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Editorial
Clones, utopias e ficções
Por Carlos Vogt
10/10/2007

Clones

O filme A. I. Inteligência Artificial , de Steven Spielberg, é a história de um clone triste. A novela O clone, de Glória Perez, com fantásticas imagens e cenários do diretor Jayme Monjardim, é a história alegre de um clone triste. O Fausto, de Goethe, publicado, originalmente, em dois volumes com um longo intervalo de tempo entre eles (1808, o primeiro e 1833, o segundo) é a história trágica de um clone cômico. O Frankenstein, ou O prometeu moderno, de Mary Shelley, que o publicou anonimamente, em 1818, quando tinha apenas 19 anos, é a história trágica de um clone trágico. De comum, em todas essas obras e histórias de épocas tão diferentes, o mesmo mito do descontentamento com as limitações da existência e da busca de sua superação com a criação de outras vidas, sobre-humanas.

Ovídio, poeta latino que viveu no século I, antes e depois de Cristo, celebrizou em suas Metamorfoses o mito, a lenda e o personagem de Narciso, que tanta importância teria para o desenvolvimento teórico, conceitual e metodológico da psicanálise tanto tempo depois. Narciso repeliu o amor das ninfas, Eco entre elas, que por ele se apaixonaram. Tamanha era sua beleza que ele próprio, ao ver sua imagem refletida nas águas claras de uma fonte, por si mesmo também se apaixonou. Como não conseguia abraçar o objeto evanescente de seu amor, tentou, desesperado, desgarrar-se de si mesmo até dilacerar-se e, sangrando, perecer. Ao buscar seu corpo para colocá-lo na pira fúnebre, suas irmãs, em seu lugar, só encontraram a flor em que ele havia se transformado. Narciso é a história liricamente triste de um clone impossível.

Há outras histórias da mesma família, como aquela que se conta no romance O estranho caso do dr. Jekyll e mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, ou esta outra, de H. G. Wells, A ilha do dr. Moreau, de 1896, ou até mesmo aquela bem mais antiga narrada na Bíblia, no Velho Testamento, no livro de Jó, em que Deus permite ao Diabo a “clonagem” do Jó rico e feliz no Jó pobre e infeliz para a dura provação de sua crença e de sua devoção ao Senhor.

A transformação de um em outro e o retorno à identidade original, enriquecida pela viagem do estranhamento de si mesmo e da alteridade, são temas recorrentes nos mitos clássicos da Antigüidade e mesmo nos mitos mais modernos do ciclo de novelas de cavalaria, na Idade Média, ou no do médico-cientista que vende a alma ao diabo, também na Idade Média e na Renascença e que, além da complexa beleza, da versão de Goethe, culmina, no século XX, no vigoroso romance de Thomas Mann, Doutor Fausto.

Por outro lado, a saga de gêmeos no imaginário da cultura, as mais diversas e antigas, acrescenta ao tema da duplicidade elementos que reforçam e aprofundam as indagações metafísicas do homem, através dos tempos, sobre a singularidade de seu destino comum. O tema do espelho, em particular do retrato que representa o mesmo, sendo, no entanto, o outro, e que tem no conto “O espelho”, de Machado de Assis, um de seus momentos altos, propicia no romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, de 1891, tanto a definitiva notoriedade do autor como a sua plena realização literária. Trata-se, como se sabe, de uma narrativa filosófica, cujo protagonista é jovem, belo, dedicado ao prazer e ao culto da beleza. Recebe de um amigo pintor o retrato que espelha, luminoso, tudo isso. Angustia-se com a idéia de que um dia perderá tudo e, por um pacto e um voto, consegue transferir para o quadro as marcas do tempo e do envelhecimento, mantendo-se em eterna e fresca juventude. Abandona a angelical Sibyl e acaba assassinando o amigo pintor, que desaprova seu comportamento e recusa sua conduta. Atraído pela própria imagem no retrato, assiste, às vezes, à degradação de si próprio no outro, representado. Numa dessas vezes, contemplando o rosto degenerado de seus vícios, no retrato, dilacera-o com um punhal, tombando morto no instante mesmo em que sua imagem é destruída por ele próprio.

Há semelhanças entre o livro de Oscar Wilde e Dr. Jekyll e mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado poucos anos antes, assim como há também com outras obras românticas e pós-românticas, como é o caso de La nuit de décembre A noite de dezembro , de Alfred de Musset, e, mais especialmente, com La peau de Chagrin A pele do Onagro, de Balzac, este último ainda mais carregado de simbologia dual, ou de dualidade simbólica, por ter sido o último livro lido por Freud antes de sua morte, em 23 de setembro de 1939, conforme nos relata Peter Gay em sua biografia famosa do fundador da psicanálise.

A eterna busca do fogo sagrado da vida nos torna perseverantemente teimosos, do ponto de vista epistemológico, e teimosamente ridículos, do ponto de vista dos malogros a que nos condenam os mitos e suas recriações literárias, em diferentes épocas. Nem por isso deixamos de continuar Prometeus e de transgredir os limites que a ética e as religiões estabelecem para cada época, como condição de harmonia social, de felicidade individual e de sábia ignorância.

O “pecado” da curiosidade do conhecimento levou o homem, no decorrer de sua história moderna, a sofrer alguns abalos fundamentais que chacoalharam a sua vaidade e o empurraram para quedas simbólicas, no sentido bíblico, irrecuperáveis: a primeira, entre elas, o tira, na Terra, do centro do universo, com a revolução copernicana; a segunda, arrebata-o da linhagem divina, com a teoria da evolução das espécies, de Darwin; a terceira, composta de dois trancos, praticamente simultâneos, retira-lhe a condição de sujeito da história, no choque com a teoria marxista, e desaloja-o de seu próprio eu, para revelá-lo estranho e conflituoso consigo mesmo, com a criação, por Freud, da psicanálise, ele próprio arauto dos sucessivos tombos acima enumerados.

Mais recentemente, foi anunciada, como resultado do seqüenciamento dos genes que compõem o genoma humano e daqueles que compõem o genoma do chipanzé, uma diferença quantitativa, muito pequena, de genes entre os dois, o que motivou cientistas a proporem uma revisão da classificação do chipanzé, para incluí-lo entre os representantes da linhagem do gênero Homo, sabido ou ignorante, pouco importa no caso em questão.

O DNA foi, há cinqüenta anos, a última grande e revolucionária descoberta científica da humanidade, abrindo novos caminhos para o desenvolvimento das ciências da vida e para o nascimento de áreas multidisciplinares de estudo e pesquisa, antes desconhecidas. A própria biologia, com o desenvolvimento da genômica e, posteriormente, da proteômica, conheceu transformações que têm mudado o seu paradigma teórico e metodológico, aproximando-a, sob esses aspectos, das chamadas ciências duras, para as quais a materialidade de seu objeto e a quantificação de seu conhecimento são condições constitutivas do rigor dos procedimentos e da verdade dos resultados produzidos pela investigação.

Quando, algum tempo atrás, foi anunciada por cientistas da empresa Advanced Cell Technology (ACT) a clonagem de um embrião humano, o rabino Sobel, de São Paulo, declarou na televisão não ser contra os avanços da ciência nesse campo. O problema, disse ele, é saber como, onde e quando parar. O rabino tem razão, mas, na verdade, o enigma da ciência só se completa quando a esfinge do conhecimento pergunta também: “Por que e para que parar?”.

Jose Cibelli, sempre no esforço de atenuar as críticas às declarações da ACT, disse que o objetivo da empresa era reverter o tempo e, desse modo, retardar o envelhecimento e alongar a vida. Reencontramos aqui o mito da longevidade e da eterna juventude que já havíamos reconhecido em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e que aparece também num folhetim gótico de Balzac, O centenário, ou ainda no excelente O perfume: História de um homicida, do alemão Patrick Süskind, de enorme sucesso no mundo todo, desde que foi lançado, em 1985. Tanto em O centenário como em O perfume, vida sobre-humana, ou a sobre-humanidade da essência da vida, alimenta-se do vigor, da juventude e da beleza de outras vidas humanas, numa espécie de vampirismo sem caninos e sanguessugas.

Alguns autores distinguem uma ética da clonagem de uma ética na clonagem, argumentando que a maior parte das discussões éticas que cercam o tema até agora são externas a ele. Mas será a ciência capaz de representar-se a si mesma em fóruns distintos ao dela própria? Pode o conhecimento conhecer-se a si próprio, ou a mente representar-se a si mesma, ou a consciência ser consciência da própria consciência? Não há ciência sem simulação, tampouco conhecimento sem linguagem e representação. Os símbolos fazem a mediação do mundo e do conhecimento do mundo. A unidade e a unicidade do ser humano são os fundamentos de sua humanidade e a vida é sagrada porque morre e renasce em diferenças e dessemelhanças. O humanismo feroz e a humana ferocidade da literatura de Hemingway ressoam na epígrafe clássica de Por quem os sinos dobram? : “Nenhum homem é uma ilha... Eles dobram por ti”.

A banalização do mistério da vida, posto em gôndolas eletrônicas da internet, banaliza a morte, a violência, o crime e faz terra arrasada da singularidade da existência de cada ser humano em sua infinita provisoriedade. Dessacraliza a vida.

Tudo o que o homem pode fazer ele fará, mesmo que a custo de muitas vidas e muito arrependimento tardio, como foi o caso dos autores da bomba atômica. Cedo ou tarde, o homem clonará o homem e com mais facilidade do que fez a bomba, porque os aparatos tecnológicos e os custos envolvidos são mais simples e instaláveis numa clínica particular. É um risco para o qual a sociedade não está ainda preparada, a não ser pelo medo mítico das representações que conhecemos, e quem sabe pela “sabedoria da repugnância” de que nos fala a bioética de Leon Kass. Será suficiente?

No Olimpo, dizem os deuses que não! Que sim, dizem seus semelhantes na Terra!

Roboamor

A solidão começava a incomodá-lo. Não em si, por si mesma, de modo absoluto, mas por ter de compartilhá-la com estranhos. E mais do que estranhos, estrangeiros no país de sua geografia cotidiana, nos acidentes de suas divagações, no roteiro de sua permanência.

Na casa ampla e abandonada da intenção de qualquer outro abandono senão o seu, livros espalhados, empilhados, dispostos e cruzados em estantes como em um universo.

Era de propósito, como ele costumava cortar qualquer pergunta admirada do estranho-estrangeiro que ocasionalmente freqüentava e invadia sua solidão. E era mesmo, como ele acreditava, dessa forma, reproduzir na escala da casa uma espécie de aleph da biblioteca ilimitada e periódica que a leitura do conto de Borges lhe inspirara.

Outra presença literária e, nesse caso, também cinematográfica, no imaginário de seu quarto, bem na parede acima da cabeceira da cama era a reprodução em pôster do quadro do aventureiro Giacomo Girolamo Casanova com sua amante-autômato sobressaindo num pedestal sobre um fundo do mar de Veneza congelado. A boneca dançarina mecânica representada por Adele Angela Lojodice no filme de Fellini que ele vira na Itália em 1977, no mesmo ano de seu lançamento, sendo a conquista final deste Casanova protagonizado por Donald Sutherland, conquistara-o definitiva e silenciosamente.

Sonhara, várias vezes, com a materialização da boneca e com o aconchego frio de sua presença sem perguntas, sem respostas.

Evitava o quanto podia as visitas de quem quer fosse, no limite das necessidades e das fraquezas insuperáveis.

Tentara algumas vezes compensar o que ele próprio chamava, com ironia e certa dose de desprezo, os dilemas da carne, recorrendo, na internet, a sítios de comércio eletrônico de bonecas infláveis. Adquirira vários modelos por preços que variavam, do mais barato, de vinte dólares, ao mais cara, perto de duzentos dólares. Acompanhava com avidez curiosamente gulosa as novidades, os últimos lançamentos, os atributos, os movimentos, os prazeres anunciados. Todas as iniciativas resultavam, contudo, frustrantes em relação à expectativa de que pudesse ter, senão a dançarina de Fellini, ao menos um simulacro de sua discreta e ausente compreensão. Queria a boneca mecânica. Se Casanova a tivera no século XVIII, com mais razão ele poderia tê-la no século XXI com a revolução tecnológica, os avanços da informática, da mecatrônica, da robótica. Por que não uma lovedoll, uma boneca do amor, uma robolove, uma roboamor? Que soubesse e pudesse não só dançar, mas estar junto, fazer-lhe companhia, acompanhá-lo à mesa, ouvir suas lembranças, lembrar com ele detalhes esquecidos de sua história de vida, ajudá-lo a elegê-los, refiná-los, purificá-los do excesso de peso da realidade, ser amada, amar. Vesti-la, cortejá-la, despi-la à noite devagar e apaixonado, deitar-se com ela sob as cobertas no acalanto efusivo das investidas sem contestação! Tê-la e não ser incomodado. Estar com ela e não se sentir acompanhado. Seria isso possível? Como consegui-lo? Em que loja comprá-la? Em que oferta eletrônica, em que comércio virtual torná-la realidade?

Inútil querer encontrá-la pré-fabricada e pronta para o amor. As que adquirira, todas, mesmo as mais caras com dispositivos eletrônicos de mobilidade e aquecimento nas partes sexuais, embora silenciosas, como queria, eram também idiotamente quietas na sua indiferença. Era preciso construí-la, fazê-la original, singular, exclusiva. Mas como? Percorria as prateleiras da biblioteca caoticamente distribuídas pela casa e lia. Lia com paciência feroz e obstinada. Os clássicos, os modernos, os cultos, os vulgares, os refinados e os banais. Lia em busca da idéia, do conceito, da hipótese fecundante, do método, do manual de procedimentos.

Às vezes afloravam-lhe à pele pruridos, também éticos. Reforçados, quem sabe, pelas infinitas discussões e debates sobre o uso de embriões humanos para as pesquisas com células-tronco e pela certeza e o temor correspondente de que, mais dia, menos dia, tal como ocorreu com a ovelha Dolly, na Escócia, com a bezerra Vitória, no Brasil, e com outros animais em outras partes do mundo, o homem clona o homem, e aí adeus, natureza humana! Mas isso vinha e ia como coceira, até gostosa de coçar.

Do Frankenstein, de Mary Shelley, suas versões para o cinema, aos autômatos vegetais, eletrônicos, escatológicos ou quiméricos biodegradáveis, lia, relia, via, revia, devorava tudo. Lia autores e críticos, conhecia as fases da evolução da ficção científica estabelecidas por mestres como Asimov e estudiosos como Campbell para o gênero e não raras vezes acreditava estar perto de descobrir a palavra mágica, a fórmula, a equação, o truque que fosse, que o aproximaria, enfim, do Graal de sua existência.

Mas o tempo passava e nada de encontrar o artifício de seus sonhos, o estranho e familiar objeto do desejo, ele próprio também passando com o passar do tempo. De tudo o que lia e via, o mais recorrente era que se dedicava a assistir, por vezes seguidas, ao filme de Fellini e a fazer avançar e retroceder, em vídeo ou em DVD, as cenas da boneca mecânica e do amor que a Casanova por ela lhe sobra. Admira a atriz por seu desempenho automatizado e pela perfeição da maquiagem que faz dela uma imitação de estátuas com movimentos descontínuos como num filme cuja seqüência de quadros fosse projetada num ritmo de diapositivos em slides. Tinha certeza de que era ela a verdadeira musa inspiradora de todos os artistas anônimos espalhados pelos passeios das grandes cidades do mundo, imitadores de estátuas que, assim imitadas, imitam o homem que as imita. A vida imita a arte, que imita a vida, que imita...

Ocorreu-lhe que a solução poderia estar onde a via há tanto tempo e não a enxergava. E se suas convidadas ocasionais, ou mesmo uma mais duradoura, quem sabe permanente, pudessem ser preparadas para, estando juntos, estarem como autômatos. Isto é, estar sem estar ou sem parecer estar, ou só parecer, sem estar. Ser simulacro, simulação do ser.

Precisaria ter aprendido com o chefe da equipe de maquiagem, Rino Carboni, do filme de Fellini, a arte da transformação de Adele Angela Lojodice no amado robô de Casanova. Isso não sendo mais possível, dedicou-se, com zelo artístico, disciplina literária e método experimental, a estudar e a treinar a arte da transformação de si próprio para poder depois executar a transformação do outro. Antes de começar a exercer a robotização de suas ou de sua eleita, precisava preparar-se e estar tecnicamente apto para o pleno exercício da maquiagem que o levaria, chagada a hora, à metódica construção de seu robô amoroso, mesmo que sob o disfarce mascarado da ilusão passageira. E em si mesmo treinava. E quanto mais adestrado estava, mais exigente ficava, olhando por horas e horas, diante do grande espelho da sala, que antes os livros ocultavam, a imagem mutante que o ofício de transformar-se impunha à memória de seu dia-a-dia. Corrigia-se. Um detalhe aqui, outro ali, um aperfeiçoamento de linhas de um lado, um endurecimento de traços do outro e, assim, da mesma forma que o autômato nascia, ela também morria e se modificava.

Com os exercícios que lhe tomavam os dias, depois as noites, depois ainda os dias e as noites, foi perdendo a concentração do objetivo e abandonando, por desvio e esquecimento, o objeto de desejo que o trouxera à prática exaustiva da transformação do outro em si mesmo. De vez em quando voltava a assistir ao filme de Fellini. Deixava-o agora, correr, contudo, ao longo de sua comprida duração sem o vai-e-vem obsessivo das seqüências eleitas da boneca bailarina e do conquistador sem triunfo. Tinha também nessas ocasiões um sentimento novo, uma desconfiança talvez de que sempre estivera enganado sobre a verdadeira identidade das personagens que, no filme, por uma trapaça do gênio malicioso do cineasta, dissimulava, no herói apaixonado pelo autômato, a melancolia automática da razão e, na boneca mecânica dançarina, o movimento quebrado do amor constante, sem razão.

Nos campos do Senhor

Os grandes avanços da bioquímica, da bioinformática, das ciências biológicas, da genética, da biologia molecular e da própria genômica abriram perspectivas cada vez mais concretas para identificar e descrever uma anatomia neurológica para o aparelho psíquico com conseqüências importantes para o campo multidisciplinar das neurociências. Nesse sentido, são ilustrativos, por exemplo, os estudos publicados pela Science, fazendo uma revisão do tema das raízes orgânicas da violência, e cujo resumo pode ser lido em dois artigos de Drauzio Varella publicados no Caderno da Gazeta Mercantil, de 1º, 2, 3 e 8, 9 e 10 de setembro, de 2000, respectivamente. Nessa mesma linha, há o artigo de Fernando Reinach, “A materialização dos genes”, publicado na Folha de S.Paulo, em comemoração dos cinqüenta anos da descoberta do DNA, por James Watson e Francis Crick, que, aliás, aos 86 anos, pouco tempo antes de sua morte, anunciou, com sua equipe de trabalho, na revista Nature Neuroscience, a identificação das células responsáveis pela consciência.

Fernando Reinach, um dos responsáveis pela idealização e a implementação do Programa Genoma da Fapesp, escreve no artigo mencionado:

Quem vive hoje acha difícil imaginar que talvez um dia a mente esteja tão firmemente ancorada no cérebro quanto a hereditariedade está ancorada na estrutura do DNA. Nesse dia ouviremos no rádio “Foi tirada uma amostra da consciência do senador fulano de tal e, após exame do material nos laboratórios do Judiciário, ficou constatado que na época ele tinha consciência de que estava cometendo um ato ilegal ao mandar violar o painel do Senado”. Nesse dia acharemos isso tão natural quanto a notícia: “Após uma cirurgia de várias horas sob anestesia geral, sem se lembrar de nada, João acordou e sentiu no peito os batimentos do coração de Maria, que tinha morrido em um acidente de automóveis no dia anterior”.

Esses dois exemplos mostram a principal conseqüência desse processo de materialização: ele permite que os conceitos sejam incorporados em tecnologias. E, com a tecnologia, vem o poder de manipular a natureza e, com o poder, novas possibilidades, novos riscos e novas responsabilidades.

Esses seres vivos, descendentes de algum macaco africano, auto-intitulados como homens sabidos ( Homo sapiens ), já podem manipular a constituição dos seres vivos. Afinal, clonar a ovelha Dolly, a partir das células da glândula mamária de sua mãe, não é muito diferente do ato de “clonar” Eva a partir de uma costela de Adão.

Mais recentemente, o autor volta ao tema no artigo “A origem da consciência” para, fazendo eco a estudo publicado na Nature (vol. 442, p. 692, 2006), reafirmar o progresso das pesquisas sobre a materialidade genética, isto é, feita de genes, da consciência.

O que está em questão aqui é a oposição natureza ´ cultura, à qual nos habituamos, pelo menos desde o século XVIII, quando nasce o que hoje chamamos ciências humanas. Suas fronteiras conhecem, sobretudo a partir do século XX, dadas a intensa interpretação dos campos do conhecimento e a multidisciplinaridade de suas abordagens científicas, uma intensa dinâmica de transformações, com avanços significativos da natureza sobre a cultura, isto é, das explicações naturais e quantificáveis sobre as explicações culturais e imensuráveis. É, certamente, a isso que se refere o artigo de Fernando Reinach. Também, no mesmo sentido do alargamento e da invasão das fronteiras da cultura pela natureza, é que o biólogo Edward O. Wilson, primeiro com seu livro de 1975, Sociobiology: the new synthesis Sociobiologia: A nova síntese , depois, em parceria com o físico Charles Lumsden, com os livros Genes, mind and culture Genes, mente e cultura , de 1981, e Promethean fire O fogo de Prometeu , de 1983, afirma que a sociologia não poderia se tornar uma verdadeira ciência a menos que fosse submetida ao paradigma científico darwiniano. As críticas a Wilson foram muitas e entre elas a de que sua teoria sobre a natureza humana era “sombriamente mecanicista” e “simplista”. Nesse caso, recuperam-se, ao menos em parte, os territórios e as fronteiras da cultura.

O contrário pode ser igualmente verdadeiro, isto é, a invasão do campo da natureza pela cultura da técnica e da tecnologia. É o que acontece, por exemplo, se considerarmos o desligamento cultural do ato sexual entre humanos de sua função biológica de procriação, e mesmo a possibilidade real desta, sem o ato sexual. Ray Kurtzweil, diretor do Grupo Kurtzweil Technologies, no ensaio “Ser humano – versão 2.0” (na Folha de S.Paulo e no site www.kurtzweillai.net ), discorre sobre a possibilidade de ocorrer a mesma coisa com o ato de comer, separando o prazer que ele acarreta da função nutriente dos alimentos para o organismo, à qual ele está ligado, que se tornaria real pela ação de nanorrobôs inteligentes que saberiam a hora certa de entrar e sair do corpo humano para cumprir com diligência e muito mais eficácia sua missão nutricionista. Enfim, aqui também, presente, como em toda evolução do conhecimento humano, a tensão entre o modelo explicativo aristotélico da natureza como um órganon com finalidades próprias e o modelo da tékhne platônica da interferência dos gonzos, da construção da máquina e da harmonização construída do mundo.

O seqüenciamento do genoma humano, hoje já concluído, oferece-nos ao conhecimento a materialidade dos sinais que constituem o nosso código genético. Não é ainda um alfabeto porque este implica uma linguagem e um conjunto de regras de combinação sintática e de associação semântica que um conjunto de sinais, apesar de ordenados, não possui. Da “linguagem da vida” temos, quando muito, as letras, o que não é pouco. Faltam-nos, no entanto, o vocabulário, as frases e os enunciados de sua significação no mundo. Mesmo sem brincar de ser Deus, trata-se de uma grande conquista, que, despossuída da arrogância do conhecimento orgulhoso, estende o alcance da ação do conhecimento puro e de sua utilidade para o bem-estar do homem e do prazer da vida em sociedade.

Utopias

Ao sair de casa, naquela manhã, deste ano distante do senhor, 2050, não me dei conta, de imediato, de que estava numa terra estranha. Mais estranha ainda porque parecia familiar. A mistura de estranheza e familiaridade, depois, ou melhor dizendo, antes, percebi, dava-se particularmente pelo fato de estar na minha cidade, na minha terra, no meu país e, ao mesmo tempo, não me ver reconhecido nos cumprimentos que trocava, automaticamente, com os transeuntes daquela manhã de esperança e desespero.

Ao sair de casa, naquela manhã, daquele ano distante do senhor, 2050, não se deu conta, de imediato, de que estava numa terra estranha, num futuro próximo, num espaço hostil para onde havia sido teletransportado na noite anterior. Por sua vontade e contra ela. Por sua vontade, porque, na curiosa sofreguidão de seus vinte anos, não via a hora de conhecer o que era proibido para os que, como ele, não portavam desde o nascimento o gene da distinção. Contra a sua vontade, porque, ao ser descoberto em seus anseios, pela leitura digital cotidiana de sua transpiração, como era rotina no alojamento dos assim chamados “despossuídos genéticos”, o guarda de zelosos programou-lhe, como castigo e susto preventivo, a teletransportação ora em curso, para expô-lo aos riscos do inusitado e, desse modo, aplacar-lhe o desejo do inominável.

Frederico Otávio Ribeiro jamais seria o mesmo, nem antes, nem durante, nem depois da viagem de seu alheamento.

Ao sair de casa, na manhã cinzenta deste dia, comum como outros dias, do calendário em curso – ano do senhor, 2050 –, ele não podia deixar de pensar na aventura de ter podido escapar ao controle dos zelosos e ter ido visitar na noite anterior uma colônia de excluídos nas franjas da Colina dos Remitentes.

Passara a noite com eles e embebedara-se com seus rituais e práticas, de que só tivera conhecimento pela leitura clandestina dos diários de seu avô, descobertos enterrados no jardim virtual do sítio de preservação ambiental, no clube freqüentado por sua família.

Caminhava com a sensação de algo travado nas suas relações com os planos de futuro que lhe eram ensinados a cada dia na escola vocacional de líderes, que todos, como ele, distinguidos pela seleção genética dos diretores da vida, freqüentavam na idade da consolidação de suas virtudes sociais.

Alguma coisa como que se rompera.

Um frasco de vinagre, um vinho envelhecido pela coroa de borra branca, um amargo no fundo da língua, perto da garganta, um travo de sensação – sentimento era a palavra nos escritos do avô – de que já não seria possível levar-se no presente com a mesma tranqüilidade aplastada pela certeza confiante de futuros tranqüilizadores.

Era o passado que nesse momento o diferenciava, tornando-o igual, em detalhes e em conceitos, a si mesmo, visto de fora e de dentro, em situações que, não tendo vivido de fato, no entanto, reconhecia, e nelas se reconhecia pela vivência narradora do avô no estilo despretensioso do simples registro da vida.

Essas três breves aberturas de narrativas com foco no futuro, inventadas ao acaso e como exercício para o tema de ciência e ficção, ou seja ficção científica, ou ainda ciência fictícia, têm em comum um traço que considero constitutivo do gênero: a tristeza inerente ao impossível. São tristes os heróis das utopias por duas razões fundamentais. A primeira é que vivem, no futuro narrado, a transgressão sem conseqüências (a não ser para confirmar a sua própria impossibilidade) de um presente ameaçador das histórias do passado. A segunda razão é que, sendo único, mesmo que numa alegoria, o herói vive no limite de querer realizar o que sua consciência cidadã, seu alter ego, se se quiser, diz-lhe para não ousar fazer mesmo que tenha poderes para tanto: mudar o passado, alterando o rumo da história, interferindo na série dos acontecimentos, reordenando-lhes o sentido e mesmo usurpando-os da morte.

Há coisa mais triste do que a cena em que, num dos filmes do Super-Homem, inconformado com a morte da namorada, o homem de aço, torturado pelas suas responsabilidades éticas e civis, não consegue deixar de se levar pelo amor e, fazendo a Terra girar em rotação contrária, transgride a razão por causa da mulher? E a música de Gilberto Gil que também se chama “Super-Homem”, poderia ser mais bonita e mais triste?

Tristes são os heróis das duas mais famosas utopias escritas no século XX: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, a primeira publicada em 1932 e a segunda, em 1949. Num caso e noutro, quer pelo controle genético, quer pelo controle político, as sociedades que nos livros se desenham são altamente controladas e artificialmente felizes. Os heróis, o selvagem, no primeiro, e Winston Smith, um programador da história no Ministério da Verdade, no segundo, vivem, a seu modo, os contrapontos da ruptura subjetiva que a ordem estabelecida provoca em cada um deles pela exposição de suas vidas e experiências ao antigo e ao novo, alternativamente, ao passado e ao presente, à memória e ao sem-memória, ao amor e ao total esquecimento.

A mais famosa utopia de que se tem notícia é a que está contida na obra de Thomas More, que imortalizou a palavra no próprio ato de sua criação. No livro Utopia, publicado pela primeira vez em 1516, a ilha do lugar nenhum, num tempo sem coordenadas, é, ao mesmo tempo, uma crítica à situação econômica da Inglaterra de seu tempo e a idealização de um Estado político que poderia ser alinhado como matriz de idéias que muito tempo depois seriam criticadas por Marx como próprias do socialismo utópico em oposição ao seu, assim chamado, socialismo científico. Sir Thomas More, como se sabe, foi um grande intelectual humanista e político, mas caiu em desgraça por recusar-se a aceitar o divórcio do rei Henrique VIII da rainha Catarina de Aragão para permitir seu casamento com Ana Bolena. Acusado de alta traição, confinado na Torre de Londres, foi executado em 1535, e posteriormente, passados mais de três séculos, em 1886, beatificado e, em seguida, já no século XX, em 1935, sob o papado de Pio XI, a quatro séculos de distância de sua morte, tornado santo pela Igreja Católica Apostólica Romana. Pode haver trajetória de maior reconhecimento e sucesso e a um só tempo de tão reconhecida tristeza e melancolia do que essa?

De maneira geral, as utopias da ficção, científica ou não, têm em comum a idealização de um sistema social sem propriedade, ou, ao menos, sem a sua perpetuidade, de modo que o estado de feliz beatitude dos “utopianos”, através dos tempos, venha, desde A república, de Platão, anunciado sobre a suposição de igualdade entre todos, a menos dos escravos, é claro, e sem os móveis materiais da ganância e das desvirtudes suas aparentadas. Basta lembrar que, na ilha de Thomas More, o ouro e a prata não têm utilidade na sociedade dos felizes, a não ser como material para confeccionar grilhões para os escravos, situação a que, como punição e castigo, são levados os prisioneiros de guerra, os adúlteros e os criminosos.

Nessa linha de desprendimento material de que faz apanágio o desapego da propriedade, a obra de Morelly, Brasiliade, de 1753, influenciada pelo trabalho de Thomas More, não só aponta a propriedade privada como o mal maior da humanidade, como considera que os meios de produção, no caso agrícolas, devem estar sob total controle do Estado, apenas tolerando-se a religião e preservando o papel fundamental da família na estrutura do tecido social.

Nessas e em outras utopias, o controle da sociedade é, como dissemos, ou político ou científico, quando não os dois a um só tempo, e muito mais raramente e mesmo nunca de política científica ou de ciência política, que são, na verdade, invenções mais recentes, uma para tentar dizer socialmente o que deve ser a ciência e outra para tentar explicar como é a política. São, de qualquer forma, menos utópicas do que os estados que projetam ou do que aqueles cujos mecanismos de funcionamento tentam expor à compreensão pública dos cidadãos que neles vivem. Utopia?

Voltando às nossas ficções, o traço de tristeza que lhes é constitutivo tem a ver com a utopia do igualitarismo social que ou apregoam, no caso das utopias clássicas e das que delas derivam, ou que desenham, com feio horror, em tons cinzentos de monótona mesmice, como é o caso de Admirável mundo novo e 1984. Num caso, pinta-se o paraíso perdido a que se quer voltar; no outro se projeta, em negativo, o paraíso que já se perdeu, sem, contudo, a consciência da perda e da própria impossibilidade de sua recuperação.

A impossibilidade de sucesso da aventura traz a tristeza do esforço desgastado da humanidade. E os heróis são tristes, as sagas são tristes, as situações de convivência são tristes porque triste é o peso incomensurável da queda e da perda mítica e definitiva do estado de graça original em que Deus, no Gênesis, pôs a mulher e o homem no Éden, deixando-os, entretanto, à sorte de sua curiosa fascinação e horror pela árvore da vida e pela árvore do conhecimento.

Os paraísos assim idealizados, qualquer que seja o sinal, positivo ou negativo, são, na verdade, infernais, ou porque se está neles ou porque se quer sair deles, ou ambas as coisas, sendo que o movimento para o futuro é quase sempre a afirmação metafórica da idealização do passado e do esforço vão de fazê-lo acontecer novamente, inutilmente. Mesmo que pela escritura poética de grandes autores como Asimov, Arthur Clarke, Ray Bradbury, só como exemplo, nós nos convençamos e sejamos até mesmo persuadidos de que em algum ponto de cruzamento de nossos passados, individuais e coletivos, alternativas de rotas se apresentaram para outros futuros que não esses que conhecemos na realidade do presente em que vivemos. Mas essas rotas não foram seguidas, e a escolha feita, por determinação de leis ou pelo acaso de circunstâncias, foi única, na singularidade positiva de sua afirmação e múltipla na afirmativa da negação da escolha, feita também da ausência paradigmática de todas as alternativas negadas.

No fecho do livro As cidades invisíveis, Italo Calvino enumera no atlas do Grande Khan “mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas”, e que são, na verdade, utopias desenhadas por diferentes autores, como é o caso de Thomas More, de Tommaso Campanella com sua Cidade do sol, do marquês de Sade com sua Tamoé no livro Aline e Valcourt, e de outros mais. O Grande Khan folheia seu atlas e percorre os mapas de cidades ameaçadoras, aquelas que “surgem nos pesadelos e nas maldições”: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Admirável mundo novo. No diálogo final, diz o Grande Khan: “É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito”. E Polo:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada, exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Para onde aponta, no atlas, o diálogo de Marco Polo e o Grande Khan? E no mapa apontado, para que ilha, continente, cidade, abrigo volta-se a flecha indicativa do caminho a seguir por cada um de nós, pela sociedade, pela humanidade em trânsito? No livro de Italo Calvino, pode-se dizer que contar, narrar o invisível é mostrar, revelar o aparente, de modo que, ao falar do que não existe como geografia real, o autor nos leva a descobrir a realidade geográfica do mapeamento de nossa inserção no mundo como acidente permanente, pelo acontecimento, e como permanência incidental, pelo transcurso do acontecido.

Os futuros por que a literatura nos leva a viajar, nos vôos da ciência e da imaginação, são, no caso das boas obras de ficção científica, muito menos peças enfadonhas de futurologia e mais pousos assentados de reflexão, humor e poesia sobre a saga incontinente do homem em torno do fato, em torno do mundo, em torno do homem, em torno de si mesmo. A obra de ficção científica, ao projetar futuros, fala do presente para entender passados e, assim, apontar alternativas para futuros já irrealizáveis. Por isso, a impossível tristeza desses futuros, como a da cena final antológica da fuga do par amoroso em Blade Runner no sobrevôo dos campos verdes e fecundos de estéril solidão.

Ficções

François Jacob, intelectual e biólogo destacado, no livro O rato, a mosca e o homem, publicado no Brasil em 1998, termina suas análises e reflexões com uma avaliação importante e uma inquieta profecia. A avaliação é sobre o século que terminou há menos de uma década; a inquietação, sobre este século que agora se desenrola. Diz ele: “ Somos uma temível mistura de ácidos nucléicos e lembranças, de desejos e de proteínas. O século que termina ocupou-se muito de ácidos nucléicos e de proteínas. O seguinte vai concentrar-se sobre as lembranças e os desejos. Saberá ele resolver essas questões?”.

É cedo para responder, mas provavelmente não. O que não quer dizer que não se continuará a buscar respostas e que o conhecimento deixará de caminhar em sofisticação e entendimento do homem, do mundo e das intrincadas e complexas relações entre eles.

Muitos apontam, no século XX, três grandes marcos do avanço do conhecimento científico e tecnológico: o Projeto Manhattan, que produziu também a bomba atômica; o programa espacial, que, em 1969, levou o homem à lua, embora parcela significativa da população do planeta continue a duvidar do feito; e, na última década do século, o Projeto Genoma Humano, além dos que se seguiram sobre outros seres vivos, animais e vegetais, do genoma do câncer e de outras patologias que afligem a humanidade.

A tecnologia do seqüenciamento de genes foi aperfeiçoada e seus resultados acelerados graças a outra tecnologia contemporânea, a da informação, que permitiu, pela agregação de conhecimento de diferentes áreas, entre elas a da biologia molecular, o desenvolvimento da bioinformática. Por outro lado, esse ponto de relevo dos estudos biológicos encontra respaldo numa história um pouco mais antiga, que remonta, no século XVIII, a Maupertuis, mais especificamente a Darwin,, no século XIX, com a publicação, em 1859, do livro A origem das espécies, e ao monge austríaco Gregor Mendel, considerado o pai da genética, que, em 1866, publicou seus estudos fundadores sobre a transmissão de características de ervilhas de uma geração para outra, dando, assim, nascimento à formulação de leis gerais da hereditariedade.

Em 1953, só para citar outra data de referência importante para as pesquisas genéticas e para os futuros estudos da genômica, James Watson e Francis Crick realizam a descoberta do DNA e a dupla hélice da representação de sua estrutura passa a girar e a gerar a dinâmica dos estudos da vida, traçando para a biologia o caminho de seu ingresso no universo das chamadas ciências pesadas que lidam com a quantificação do conhecimento e, para tanto, necessitam da materialidade conceitual e metodológica de seu objeto.

A materialização dos genes, nesse sentido, é um passo fundamental não só para a multiplicidade de campos de atuação da genética, para as áreas de fronteira, abertas com o seu desenvolvimento, como também para a ambição de estabelecer leis gerais determinantes do comportamento animal e do comportamento humano assentadas sobre bases naturais mais do que culturais, tendendo, em alguns casos, a ver a própria cultura como determinação da natureza biológica do ser vivo.

É o que, de certo modo, caracteriza a sociobiologia nascida nos anos 1970 com os trabalhos do biólogo Edward O. Wilson e os estudos comparados do comportamento humano realizados por Konrad Lorenz, em etologia, que serviram de inspiração a Wilson, nos quais apresenta a evolução do homem em termos de tendências inatas submetidas à seleção por influência do meio ambiente. Quando se fala em comportamento humano, no caso da sociobiologia, não se quer referir apenas aos que dizem respeito às funções vitais de reprodução, mas também àqueles que dizem respeito à política, à ética, à estética, e assim por diante, abrangendo todos os domínios das relações e dos relacionamentos sociais do indivíduo. A sociobiologia, com todos os problemas científicos com que se apresenta e as dificuldades daí decorrentes para seu reconhecimento no mundo da ciência, além das resistências culturais e ideológicas que provocou e que continua provocando, é a expressão concreta da tendência que, no conhecimento, busca, se assim se pode dizer, a naturalização da cultura ou do que, tradicionalmente, é visto como cultural.

Nas palavras de Edward O. Wilson:

As principais teses da sociobiologia são fundadas no estudo de uma miríade de espécies animais e resultam de centenas de investigações em diversas disciplinas biológicas. Foi, assim, possível, pelos métodos tradicionais dos postulados e de dedução da ciência teórica, derivar proposições e tentar muitas delas por meio de estudos quantitativos.

Porém, como bem observa Jacques G. Ruelland no livro L'empire des genes – histoire de la sociobiologia O império dos genes: História da sociobiologia , publicado em 2004 pela École Normale Supérieure de Lyon,

Os estudos quantitativos de que fala Wilson não provam a existência de genes. A sociobiologia passa arbitrariamente da ordem dos dados matemáticos para a da homologia entre as estruturas de organização social dos insetos e as dos humanos, supondo que efeitos similares têm necessariamente uma única e mesma causa: a presença de genes comuns aos animais e aos humanos. Os sociobiologistas buscaram esse procedimento nos etólogos.

O fato é que o surgimento da genética, termo cunhado por William Bateson em 1905, consolida a tendência dominante no século XX da formação de novas áreas do conhecimento por agregação de áreas existentes, e não pela particularização e fragmentação de antigos domínios teóricos da ciência – tal como ocorreu, de maneira significativa, ao longo de todo o século XIX. E tal como ocorreu, epistemologicamente, para a constituição da genética, continuou a ocorrer com o seu desenvolvimento e com a formação subseqüente de vários novos domínios fronteiriços e multidisciplinares do conhecimento, entre eles aquele do campo complexo e fascinante das neurociências, ou o da própria sociobiologia, ainda que com as dificuldades teóricas e metodológicas que acabam de ser mencionadas.

Os genes estão por toda parte na ciência, na cultura, no imaginário, na arte, na ficção. Prometem e ameaçam, empurram e provocam a psicanálise, acenam com a cura, com a longevidade, com a perenidade do prazer da vida; brandem, ao mesmo tempo, a perfeição, como uma clava doce e terrível de mesmice e desprazer com a existência. À fascinação, com a busca dos determinismos biológicos de nossos comportamentos sociais, opõe-se o medo da manipulação genética do código da vida. Entre as duas pontas, a distância deve ser medida pelo alcance de nossa curiosidade e pelo limite de nosso alcance.

Ao sentido da vida, ao destino do homem, a poesia, a religião, a metafísica têm algo a dizer, mesmo que nisso que diga nada se encontre da materialidade com que é investido o gene no seu protagonismo científico contemporâneo. Como diz François Jacob no livro aqui citado, “nenhuma ciência pode trazer respostas a tais perguntas”. O que não quer dizer que a ciência não deva continuar perguntando, de forma sistemática, o que pode responder e que está ao alcance dos limites do conhecimento científico, que estão longe de ser atingidos, como prova a grande revolução causada pelos estudos genéticos de Mendel quase um século e meio atrás e os cenários “ilimitados e periódicos”, como a biblioteca de Babel, de Borges, que continuam a se descortinar para o conhecimento científico da vida e seus semelhantes.

* Este ensaio é, com modificações e acréscimos, o resultado da fusão de artigos publicados, nos últimos anos, na revista eletrônica ComCiência.

Sob a forma de ensaio foi publicado, originalmente, na revista Ide – Psicanálise e Cultura, São Paulo, v. 29, n. 43, p. 80-88, nov. 2006. Republico-o aqui na revista ComCiência, neste número dedicado a “Monstros”, já que tem com eles uma certa familiaridade, ou melhor talvez possa dizer alguma estranheza.

Referências

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