilo Alves Pereira
com colaboração de Fábio Reynol
Luzes, cores e corpos que perturbam
Luiz Paulo Juttel
Artigos
O que é um monstro?
Jorge Leite Júnior
Corpo de quem? Espetáculo e ciência no século XIX
Janaína Damasceno
Traços de singularidades
Antonio Carlos Amorim
Monstros/as? Mostras? Meninas/os?
Elenise Cristina Pires de Andrade
A gênese dos anormais
Renato Beluche
Os monstros no papel: imprensa e debate político no século XIX
Marco Morel
Resenha
A vila
Marta Kanashiro
Entrevista
Miriam Garate
Entrevistado por Por Rodrigo Cunha
Poema
Letra livre
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Entrevistas
Miriam Garate
Especialista em ciência, literatura e psicanálise, Miriam Garate trata da relação entre a literatura fantástica e a cultura científica, do advento da psicanálise e o desvelar dos “monstros que nos habitam”, lembrando que o que há de mais fantástico não são os monstros, mas os sistemas simbólicos criados pelo homem para tentar contornar o real.
Por Rodrigo Cunha
05/10/2007

Na véspera de deixar o Brasil para o seu segundo pós-doutorado no Colegio de México – o primeiro foi na Universidade de Paris III –, Miriam Garate recebeu a reportagem da ComCiência para falar de uma de suas especialidades: a literatura fantástica. Graduada em letras pela Universidad Nacional de Rosario, em seu país natal, Argentina, fez especialização em literatura e psicanálise e em ciência e literatura. Posteriormente concluiu, já na Unicamp, mestrado e doutorado em teoria e história literária e a livre-docência. Nesta entrevista, Garate trata da relação entre a cultura científica da era moderna e o surgimento da literatura fantástica, de fantasias humanas (entre elas, a duplicação do homem) e sua abordagem pela literatura e pelo cinema, do advento da psicanálise e da “morte” do fantástico clássico. Fala também sobre o escritor argentino Jorge Luís Borges e o ressurgimento do fantástico com seus novos “monstros”, e compara as manipulações científicas de hoje às intervenções de um personagem do fantástico clássico, Dr. Frankestein, o jovem cientista criador de um dos mais célebres monstros da ficção.

ComCiência – O começo da literatura fantástica, no início do século XIX, tem referências claras ao meio científico, com personagens como o professor Spallanzani, do conto “O homem de areia”, de Hoffmann, com seu escritório repleto de provetas, frascos e tubos de ensaio, onde ele supostamente criaria seres quase humanos; e o próprio Dr. Victor Frankenstein, do romance de Mary Shelley, que na verdade é um estudante de ciências naturais e fisiologia que dá vida a uma criatura que ele constrói a partir de partes de cadáveres. O fantástico surge como uma reação ao avanço das ciências nos séculos XVII e XVIII e a explicação racional do mundo ou como uma espécie de alerta frente à possibilidade de a ciência avançar tanto a ponto de o cientista se considerar um deus?
Miriam Garate – Eu diria que o surgimento da literatura fantástica se relaciona com o racionalismo e com a cultura científica moderna emergente de mais de uma forma. De um lado, a erupção dessa literatura pressupõe a existência de uma mentalidade moderna, racionalista, cientificista, de um imaginário fortemente alimentado pela idéia de avanço, de progresso – eu diria quase que da infinitude do progresso linear. Pressupõe também a morte – ou a primeira grande morte – da cultura religiosa, isto é, de todo um imaginário teológico e a apropriação, por parte do homem, de parte dos poderes, potencialidades e mistérios que estavam contidos no imaginário da cultura teológica. Sem a erupção da ciência, sem a dessacralização do mundo, sem uma consciência moderna, não poderia emergir uma literatura fantástica. Todavia, se a cultura científica moderna, tal como ela aparece nos séculos XVII e XVIII, é condição de emergência, a literatura fantástica vai surgir como um modo de interpelar, de problematizar, de matizar tanto a ciência quanto o aparente desaparecimento da cultura teológica. Podemos pensar que não é um sucedâneo delas, mas que vem, parcialmente, recolocar questões postas e provavelmente resolvidas no interior de uma cultura religiosa. Surge também para testar os limites de uma consciência moderna, um racionalismo confiante, e começar a meditar sobre aquilo que seriam os impasses, a não linearidade desse ideal de progresso, a problemática corrente da fantasia do homem usurpar o lugar de Deus. Isso significa que a literatura fantástica está dentro dessa cultura moderna e científica, mas ao mesmo tempo, se coloca numa espécie de lugar da interlocução problemática. Nesse sentido, eu digo que se relaciona em mais de uma maneira. Necessita dela mas, ao mesmo tempo, acaba se valendo dela para testá-la, problematizá-la, para evidenciar limites. Vou mencionar alguém que na verdade não fala exatamente de ciência, mas fala de uma tecnologia que é muito cara à nossa cultura, o cinema – aliás, uma mídia na qual o fantástico e, em particular, os monstros, têm um lugar de destaque. Edgar Morin, um antropólogo, não se dedicou aos monstros, mas tem vários livros dedicados ao cinema. Para introduzir a sua reflexão em torno do cinema como uma tecnologia que, de algum modo, vem reinventar e restituir a fantasia de duplicar o homem, para assim, perpetuá-lo, ele diz que o homem é uma mistura de homo faber e homo demens , de construtor de instrumentos, de técnicas, de ferramentas, de conhecimento, que pressupõe uma cultura científica e tecnológica, mas que é também uma espécie de artífice de sonhos, delírios, que a rigor são bastante resistentes à passagem do tempo. Podemos imaginar que a literatura fantástica, a ficção científica e os sucedâneos técnicos que produzem um discurso associado a esses gêneros estão tematizando permanentemente uma série de questões e inquietações bastante primárias, primitivas, por assim dizer, caras ao homem e que persistem, a despeito dos avanços tecnológicos e da cultura científica, embora sejam um dos motores que visam equacionar e resolver esses fantasmas, delírios, sonhos etc.

ComCiência – Além dessas inquietações que a literatura fantástica aponta, ela também estava de alguma forma antecipando questões que viriam a ser problematizadas pela psicanálise no século XX, tais como sonhos, delírios, a loucura, o duplo da nossa personalidade, como o personagem Mr. Hyde, de Stevenson, que é o monstro que há dentro do Dr. Jekyll e que se revela quando ele toma uma droga...
Garate
– O monstro que nos habita... Sim, sem dúvida. Há uma vertente teórica que considera precisamente que o momento alto da literatura fantástica, isto é, o século XIX, indaga pelo viés da fantasia e da ficção literária uma série de questões, de problemas, que a erupção da teoria psicanalítica no século XX vai equacionar sob a forma de uma teoria. E que comportaria, de algum modo, a morte da literatura fantástica na sua versão clássico-moderna. Porque a psicanálise se via “matando a charada” em termos teóricos, desvelando o mistério, num certo sentido, o que faria com que essa espécie de máquina ficcional não pudesse continuar operando, pelo menos com o mesmo estatuto que operou no século XIX. De fato, se tomarmos textos de Freud como o intitulado “O estranho”, em português, cuja tradução literal do título original seria “O infamiliar”, perceberíamos com facilidade que o repertório de temas que ele examina, partindo precisamente de Hoffmann, do conto “O homem de areia”, da literatura fantástica, para tentar pensar uma série de processos psíquicos, é idêntico a um repertório temático muito caro à literatura fantástica do século XIX. Sem dúvida, o objeto privilegiado de indagação é o homem e o monstro ou os monstros que nos habitam.

ComCiência – A senhora diz que isso seria a morte da literatura fantástica clássica. E como autores do século XX, como Borges, lidaram com isso?
Garate
– Para muitos, a morte do fantástico – considerado fantástico clássico – que vai até o final do século XIX, não comporta a morte da máquina ficcional, e haveria uma espécie de inflexão que faz com que no século XX, de algum modo, uma série de escritores que abdicam de convenções de representação realista, entendidas à maneira do século XIX, tão diversos quanto Kafka, Borges ou Cortázar, sejam considerados por alguns teóricos como neo-fantásticos. O que supostamente estaria em jogo nesse neo-fantástico? Eu acho que foi Sartre o primeiro a dizer: “O fantástico, por excelência, somos nós”. Toda ficção borgeana pode ser lida um pouco sob este signo. Na verdade, o que há de mais fantástico não são os monstros, são os sistemas simbólicos criados pelo homem para tentar contornar o que é incontornável: o real. Portanto, alguém como Borges vai dar o tratamento de aparato fantástico a algo capital, fundamental que permita que existamos, que é a linguagem. É o aparato mais fantástico que existe, a máquina mais fantástica que já foi criada. E quando digo a linguagem, estou falando de uma espécie de aparato de base que possibilita a criação de toda uma série de aparatos secundários. A célebre frase de Borges: “A metafísica é um ramo da literatura fantástica”. Isto é, a idéia de dar um tratamento precisamente fantasista tanto à tradição metafísica quanto à tradição teológica, quanto à memória, e aos processos que estão envolvidos na memória. Essas teias da constituição simbólica da linguagem. É um modo de inverter a lógica. Se no fantástico do XIX os objetos fantásticos estavam fora – eles eram sem dúvida uma projeção do sujeito, mas estavam fora –, se manifestavam como uma exterioridade, o século XX, de algum modo vai inverter o texto, e o que vai mostrar é que o mais fantástico está dentro de nós e já não apenas na dimensão inconsciente, como é concebida a partir da teoria psicanalítica. Mas também, e talvez sobretudo, na dimensão consciente e na dimensão do que seriam os nossos dispositivos de base para conhecimento e apreensão do mundo. Podemos dizer que não é que o fantástico desapareça, ele se generaliza. De algum modo, tudo passa a ser fantástico, não no sentido mais literal, mas no sentido de comportar uma espécie de hiato em relação à realidade e de ser inverificável, de incitar sempre essa espécie de possibilidade de uma relação de correspondência ou concordância com o exterior. Tudo seria fabulação fantástica, em sentido um pouco amplo.

ComCiência – A senhora falou em fabulação e isso nos remete às fábulas. Em certo período tiveram uma importância na Europa as traduções das Mil e uma noites , o oriente exerceu um certo fascínio. Tanto a fantasia quanto os seres imaginários estiveram presentes em várias épocas e talvez tenham um papel diferenciado em cada uma delas. É possível apontar como se relacionam e em que se distinguem, por exemplo, os seres do grotesco medieval, da tradição greco-latina da antigüidade, e os seres imaginários do catálogo que Borges fez com Margarita Guerrero, de várias mitologias, da cultura popular?
Garate
– Eu diria que as entidades mitológicas – por exemplo, na mitologia grega, mas também na mitologia do oriente –, ou os seres sobrenaturais que atravessam intensamente a cultura popular na Idade Média, têm um elemento em comum, que é do que poderíamos chamar de uma espécie de coeficiente ou fator de veracidade no interior dessas culturas. Não são seres imaginários – vamos lançar mão do título do texto de Borges ( O livro dos seres imaginários ). No interior dessas culturas, eles comparecem como entidades que têm quase um estatuto de realidade. Pensemos em algo fundamental para a cultura medieval como o demônio. O demônio não é uma metáfora, não é uma fabulação do mal, o demônio existe, se manifesta. Foi nesse sentido que eu me referi à necessidade de dessacralizar a cultura para que exista algo parecido com a literatura fantástica. Eu teria que pensar que o demônio “não existe” para que ele possa se tornar uma manifestação ambígua que pode ser projeção do sujeito, mas que também pode ser algo desconhecido, inapreensível. Eu introduziria essa primeira grande distinção. Até a erupção de uma cultura laica, racionalista, esses seres imaginários não são imaginários, são reais no interior dessas culturas. Outro elemento comum é que eles operam como entidades que têm uma espécie de grande potencial explicativo. Podemos dizer que apesar de serem reais são instâncias metafóricas, são densamente significantes. Estão aí para tentar resolver um problema. São entidades mitológicas, os mitos estão aí para isso, para tentar resolver problemas insolúveis, a rigor. Mas eu imagino – porque esse não é um assunto que eu domine – que se nos debruçássemos no interior de cada uma dessas culturas particulares, inclusive se agrupássemos numa mesma época determinadas regiões, digamos, tradições folclóricas e populares no interior da cultura medieval no leste europeu, na Europa central, na cultura mediterrânea, esses seres poderiam aparecer investidos de determinadas características que estão em sintonia com universos micro-culturais, com as culturas nas quais operam e com a época na qual eles surgem e são funcionais. Se eu penso nas nossas novas mitologias, é evidente, por exemplo, que uma série de discursos que fazem parte da nossa cultura atualizam uma espécie de núcleo de base que permanece. Quando eu digo isso, estou pensando, por exemplo, na longa temática que podemos traçar a partir de seres híbridos, compostos. Essa composição pode ser marino-terrestre numa cultura marítima, como é a cultura helênica, por exemplo. E eu poderia dizer: é um traço do ambiente, em que predominam uma série de seres mistos que têm essas características. Ao passo que hoje, há toda uma série de entidades híbridas que passam pela manipulação genética, pelo tratamento a partir de chips informáticos, partes artificiais, manipulações médicas que são reatualizações de uma figura como é o Frankenstein. Quando fizeram o primeiro transplante de uma parte do rosto daquela mulher francesa, eu disse: isso tem a ver, é uma versão atual de uma problemática que está presente no texto da Mary Shelley. Os monstros usam a roupagem do lugar e do tempo. Mas volto a insistir, haveria uma espécie de núcleo persistente que teria a ver com a longa duração dessas figuras. Trocariam a roupagem, mas existiriam como funções primeiras e primárias que seriam de longa duração na nossa cultura, a despeito de local e tempo.

ComCiência – A ilha do Dr. Moreau (1896), de Wells, já fala da experiência com seres híbridos e, recentemente, o governo britânico autorizou as pesquisas com seres híbridos para produção de células-tronco a serem usadas no tratamento de várias doenças. Na sua opinião, a vida pode acabar imitando a arte ou a ciência vai encontrar um limite ético para a sua atuação? Podemos chegar a ver uma ilha do Dr. Moreau?
Garate
– Eu não sei, eu não sou profeta, não acredito em profetas (risos). Em todo caso, o Wells representou, precisamente no final do século XIX, início do século XX, uma espécie de figura exemplar em vários sentidos. Ele é alguém com uma formação científica de base, cujas primeiras obras são de divulgação científica e não de ficção, que conhecia perfeitamente a teoria de Darwin sobre evolução das espécies. A ilha do Dr. Moreau é uma meditação do texto darwiniano, e uma meditação que já começa a colocar precisamente a partir do conhecimento e da concordância com o modelo darwiniano o que seriam os riscos contra a euforia positivista no fim do século, o que poderíamos chamar uma involução ou regressão involutiva e não uma evolução indefinida. É alguém que, a partir da Segunda Guerra, pára de escrever ficção científica. Ele sempre trabalhou intensamente como reformista político, com uma participação muito ativa. Uma das frases de Wells, a partir da experiência da guerra é: “Não é preciso mais escrever ficção fantástica, isto superou toda a minha capacidade de imaginação. Agora eu vou fazer outra coisa, intervir politicamente”. Eu não digo que seja necessário parar de escrever ficção. Aliás, considero que a ficção, em todos os planos, e hoje, evidentemente o cinema desempenha essa função muito mais do que a literatura, está aí para meditar e socializar essa meditação em torno de problemas, impasses – não apenas o cinema, mas o cinema como criação imaginária. Eu considero que tudo é possível. Às vezes se diz “o homem não é tão desinteligente para o bem ou para o mal”. Eu jamais parti desse pressuposto, eu considero que somos tão inteligentes e tão desinteligentes para fazer o melhor e o pior. De fato, a discussão em torno dos limites da manipulação genética, das intervenções no corpo, são tema fundamental de debates, neste início de século, que tem a ver, inclusive, com um redimensionamento fundamental da subjetividade. É muito problemático, também, sermos apocalípticos, negativos. “Será que vamos viver uma ilha do Dr. Moreau? Ou num planeta habitado por quase que robôs, onde novas castas serão recriadas, em função, por exemplo, de um processo de seleção que passará por manipulação genética, disponibilidade de recursos em termos de medicina, para alguns e não para outros?”. É impossível dizer se isso vai ocorrer. Que pode vir a ocorrer, pode. Para vir a ocorrer, determinadas formas do que ainda para nós se configura como subjetividade teriam que mudar drasticamente. Sem dúvida, há transformações em curso. Cinco, dez anos atrás, era praticamente impensável, em termos subjetivos, intervir de modo sistemático sobre o corpo como hoje é não só pensável como, eu diria, quase trivial. Se isso, supostamente, vem para contornar uma série de problemas, satisfazer uma série de fantasias, preencher uma série de vazios, surgem outros problemas em outros lugares, que são como que deslocamentos. Toda época tem as doenças que sabe produzir. O século XIX produziu mulheres histéricas, o final do século XX produziu – produz ainda – anoréxicas, bulímicas etc. Quero dizer com isso que considero que é imperativo pensar na possibilidade de estabelecer limites socialmente desejáveis, inclusive em função de objetivos socialmente muito mais pertinentes. Onde é preferível investir dinheiro e para que? Para células-tronco, para a doença hiper rara – com o maior respeito –, ou em outras questões? Vivemos em várias épocas ao mesmo tempo. Alta tecnologia no século XXII, XXIII e quase Idade Média na África.