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Reportagem
Luzes, cores e corpos que perturbam
Por Luiz Paulo Juttel
10/10/2007

A pintura traz nas telas diferentes modos de expressar rostos, pessoas, paisagens. Até o início do século XX, a pintura carregou forte herança renascentista, conta a artista plástica, e doutora pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), Andréia Oliveira. Os objetos, corpos, mundos apareciam, geralmente, como os vemos no cotidiano. No entanto, acontecimentos como a I Guerra Mundial, o desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias, como a fotografia, e o surgimento da teoria psicanalítica contribuíram para que a arte transbordasse a simples expressão do mundo visível. Os corpos-cenas perdem seus contornos, apresentam-se híbridos, esfacelados, monstruosos.

Quatro movimentos artísticos, cada um à sua maneira, revolucionam a pintura, tanto quanto à forma como quanto ao conteúdo, de maneira nunca antes vista: cubismo, abstracionismo, dadaísmo, e surrealismo. Seres fantásticos passam a povoar os quadros. Personagens são retratados em inúmeras perspectivas simultâneas. Mundos (in)possíveis são criados. Os abstracionistas chegam ao ponto de abandonar de vez qualquer conexão com a realidade objetiva, e se preocupar apenas com os pontos, linhas e planos.

Mas seriam essas expressões ilusões? Imaginações somente permitidas aos artistas? Como entender essas pinturas? Para alguns estudiosos, esses artistas instanciam uma realidade alternativa e perturbadora, e não fantasias ou ilusões. A professora de teoria e história da arte da Universidade do País Basco, Paloma Rodríguez-Escudero, argumenta em seu artigo "Idea y representación de la mujer en el surrealismo", que na ótica surrealista “o mundo material é apenas uma parte da realidade que o ser humano percebe. Existe outra realidade que permanece oculta, povoa os sonhos, agita o inconsciente e aviva a fantasia”. Para ela, essa realidade irreal, deformada e distorcida só é compreendida se os limites impostos pela lógica, razão e tradição forem superados.

Antonio Vargas, artista plástico e professor de pintura na Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), fala que Goya, como outros artistas, “assume um caráter crítico ao que se pode tomar como uma realidade idealizada. Pois a realidade não existe como algo externo ao sujeito. Cada um entra em contato com uma realidade própria, criada por si mesmo”. Na série de 80 gravuras intituladas Os caprichos (destaque para O sono da razão produz monstros ), lançadas em 1979, Goya traz prostitutas, bruxas, demônios, freis, janotas e seres fantásticos em cenas sombrias, no que o artista diz ser: “os vícios, extravagâncias e desacertos comuns a toda sociedade” (leia mais sobre Os caprichos).

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Gravuras sombrias de Goya ("O sono da razão produz monstros", "Devota profesion", "Tu que não podes")
Fonte: goya.unizar.es

Em três outras séries de gravuras fantásticas, Desastres da guerra (1808), Tauromaquia (1814-1816), e Provérbios ou disparates, obra provavelmente não terminada, Goya expõe monstros, espíritos e situações que parecem ter sido retiradas de sonhos, mas que para os historiadores da arte expressam com intensidade uma crítica do p intor aos eventos e costumes da nobreza espanhola decadente.

Cenas e corpos grotescos

É preciso ressaltar que as pinturas de cenas que fogem à realidade corriqueira surgiram muito antes de Goya. Segundo Vargas, a primeira aparição do grotesco (nome dado ao ornamento que retrata universos fantásticos) ocorre na decoração das paredes da Domus Aurea, em Roma. Os adereços do luxuoso palácio construído a pedido de Nero em 63 d.C. (logo após o grande incêndio da cidade), baseavam-se em combinações de linhas entrelaçadas com flores, frutos e outras formas, como figuras extravagantes, máscaras e animais fora do comum. Da Vinci, que estudou diversas obras clássicas da Domus Aurea, utilizou o conceito de grotesco em trabalhos como Cabeças grotescas .

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Anunciação, de Carlo Crivelli (1486): uma das primeiras telas decorada com ornamentos grotescos
Fonte: http://www.nationalgallery.org.uk

Com o passar dos séculos, o grotesco se espalhou pela obra de vários artistas, sofrendo modificações. Dentre os grandes nomes da pintura, podemos dizer que o holandês Hieronymus Bosch, no século XIII, foi um dos primeiros a rechear sua obra com efeitos grotescos. Suas imagens, como se pode ver em A tentação de santo antão, refletem preocupações tipicamente medievais: pecados, tentações, histórias de santos, tudo transmitido com cores delicadas, justapostas com equilíbrio e refinada sabedoria pictórica.

No entanto, os sentidos dos quadros desse pintor são tão misteriosos e controversos quanto a sua biografia. Provavelmente ele viveu a vida inteira na região isolada de Bois-le-Duc. Seus monstros, segundo pesquisadores, originaram-se de suas convicções religiosas. Mas falta consenso. Uns dizem que Bosch foi um católico heterodoxo, outros que ele tinha ligações com seitas místicas (satânicas talvez) típicas da região de Flandres. O que se sabe é que seu mundo fantástico foi precursor das obras oníricas de Salvador Dali e dos demais surrealistas contemporâneos.

Um real surreal

Os pintores surrealistas, no século XX, criam uma nova linguagem, que choca, livre dos constrangimentos da razão. A pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, Silvia Miranda Meira, diz no artigo Dadá, o surrealismo e o espaço imaginário que as inspirações desses pintores se baseavam em “ visões simbólicas, metafísicas, estranhas, radicais, primitivas, irracionais. Sem ter uma mesma técnica que caracterizasse o estilo, os artistas surrealistas se apresentavam com grande diversidade e cheios de inovação, entre eles, Max Ernst com colagens, Magritte com associações insólitas de objetos e Dalí com construções fantásticas e figurações oníricas e simbólicas”.

Dois nomes se destacam nesse movimento devido à criação de cenas monstruosas: o holandês M. C. Escher e a mexicana Frida Kahlo. Escher, segundo Andréia Oliveira, “mostra coisas do cotidiano de uma forma que nunca se pensou antes. Ele passa a idéia de paradoxo no cotidiano". Em suas gravuras, como por exemplo Relatividade (1953), algo está ao mesmo tempo dentro e fora, como as escadas que, dependendo como o observador olhe, está dentro ou fora do prédio ou da galeria.

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A ilusão de Escher (Relatividade) e a dor física na obra de Frida Kahlo (A coluna quebrada)
Fontes: www.globalgallery.com
 e incursoes.blogspot.com

Já a dor e a agonia que Frida produz em suas telas, trazem à tona a vida da artista, que recusava a classificação de surrealista. “Nunca pintei meus sonhos. Pintei minha própria realidade. Pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”, escreveu em seu diário. Um sério acidente de ônibus ocorrido na adolescência (em 1925), no qual uma barra de metal entrou sobre sua coxa esquerda e saiu pela vagina, deixa-a com sérios problemas de saúde pelo resto da vida. A recuperação contou com uma série de imobilizações com gessos e espartilhos, trações e cirurgias experimentais. O filme Frida mostra como os limites entre as pinturas e a vida dessa artista são difusos, as telas aparecem como partes viscerais de momentos de sua vida.

Pintura: arte de criar a imagem

Pablo Picasso foi outro artista a surpreender o mundo ao expor na França, em 1937, um painel de 3,5 por 7,8 m: Guernica. Considerada uma das mais importantes obras do século passado, traz incompreensíveis seres monstruosos, rostos distorcidos e agonizantes, numa composição desordenada e sombria. A obra é considerada resultado da indignação do pintor contra o ataque dos aviões nazistas, aliados do general Franco, aos camponeses do vale de Guernica, Espanha, 1937. No momento do ataque, as ruas do povoado estavam repletas de civis, adultos e crianças, que morreram instantaneamente.

“Picasso expressa na tela o drama das crianças mortas, das mães em prantos. Para dizer isso se vale do seu universo pessoal e retoma as figuras da tourada, o cavalo e o touro, símbolo da brutalidade e da escuridão. A tonalidade geral das cores é o luto”, comentam Marie-Laure Bernadac e Paule du Bouchet no livro Picasso, o sábio e o louco.

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Guernica: símbolo da indignação contra a violência em tempos de guerra
Fonte: www.museoreinasofia.es

Para Vargas, o papel do pintor não é o de representar a realidade, mas o de fazer a imagem. “Imagem esta que nos faça pensar sobre o que somos, o que vemos, sobre como vemos e como achamos que somos”. Comenta-se que anos depois de Guernica, os nazistas ocuparam a França e um dia questionaram Picasso com uma foto do painel em punho: "Foi o senhor que fez isso?". O artista respondeu: "Não, foram vocês”.