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Reportagem
Comunicação à velocidade da luz
Por Fabio Reynol
10/11/2007

“O que foi que Deus arrumou?” Esta pergunta entrou para a história em 2 de maio de 1844 quando foi possível percorrer 65 quilômetros entre as cidades de Washington e Baltimore à velocidade da luz. O telégrafo, uma patente recém-registrada pelo norte-americano Samuel Morse, inaugurou naquela data o mundo da comunicação instantânea. A invenção gerou a dissociação do transporte com a comunicação de uma vez por todas e foi o gatilho de outras tecnologias que aumentaram o tamanho e o alcance das mensagens e, para alguns, encolheram o planeta.

Há quase dois séculos daquela transmissão, somos os herdeiros de suas conseqüências, entre elas, o aparato tecnológico que inclui as redes de alta velocidade (com e sem fio), os satélites, as fibras óticas, as antenas, os transmissores, os computadores e até os programas que gerenciam e movimentam as informações. Toda essa parafernália, cujo representante mais popular é a internet, foi batizada de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) e seu advento ainda está mudando a nossa sociedade, nossa economia, cultura, maneira de interagir com o mundo e de entendê-lo.

Um dos impactos mais visíveis das TIC é a incapacidade humana de absorver o imenso oceano de informações que essas novas máquinas proporcionam. Em 2003, dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, Peter Lyman e Hal Varian, calcularam que a internet armazenava cerca de 170 terabytes de informação. A quantidade equivale a 17 vezes o acervo impresso da maior biblioteca do mundo, a do congresso norte-maericano (Library of Congress).

Tanta informação mais frustra do que sacia as nossas necessidades, como aponta o pesquisador em ciência da informação, Cláudio Henrique Schons, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Um usuário, ao efetuar uma pesquisa na internet, tende a ficar mais frustrado pelo excesso de ‘respostas' que pela falta delas”, afirma Schons, autor do trabalho “O volume de informação na internet e sua desorganização: reflexões e perspectivas”.

O jornalista e empresário John Browning chegou a comparar a internet às bibliotecas mantidas pelos monges durante a Idade Média. Os monges eram os guardiões do conhecimento registrado nos livros mas, segundo Browning, assim como na internet de hoje, eles necessitavam de um sistema de organização para que esses impressos pudessem ser encontrados mais tarde. “Soterrados sob uma inundação de informações, os usuários de hoje têm consciência de que precisam classificá-las e interconectá-las, mas não conseguem nem controlar o seu fluxo, nem impor uma ordem”, explica o jornalista.

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Monge escriba medieval no período em que a igreja era guardiã do conhecimento
Foto: Divulgação

Cegueira informacional

Por isso, ironicamente, o efeito do excesso de informação seria a desinformação. De acordo com o filósofo e arquiteto francês Paul Virilio, conhecido por seus trabalhos sobre as novas tecnologias de comunicação e os efeitos da velocidade sobre a sociedade, há “uma temível ameaça de cegueira” provocada por um “descontrole de nossa relação com o real”. O produtor cultural Leonardo Teixeira de Mello, que estudou a obra de Virilio para uma pesquisa em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que não há como o usuário gerir essa quantidade enorme de dados.

Outro efeito que a moderna infra-estrutura da informação proporcionou foi o surgimento de grupos sociais antes impossíveis. “As comunidades virtuais – explica Mello - são espaços novos que só puderam surgir devido à velocidade da transmissão de dados”. Graças a essa conquista tecnológica, conceitos como de distância e fronteira estão mudando. “Perdeu-se a noção geográfica de perto e longe - conta Mello - pois esses termos não estão mais relacionados a espaços geográficos”. Baseado nisso, Virilio criou a idéia de “telecontinente” para delimitar as fronteiras virtuais que substituem as geográficas nas comunidades formadas nas redes de computadores. O pensador francês também é pai da expressão “cronopolítica” usada para designar as ações políticas que se baseiam na velocidade.

O fast-food da informação

As seqüelas desse novo mundo da informação paquidérmica e veloz recaem não só sobre os que a recebem, mas também sobre quem a produz. Foi o que averiguou a jornalista e pesquisadora em comunicação social, Thaís de Mendonça Jorge, da Universidade de Brasília (UnB). Ela aplicou ao jornalismo o termo McDonaldização criado pelo sociólogo norte-americano George Ritzer. No livro A McDonaldização da sociedade, Ritzer conta como a rede de refeições rápidas tornou-se um modelo de organização para a sociedade moderna e os conseqüentes danos que esse padrão tem causado. No artigo McDonaldização do jornalismo: o discurso da velocidade, Jorge e outra pesquisadora relatam os efeitos da chamada “ditadura da velocidade” na produção jornalística.

“O primeiro efeito é a pasteurização da notícia - explica Thaís - com poucos recursos e muito trabalho, os jornalistas não têm tempo de apurar, nem de conferir as notícias que recebem das agências”, afirma. O resultado é a publicação de textos praticamente idênticos em diferentes órgãos de imprensa. No trabalho, as pesquisadoras dão como exemplo uma matéria publicada pelo órgão oficial de imprensa do governo, a Agência Brasil, sobre o fim de semana do presidente da república. O texto foi publicado praticamente sem alterações nas versões eletrônicas do Jornal do Brasil e da Folha de S.Paulo.

Sem o devido tempo para a averiguação das informações, outra conseqüência previsível é a reprodução de erros. “O que antes chamávamos de jornalismo diário, hoje ganhou o nome de jornalismo minutista, porque o profissional tem que produzir textos em questão de minutos”, declara Thaís Jorge. Assim, os erros não só passam batido como são espalhados à mesma grande velocidade da notícia. Tudo isso, porque as notícias são trabalhadas como qualquer outro bem de consumo. “O irracionalismo da ânsia pela velocidade, por considerar a rapidez condição de sobrevivência e de lucratividade, transforma os jornalistas em trabalhadores de uma linha de montagem semelhante às de Ford e Taylor no início do século XX”, explica a pesquisadora.

Transformar jornalistas em operários de uma linha de produção é apenas uma parte das conseqüências das TIC no capitalismo contemporâneo. Para muitos analistas, a chamada economia eletrônica ou virtual, é o principal catalisador do sistema produtivo e financeiro de hoje.

Em seu último relatório, publicado em março deste ano, a Comissão Européia revelou que as TIC foram responsáveis por quase 50% do aumento de produtividade da economia européia entre 2000 e 2004. As TIC não só representam um novo jeito de se produzir e de vender, como são indispensáveis hoje à economia moderna. O economista da Universidade Mackenzie, Francisco Cassano, explica que na década de oitenta eram necessários dois dias úteis para fazer uma transferência bancária internacional e ainda não havia meios de conferir a operação. “Hoje é possível fazer isso apertando a tecla ‘enter' do computador”, compara Cassano.

O dinheiro sai do papel

O economista constata que os males econômicos também viajam mais rapidamente. No início de outubro, uma queda da bolsa de valores de Pequim foi refletida nas demais bolsas do mundo no mesmo dia útil. “Em 1982, quando o México enfrentou uma grande crise financeira - relembra Cassano - a Argentina foi afetada pela mesma crise apenas por volta de 1984, e o Brasil só foi senti-la em 1987”, diz ele.

”A velocidade também tem afetado as relações comerciais em geral. Um consumidor iraniano consegue saber o que um cidadão consome na Bahia - exemplifica ele - com isso a concorrência se acirra e é muito mais rápida”. Ao analisar a economia eletrônica, a Comissão Européia constatou que as TIC reduzem, nesse aspecto, o impacto econômico da distância e os custos do acesso à informação, alargando, assim, as possibilidades de concorrência.

Muitos já perceberam que os talões de cheque têm durado muito mais graças ao advento do cartão de débito. No Japão, celulares são utilizados para os mais corriqueiros pagamentos desde bilhetes eletrônicos de metrô, a máquinas de refrigerante e compras em lojas. Para que as transações eletrônicas confiáveis se tornassem uma realidade, porém, foi preciso toda uma tecnologia e uma infra-estrutura de comunicação que fosse veloz e inviolável. Por isso, graças às TIC, nós vemos cada vez menos a cor do nosso próprio dinheiro.

cartao
O cidadão comum tem sentido no bolso um dos frutos das TIC, a dissociação
crescente do papel com o dinheiro
Foto: Marta Kanashiro

Um mundo sem papel moeda seria possível? Para Cassano, sim, contudo seria muito mais arriscado. “Em caso de uma crise grave a primeira coisa que fazemos é correr ao banco e pegar o nosso dinheiro”, diz o economista. “Se o colocamos no colchão podemos perder o seu valor de face, mas mantemos o seu valor intrínseco. Numa economia 100% virtual o dinheiro poderia virar pó com muito mais facilidade,” alerta.

Techno-apartheid

Apesar de toda essa revolução tecnológica, é bom lembrar que o admirável e paladino mundo das tecnologias da informação e da comunicação não é tão globalizado quanto se vende. A empresa de pesquisas JupiterResearch prevê que em 2011 a internet deva atingir apenas um quinto da população mundial, cerca de 1,1 bilhão de pessoas. Se considerarmos que a grande maioria desses plugados estará nos países ricos e nas camadas mais privilegiadas do restante do globo, veremos o abismo social mundial reproduzir-se e crescer com o mundo digital.

Em uma sociedade com atividades importantes galgadas no ambiente virtual, estar fora dele equivale a estar privado do exercício da cidadania. É o que o economista italiano Ricardo Petrella da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, tenta definir com o termo techno-apartheid. Petrella escreveu em seu livro Vers un techno-apartheid (Rumo a um techno-apartheid, ainda não traduzido para o português): “Assistimos à emergência de um arquipélago de cidades/regiões ricas, hiper-desenvolvidas nos planos tecnológico, industrial e financeiro, no oceano de uma humanidade cada vez mais pobre.”