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Editorial
Da pressa e de outros vícios virtuais
Por Carlos Vogt
10/11/2007

Todos, ou quase todos, conhecemos a fábula da corrida do coelho e do cágado, segundo a qual o excesso de auto-confiança do primeiro o leva a cochilar, por desprezo ao segundo e este, por morosa persistência, a ganhar a prova, depois de um longo sono de um e de um lento caminhar de outro.

Moral da história:

1. o apressado come quente e queima a boca;
2. de grão em grão a galinha enche o papo;
3. mais vale um pássaro na mão do que dois voando;
4. água mole em pedra dura tanto bate até que fura;
5. a vingança é um prato que se come frio;
6. quem espera sempre alcança;
7. a esperança é a última que morre;
8. Deus ajuda a quem cedo madruga;
9. quem vê cara, não vê coração;
10. se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Quer dizer, há uma enorme quantidade de provérbios, dos quais o decálogo acima é uma amostra, louvando as virtudes da calma e da paciência contra os vícios da pressa e da velocidade.

Há alguns anos atrás, um político bastante conhecido do eleitorado brasileiro apresentou-se em um debate de televisão reproduzindo a fábula do coelho e do cágado e encenando com bichos de pelúcia o ritmo de um e de outro para simbolizar que a sua própria lentidão o levaria, pela insistente determinação à vitória final. Perdeu a eleição.

In medio stat virtus proclamava a cultura clássica latina, e por estar no meio é que a virtude, como valor, constitui-se em oposição às categorias do excesso, para menos e para mais, tanto de falta como de abundância. Horácio escrevia nas Epistulae: virtus est medium vitiorum et utrimque reductum, para dizer que ela está meio, entre os vícios, eqüidistantes dos extremos.

Leibnitz anotou que a natureza não dá saltos ( natura non facit saltus ) e nós aprendemos, crianças, com os ensinamentos do catecismo que um mesmo Deus, todo poderoso, criou o mundo num só dia e escolheu o sétimo para descansar, legando-nos a gostosa preguiça dos domingos calmos e vagarosos e, às vezes, chatos de tão demorados de passar.

Mas ninguém se iluda com o hedonismo do carpe diem horaciano ou com o bucolismo virgiliano do sub tegmine fagi, de que fez eco explícito Castro Alves e outros poetas românticos brasileiros que deitaram seus versos à sombra das laranjeiras, debaixo dos bananais.

O século XIX já anunciava que os tempos mudavam numa velocidade antes não conhecida da mudança e que a oposição entre campo e cidade, cara ao século XVIII, acentuava, nas suas diferenças, a rapidez da vida moderna.

A cidade e as serras, de Eça de Queiroz é um belo registro desse contraste. Eadweard Muybridge com o seu gênio inventor e seu talento fotográfico fez vários estudos sobre o movimento, entre eles o que mostrou, através das 24 câmeras fixadas na linha do chão, o galope de uma égua e a sua imagem suspensa com as quatro patas no ar, num balé de beleza, graça, e agilidade etérea, o que não é pouco para um corpo pesado e que ninguém conseguia ver, em velocidade, sem um ponto de apoio no chão.

Estava nascendo o fotograma e com ele a tecnologia que permitiria o cinema. Tempos modernos de Charles Chaplin é uma comédia da ruptura. É uma crítica, é um registro lírico de uma perda, mas é também a enunciação de um anúncio: o mundo mudara e não só era feito de mudanças como anotaram os clássicos do Renascimento, mas de mudanças velozes.

Os filmes do início do cinema, no começo do século XX, têm um déficit tecnológico que faz com que tudo o que registram se mova em velocidade surpreendente. Entretanto, o que é uma insuficiência tecnológica é também uma técnica descritiva e narrativa que acaba por se constituir num estilo, num modo de ser, sempre em movimento frenético.

Com o fenômeno da globalização da economia, consolidado com a queda do Muro de Berlim no final dos anos 1980, consolidou-se também a imperiosa necessidade de padrões cada vez mais rápidos de comunicação e de circulação das informações para permitir, entre outras coisas, a livre e ágil circulação do capital financeiro por todas as partes do globo e o giro incessante da máquina virtual de fazer lucro que o carrega.

Ainda nos anos 1980, a IBM, numa loja na Place des Voges, em local de concentração de joalherias, ao invés de uma pedra preciosa, expôs, à luz de spots de atenção, um chip de computador, sozinho, numa vitrine, protagonizando o enredo do novo conceito de riqueza que a economia e a sociedade do conhecimento estava, então, aprimorando, para lançar em nossos carnavais.

Condensação e velocidade que buscadas cada vez mais intensamente para e pelas tecnologias de informação e comunicação - acabaria, não por acaso, levando ao prêmio Nobel de 2007 dois físicos, cujas pesquisas levaram a aumentar a capacidade de armazenamento de dados nos discos rígidos, permitindo, por sua vez, que se tornassem cada vez menores e eficientes em rapidez, qualidade e quantidade de informação.

Em fevereiro de 1909, o poeta italiano Filippo Marinetti publicava na França, no jornal Le Figaro, o Manifesto Futurista, que iria se constituir num dos marcos do Modernismo.

O Futurismo, que além da exaltação inicial de alguns de seus seguidores a favor da guerra e da violência, pregava a crença na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos de fins do século XIX, e rejeitava o passado e todas as formas de moralismo ou, ao menos, as que assim eram consideradas pelos adeptos do movimento.

Essa é uma questão que vale a pena ser levada em conta já que a relação, velocidade/guerra/violência instalou-se de tal modo nas sociedades contemporâneas que é quase inevitável pensarmos também essa relação em correlação com o fenômeno da indigência ética e com a presentificação leviana do passado que caracterizam o mundo industrial moderno, e a sua versão tecno-científica no pós-moderno.

Para isso, alertava Walter Benjamin quando falava do fim da narrativa, ou das condições de narratividade do mundo colados nos acontecimentos pela simultaneidade de suas imagens em circulação informativa e comunicacional, o tempo do símbolo, achatado, no que simboliza, tira-nos a distância da vivência e da reflexão e nos põe no frenesi de uma corrente de fatos que saem do nada, desfilam no vazio e desaparecem na sucessão atropelada de novos fatos, novos acontecimentos, que são os mesmos já vistos e presenciados virtualmente, mas que, céleres, não se deixam captar pela memória e pela lembrança.

A velocidade é um valor caro ao presente, avesso ao passado e arrogante de futuros. É um risco, uma aposta, um jogo de dados que também, mais uma vez, não abolirá o acaso.