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Reportagem
Quase como nós
Por Yurij Castelfranchi
10/10/2007

São milhares. Estão por todo lado, nos cercando. Molhados ou gigantes, peludos ou malucos, cômicos ou sanguinários. Com chifres ou sem olhos, com patas ou sem coração. Babando, cuspindo, claudicando, mordendo. Nos cercam. São monstros: tão numerosos, tão diversos. Podem ter super-poderes como o Proteu da mitologia grega, ou como o Coisa do Quarteto Fantástico. Podem ser burros como o Golem da antiga lenda cabalística. Às vezes são nojentos como os zumbis, ou invencíveis como o Alien no filme de Ridley Scott. Às vezes são lindas “monstras”, terrivelmente sexy como Mística em X-Men, mas nem por isso menos monstruosas. Podem ser do bem, mas aflitos por incontrolável raiva, como Hulk. Pode ser feios mas cheios de amor para dar, como Quasímodo, o Corcunda de Notre-Dame, ou como a Fera com sua Bela. Podem ser assustados, psicopatas, atrapalhados, gênios. Podem nos assustar tremendamente ou nos fazer rolar de rir. Tantos e tão diversos, os monstros aparecem em todas as épocas e todas as culturas. Parece que precisamos deles a nosso lado. Por quê?

Ubíquas monstruosidades

Edgar Franco é especialista em monstros. Convive com eles. Os cria, também, como autor de HQs. Para ele, artista multimídia, doutor em artes pela Universidade de São Paulo, os monstros nos acompanham porque “ revelam, em sua forma híbrida, algo de humano. Eles são metáforas visuais alentadoras, rememoram-nos de todos os nossos aspectos obscuros, de nossa sombra”. Em alguns casos, de acordo com o artista, os monstros fazem-nos rememorar nossa animalidade e por esse motivo “são amados por uns e odiados por outros. Os primeiros encontram neles algo de libertário e revolucionário. Os que os temem ou repudiam, têm medo de confrontar-se com algo de si mesmos que insistem em negar”.

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Imagem: Edgar Franco

Alfredo Luiz Suppia, mestre e doutor em multimeios pela Unicamp, especialista em cinema e ficção científica, também acredita que os monstros são difusos porque “estão dentro de nós, como já havia sugerido Robert Luis Stevenson em The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (O médico e o monstro, 1886). De acordo com Suppia, que é docente da faculdade de jornalismo da PUC-Campinas, os monstros personificam “as zonas obscuras de nossa interpretação do mundo”. Além disso, “simplificam, muitas vezes, o problema da alteridade”. Enquanto alguns monstros “são mais virtuosos que os humanos (como a criatura do Frankenstein de Mary Shelley), outros representam o que há de mais repugnante nas pessoas, geralmente encarnado num corpo ‘anormal'”. No primeiro caso, diz Suppia, “o monstro denuncia a falibilidade das aparências e a fraqueza de nossos valores. No segundo, oferece uma maneira objetiva de ‘extirpar' e dar forma ao que é reprimido, corporificando tabus”. Propositadamente usando termos psicanalíticos, o pesquisador ressalta que vários autores buscaram uma leitura psicanalítica do tema dos monstros, tais como o francês Jean-Jacques Lecercle, autor de um estudo sobre Frankenstein.

Para a designer Barbara Szaniecki, formada pela École Nationale Supérieure des Arts Decoratifs (Paris), os monstros são onipresentes porque são de fato nossos companheiros até na vida real. “Há o monstro biológico e o monstro político”, comenta a pesquisadora, que está desenvolvendo um doutorado sobre “ Leviatãs, Cyborgs, Golens e outros monstros possíveis” no Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro (PUC-Rio). As ciências biológicas, explica Szaniecki, procuraram estudar e classificar os monstros “para entender o fenômeno e afastar a possibilidade do surgimento de deformações físicas e psíquicas indesejadas pela sociedade”. Por outro lado, pelo viés das ciências políticas pudemos entender que os monstros têm um papel para as teorias sobre o bom governo dos homens. “Desde a Antiguidade, o Monstro é 'O outro', é o estrangeiro, é aquele a quem é negado o direito à cidade entendido como direito político (a ‘cidadania') e como direito ao próprio território urbano”, explica a pesquisadora. “O monstro é o indesejado expulso para as periferias e que, no entanto, se insurge continuamente contra a injustiça dessa situação”.

Um papel dos monstros, então, é o de esquematizar a “alteridade”, o “Outro”, aquele que é diferente. “Para o homem”, comenta Suppia, “a mulher pode ser um monstro (e vice-versa). Para um norte-americano um japonês também pode sê-lo (e vice-versa). Alguns filmes descreveram civilizações alienígenas compostas exclusivamente por mulheres, ou por humanóides com características orientais. Na época da Guerra Fria, os comunistas eram ‘comedores de criancinhas'. Como disse Sartre, ‘o inferno são os outros'”.

Essa diversidade irredutível do monstro assusta e fascina. Para Edgar Franco, o monstro pode gerar em nós um sentimento de compaixão, ou mesmo identificação. “O Alien desenhado pelo suíço H.R.Giger para a película de Ridley Scott hibridiza características de insetos, felinos de grande porte e répteis, criaturas que correspondem a medos inatos humanos. Apesar disso, existe um verdadeiro culto a respeito desse personagem, um fascínio por seu poder e sua insensibilidade diante das criaturas mais frágeis. Há autênticos fanáticos por ele”. Apesar de grotesco aos padrões humanos, Alien “possui uma beleza obscura, é uma criatura quase sagrada”, comenta o artista, lembrando que muitas civilizações cultivavam como deuses animais que temiam, ou mesmo “monstros híbridos de humano e animal, como o Ganesh e a Naga dos hindus (elefante + homem e serpente + mulher), ou o Minotauro e a Harpia dos antigos gregos (touro + homem e ave de rapina + mulher)”. Em comparação, o ET de Spielberg, para Franco, é fácil de amar mas não se torna motivo de culto.

Os monstros vivem então numa zona estranha, híbrida, de fronteira, ou logo além de um limite que não deveria ser ultrapassado. Hibridez e alteridade são importantes. Porque, muitas vezes, servem como um aviso. Não por acaso, os monstros se chamam assim: porque mostram.

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Imagem: Edgar Franco

O monstros como alerta de fronteira

Para a antropóloga Mary Douglas, todas as culturas possuem um sistema para classificar seres vivos e coisas. E todo sistema de classificação, antes ou depois, se depara com alguma inquietante, monstruosa exceção. Se existem ratos e pássaros, e são diferentes, o que pode ser um rato que voa? Um morcego, isto é, um monstro. Toda cultura, dizia Douglas, tem como monstruosos os seres que ameaçam a lógica de seu sistema de classificação. Na Bíblia, existem serem imundos, impuros, que nunca deveriam ser comidos. Porque, comentava Douglas, “O sagrado requer que os indivíduos se portem conforme a classe a que pertencem. O sagrado requer que diferentes classes de coisas não seja confusas”.

De fato, desde a Antiguidade os humanos se preocupam em classificar anomalias e monstruosidades. O que estava fora da norma devia ser isolado e rotulado. “Foram realizadas verdadeiras tabelas de classificação de monstros”, lembra Bárbara Szaniecki. “Monstros por confusão de reinos ou de gêneros (hermafroditas), monstros por alteração de tamanho (gigantes ou anões), monstros por acréscimo ou supressão de órgãos ou membros”, e assim por diante. “Em todo caso há, por trás da percepção da deformação do corpo, a idéia da profanação, na medida em que o corpo foi feito à semelhança de Deus. O informe significa afastamento da ordem divina”.

Hoje, diversos dos monstros da ficção são imaginados como surgindo da ciência e da tecnologia: qual atividade humana é mais capaz de violar fronteiras, de revolucionar certezas e classificações? Se o sono da razão gera monstros, na ficção a razão despertada e científica também constrói vários. No Ocidente, desde sempre, a busca de conhecimento foi associada à violação de fronteiras e à criação de monstros.

Monstros científicos

Na era da robótica e da biotecnologia, a sensação de ultrapassar fronteiras é onipresente. E os monstros se multiplicam. Se o monstro é um híbrido, hoje somos todos monstros. “Nossos corpos são cada vez mais híbridos”, comenta Szaniecki. “O computador através do qual escrevo é uma prótese do meu corpo”. E nossos corpos estão conetados, por meio de tais próteses, numa rede social. “Através desse dispositivo, no sentido que o filósofo italiano Giorgio Agamben lhe dá”, continua a pesquisadora, “e através das redes informacionais, constituímos continuamente corpos monstruosos. Somos todo cyborgs, que constituem por sua vez um monstro chamado hidra: um só corpo e muitas cabeças”.

Para Alfredo Luiz Suppia, “ciência e tecnologia no cinema e na literatura são berço de deuses e demônios: a mesma chave que abre as portas do Paraíso abre as do Inferno. Provas disso estão já na mitologia grega (as narrativas envolvendo Dédalo) ou em obras de H.G. Wells como A ilha do dr. Moreau ou O homem invisível ”. Monstros como Godzilla (ou Gojira, personagem de muitas ficções japonesas, efeito colateral de testes nucleares americanos no Oceano Pacífico), são fundamentais na narração da relação entre o homem, a ciência e a tecnologia. “O monstro pode ser a recompensa pela soberba, como em A mosca da cabeça branca (The fly), de Kurt Neumann. Noutras ocasiões, ele aponta rotas alternativas à humanidade, como O homem-elefante, de David Lynch”.

Para Edgar Franco, também, alguns monstros servem de base para a crítica sobre a relação do homem com a tecnologia. Mencionando, como Suppia, Godzilla, A ilha do dr. Moreau, bem como Frankenstein de Mary Shelley e A mosca (na versão de David Cronenberg), Franco comenta: “são monstros moralistas, que nos avisam sobre os perigos da tecnociência. Ned Ludd e seus destruidores de máquinas adorariam a mensagem desses livros e filmes, como também adorariam o computador HAL 9000 de 2001, uma odisséia no espaço (de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick), que toma consciência e se rebela contra seus criadores”.

Receita para construir monstros

Como se faz, então, um monstro? Não existe, e não pode existir, uma única receita. Para Szaniecki, “o caminho para a criação do monstro é a ausência de modelo”. Segundo Suppia, “a monstruosidade vai muito além da aparência física. Dizer que um monstro tem de ser necessariamente grotesco, deformado, é simplificar demais. Não seria Dorian Gray (a personagem da célebre novela de Oscar Wilde) também um monstro, apesar de belo?”.

Para Edgar Franco, enfim, “os bons monstros são aqueles que conseguem trazer arquétipos imemoriais em sua composição, ao mesmo tempo dialogando com a cultura de seu tempo. Drácula foi assustador, mas hoje o impacto de monstros biotecnológicos e transgênicos é muito maior. O Frankenstein está sendo resgatado e reinventado, pois a sua metáfora da construção a partir de partes múltiplas faz-nos rememorar as novas tecnologias de transplante de extremidades, de rosto, o desenvolvimento de próteses e órgão artificiais: ele tem algo de pós-humano em sua essência”. Franco vem desenvolvendo nos últimos anos um “universo poético-ficcional” batizado de “Aurora Pós-humana”, que inspirou diferentes produções (quadrinhos, hipermídia, música) e em que é imaginado um futuro “biocibertecnológico” habitado por híbridos entre humanos, animais e máquinas.

Na companhia dos monstros

De fato, o que nos inquieta nos monstros não são apenas suas monstruosidades, mas também suas estranhas humanidades. A criatura de Frankenstein e o Minotauro, Predator e os vampiros, Cérbero e Medusa, nos cercam: habitam todo e qualquer lugar que nós habitamos. Entram em nossa arte, na poesia, na literatura, no design de nossas casas e na publicidade dos produtos que compramos. Fazem parte de nossas lendas e personificam deuses ou demônios em nossas religiões. E, mesmo tendo cem almas e mil rostos, todos têm algo em comum: são parecidos com gente, mas não são gente. Alguma coisa, espantosamente visível ou escondida no fundo do coração ou do DNA, os trai. Eles lembram gente. Mas são diferentes, demasiado diferentes, em algum aspecto. O latim está correto: os monstros demonstram, e avisam. Nos dizem o lugar que ocupamos e que devemos ocupar na ordem do cosmo. Nos dizem o que não somos, o que não podemos ser ou nunca deveríamos ser. Ao mesmo tempo, são espelho do que somos ou temos medo de ser. Por isso não podemos viver, sonhar ou pensar sem a companhia dos monstros.

A criatura do Dr. Frankenstein chega perto de entender isso. Grita seu desespero, seu horror, sua raiva ao tomar consciência de si: “Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim! Deus em sua piedade fez o homem belo e atraente, mas a minha forma é uma terrível contrafeição da sua, mais horrível ainda quando comparada à sua...”.