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Artigo
Os monstros no papel: imprensa e debate político no século XIX
Por Marco Morel
10/10/2007

Na primeira geração da imprensa no Brasil, início do século XIX, se repetiam alusões a monstros, animais e deformações corporais humanas, como arma simbólica de embates, gerando uma verdadeira “zoologia política”. Era uma forma de atacar os adversários ou, até, de auto-valorização, dependendo de como se usava. Imagens verbais de monstruosidades povoavam o vocabulário impresso, repletas de significado.

É claro que tais metáforas fazem parte de fenômeno mais vasto, na medida em que englobam toda trajetória humana, e não apenas um momento de nossa própria civilização ou nacionalidade. Trata-se de uma das mais antigas expressões culturais produzidas ao longo dos tempos e das civilizações, desde as pinturas rupestres, passando pelos bestiários medievais, pelas lendas fantásticas dos descobrimentos, etc., até os dias de hoje. Basta lembrar, no caso do Brasil recente, os "gorilas" e "tubarões" dos anos 1960 ou os "anões" do Congresso Nacional dos anos 1990. Além do aspecto pitoresco ou anedótico (e por que desprezar o humor?), estas manifestações fazem parte de aspecto básico dos códigos e das relações numa sociedade.

Mais particularmente no início do século XIX, a importância da noção de razão cruzou-se com um tipo de expressão cultural existente ao longo dos tempos e das civilizações. A razão era o ponto principal de legitimidade política e quem não se enquadrasse era visto como irracional, monstro, animal... Era época de afirmação nacional e das Independências, como no caso brasileiro. Múltiplas imagens zoológicas povoavam a discussão pública.

Imagens de monstros

Aos inimigos da independência aplicava-se este tipo de comparação. Apesar da evidente intenção injuriosa, essa caracterização mantinha-se num campo humanizado – o que de certa forma preservava os atingidos de serem comparados aos animais. Afinal, eram esses adversários os mesmos que encarnavam um certo modelo de civilização…

As afirmações eram explícitas, como no jornal Reclamação do Brasil publicado no Rio de Janeiro em 1822:

“Não são Portuguezes, não são homens; são monstros mais hediondos que os do Museu de Aldrovando”. José Clemente Pereira, que embora nascido em Portugal fizera sua carreira no Brasil, fora um dos mais ardorosos combatentes pela independência, em 1822, mas era sempre acusado de pertencer ao "campo português", isto é, despótico, durante o Primeiro Reinado brasileiro. Em razão dessa trajetória pessoal, Clemente era acusado de “traidor da nossa Pátria” e “monstro inquieto e perverso” por seus adversários.

A monstruosidade não era somente associada aos que nasceram na Península Ibérica, mas a todos os que formavam o campo político chamado de português, quer dizer, identificado ao absolutismo e ao anti-patriotismo brasileiro.

Os adeptos do "partido recolonizador” eram chamados pelo jornal O Repúblico de "monstros inimigos encarnissados da monarquia constitucional” que almejavam “o errado intento de verem se assim volvem os mizeros dias coloniaes”.

Monstruosidade assim era antagônica ao liberalismo político e constitucional, ou seja, às chamadas liberdades modernas. Nessa ótica, compreende-se o texto seguinte, do mesmo periódico:

“O Povo, como o mais interessado no triunfo da Constituissão, exuberantemente provou que tem dispozissão bastante para fazer triunfar, e reduzir a pó o monstro que a quizer manxar”.

O ex-imperador Pedro I, que abdicara do trono em 1831, era também nomeado de monstro e enganador por um jornal cujo título sugestivo era O Tribuno do Povo :

“Ja não existe entre nós o monstro que por longo tempo nos embaio; nosso valor o expelio do trono, Brazileiros (...)”

A monstruosidade tornou-se assim um dos paradigmas de busca da racionalidade política. O monstro é desumano, quer dizer, ameaça os valores de liberdade, de Constituição e de pátria que caracterizam os direitos humanos. À maneira das terríveis figuras que povoavam de fantasmas a imaginação dos descobridores dos novos mundos desde o século XV, os descobridores – ou construtores – das nações independentes tinham, de sua parte, outros "monstros" a enfrentar, mas eram aqui criaturas de carne e osso, freqüentadoras de salões e palácios.

Na simbologia, ao longo da história, sabemos que o monstro aparece com assiduidade como guardião de um tesouro: é preciso vencer dificuldades e superar obstáculos para conseguir vencê-lo. O monstro representa assim um rito de passagem, que pode ir até o ponto de devorar os homens, para que nasça então um homem novo. Forma hedionda de um desejo pervertido, de forças irracionais, mas também símbolo de ressurreição. Neste contexto específico, tais imagens não estavam deslocadas: tratava-se, como se sabe, de momento de passagem da colônia à nação, do absolutismo ao liberalismo constitucional, ou da barbárie rumo à civilização...

A imagem de deformação atribuída aos despóticos criou uma forma particular no contexto brasileiro da época: o "corcunda" político. No decorrer do processo de independência, e num quadro de longa-duração que persistiria até o começo do século XX, a imagem do português corcunda esteve em moda no Brasil.

Do lado espanhol da América, havia o hábito, entre os liberais, de chamar os adeptos da monarquia absolutista espanhola de "corcovados", numa alusão ao gesto de reverência diante do monarca, quando o cerimonial exige que os súditos devem se curvar. Esta denominação possivelmente se expandiu no mundo português, chegando ao Brasil. Em geral, a mutilação, a deformidade, aparece como depreciativa, nas diversas mitologias.

Os "corcundas" tinham, mais visivelmente, algo de monstruoso. Eles pertenciam, na verdade, à família de monstros do despotismo: “Hidra do Carcundismo, ferra em ti mesmo os dentes(…), escrevia-se num jornal chamado, aliás, O Macaco Brasileiro, de 1822.

É curioso verificar que o sentido da palavra corcunda, enquanto adversário do liberalismo constitucional, é encontrado justamente em Portugal em 1821, em plena revolução constitucional. Foram os patriotas portugueses que nomearam dessa maneira os adversários anti-liberais, mas a expressão atravessou o oceano e, no Brasil, foi apropriada para se transformar em sinônimo de correligionário do "campo português".

Os corcundas, assim, eram aqueles que se mostravam favoráveis à antiga denominação portuguesa, segundo o jornal com o apimentado título de A Malagueta :

“Os Corcundas finalmente dirão o mesmo, mutatis mutandis, a esperança que o atrazo moral do Brazil, junto com a necessidade de manejar a Escravatura, e de ter força armada em pé, facilitaria em pouco tempo o regresso do Seculo de Marfim do Alentejo, que para elles foi tão propicio, e do qual só perderão as expectações à vista de huma Constituição (…)”.

Porém, bem rápido, esse rótulo ultrapassou a identidade portuguesa para se associar aos "despóticos" em geral. Os "corcundas" políticos eram aqueles que se preocupavam em denunciar a demagogia, a anarquia, os revolucionários. Eram sobretudo inimigos das "novas idéias", isto é, do liberalismo constitucional: “Aulicos corcundas, que chamão demagogia ao nosso liberal sistema, que não agrada a taes bizouros, e sangue-xugas do Povo”.

Houve até o caso do jornalista e médico baiano, Cipriano Barata, que criou em seu jornal Sentinela da Liberdade um personagem fictício, Marcos Mandinga, inventor de uma “máquina de endireitar corcundas”. Cada vez que um ato de arbítrio do governo acontecia, o redator “ameaçava” enviar Marcos Mandinga para curar os desvios.

A “zoologia política”

Havia, de maneira mais intensa, uma tentativa de animalização, através de metáforas que visavam desqualificar o adversário, apresentando-o como irracional, isto é, sem razão que legitimasse suas condutas políticas. A voz (enquanto expressão pública) e a linguagem eram associadas aos gritos, à ferocidade. Essas apreciações eram dirigidas sobretudo a um campo político e social vasto e diferenciado, englobando republicanos, liberais exaltados, escravos, mestiços livres, entre outros. Alguns desses, por sua vez, tentavam revidar tais ataques incorporando-se à mesma lógica, elaborando também comparações de animais.

A animalização tornava-se um trunfo do tipo patriótico, aos olhos do redator do jornal que tinha como título nada menos que O Minhoca – Verdadeiro Filho da Terra :

“Se nos he licito dizer, não havendo por ahi alguns embargos de 3°, que o Minhoca he o verdadeiro Filho da Terra por n'ella se haver gerado, creado e domiciliado (…)”.

É de se observar que o discurso patriótico, duramente atingido pelas imagens de animais, tentava por sua vez escapar às críticas, mas sem romper com a lógica de animalização. Nesse sentido, ser animal – ou minhoca – era apresentado como algo positivo.

Todas estas polêmicas “zoológicas” criavam, com boa dose de humor, uma quase banalização dessas expressões nas discussões políticas. O tema dos animais tornou-se comum entre as metáforas cotidianas na imprensa de opinião. O conhecido redator do jornal Aurora Fluminense, Evaristo da Veiga (autor da letra do Hino da Independência) chegou mesmo a compor uma verdadeira tipologia dos jornais sob essa ótica:

“O Analista he representado por um lindo Gallo; o Jornal do Commercio pelo rouxinol; o Diario Fluminense, por hum lindo canario, que fulmina; o Amigo da verdade pela pomba; o Telegrapho pelo pintasilgo; e o Courrier pela aguia. Deixando as aves domésticas ou domesticadas do viveiro ministerial, os jornaes liberaes, ou da opposição são simbolizados pelo modo seguinte – o Pharol he abutre; o Astro Yahu; a Malagueta cascavel; a Aurora raposa; a Gazetta Parahibana serpente; a Astréa orarau; o Universal finalmente um gato. Nem se lembrou o pob re sonhador que, destes animaes, a mesma rapoza, que he hum dos nossos valentes, dando no galinheiro destroçaria toda aquella passarinhada”.

O trecho é interessante. Primeiro porque os jornais pró-governamentais (tratava-se do Primeiro Reinado) eram classificados entre as aves domésticas – mais domesticadas e menos ameaçadoras; a imprensa de oposição era comparada com as feras. Vemos aqui reaparecer o dualismo racional/irracional no registro político. E como o narrador era, a seu turno, redator de um desses jornais de oposição, ele tentava escapar ao lado depreciativo da animalização, esforçando-se em valorizar a sagacidade, a força, enfim, a energia da raposa que ele foi acusado de ser.

Este período de consolidação da independência política, que se constituiu também num dos momentos fundadores da nacionalidade (que ocorrem, aliás, em profusão no Brasil…), foi sobretudo marcado pelas primeiras experiências de modernidade política, no sentido do liberalismo censitário e representativo. Entenda-se: modernidades e transformações de valores culturais e políticos que, ainda assim, se davam num quadro híbrido, agregando permanências e tradições que muitas vezes tinham até peso maior. As metáforas de animais, monstros e deformações fazem parte de uma lógica que indica tentativa de enquadramento, controle e dominação. Situadas nesta época "fundadora", elas podem ajudar a compreender traços das estruturas mentais ditas de longa-duração, que participam da conformação da identidade e das relações sociais da sociedade brasileira ainda hoje.


Marco Morel é historiador, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador do CNPq.