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Artigo
Fotografia, cinema e velocidade
Por Pedro Peixoto Ferreira e Márcio Barreto
10/11/2007

Cinema = fotografia + velocidade. É segundo essa equação que entendemos a idéia, formulada em 1936 por Walter Benjamin, de que o cinema já estava contido virtualmente na fotografia. É dessa relação entre cinema e fotografia, constituída sobretudo pelo encontro da velocidade de uma máquina com os limites de nossa percepção, que trataremos neste texto.

A dissolução da forma pelo tempo de exposição

A fotografia não nasceu como instantâneo. Uma das primeiras fotografias de que se tem notícia, o registro feito em 1826 por Joseph Nicéphore Niépce da vista de sua janela (cf. Figura 1), por exemplo, exigiu um tempo de exposição de pelo menos oito horas. Mesmo instrumentos fotográficos bastante difundidos em meados do século XIX, como o daguerreótipo e o calótipo, exigiam um tempo de exposição de pelo menos alguns minutos. Isso significa que, nas primeiras décadas da fotografia, apenas objetos imóveis como paisagens ou poses podiam ser fotografados com alguma nitidez: objetos em movimento tinham suas formas dissolvidas em graus variados ou nem sequer apareciam na fotografia.


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Experiências realizadas ainda em meados do século XIX já indicavam a possibilidade técnica de eliminar os borrões de movimento da fotografia por procedimentos que reduziam o seu tempo de exposição à luz, possibilidade que só se consolidou definitivamente com o desenvolvimento das chapas secas pelo médico inglês Richard Leach Maddox em 1871. No entanto, apesar dessa busca constante pela nitidez - que envolveu não apenas os procedimentos técnicos da fotografia, mas também a escolha de objetos fotográficos imóveis ou imobilizáveis - a dissolução das formas pelo movimento nem sempre foi vista como um defeito a ser eliminado.

Muitos fotógrafos fizeram e ainda fazem desse efeito fotográfico uma opção estética, como, por exemplo, Julia Margaret Cameron, ainda no século XIX, Anton Giulio e Arturo Bragaglia, no início do século XX e, desde então, outros como Otto Steinert (cf. Figura 2), Ernst Haas (cf. Figura 3), e Michael Wesely (cf. Figura 4).


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O borrão é o registro fotográfico positivo do movimento, pois contrai em um corte de longa duração toda a variação contínua do campo. Mas para que o movimento seja registrado em sua positividade contínua, é preciso sacrificar a nitidez das formas, sacrifício este que justificou todo o esforço para reduzir o tempo de exposição da fotografia. É preciso, no entanto, compreender a complexidade desse processo de dissolução das formas pelo movimento, a maneira variada pela qual essa dissolução afeta diferentes regiões do campo, dissolvendo algumas formas mais do que outras, enriquecendo assim nosso olhar sobre o mundo. É com a velocidade relativa de cada parte do campo que nos deparamos no borrão: uma relação entre o tempo de exposição do filme e a distância percorrida pelos movimentos registrados.

O borrão nos oferece a imagem de um mundo composto pelas diferentes velocidades relativas internas a um mesmo campo contínuo, um mundo normalmente invisível, pois baseado na dissolução maior ou menor das formas com as quais nos habituamos. Ora, se, como formulou Henri Bergson, "a forma não é mais que um instantâneo tomado de uma transição", seria o caso de distinguir duas linhagens bastante distintas de fotografia: uma, que acabamos de ver, mais interessada na transição e na velocidade relativa, baseada na dissolução da forma pela regulagem do tempo de exposição; e outra, que agora veremos, mais interessada na forma e na imobilidade, baseada no nivelamento das velocidades relativas pelo instantâneo.

A fixação da forma pelo instantâneo

É bom lembrar que, em fotografia, não existem instantâneos absolutos. Mesmo o tempo de exposição mais curto que se possa obter, ainda assim dura, sem o que Benjamin não poderia falar da "pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem". Por isso, definimos "instantâneo" como uma abstração que pode ser mais ou menos concretizada de acordo com o estado da relação entre o tempo de exposição da superfície sensível à luz e a amplitude de movimentação do campo fotografado. Com isso, teremos um instantâneo quando as velocidades internas ao campo tenderem a zero, i.e., quando a amplitude de movimentação do campo tender a zero dentro do intervalo de tempo necessário para a sensibilização do filme fotográfico. Assim, compreendemos que um mesmo tempo de exposição pode gerar instantâneos ou borrões dependendo da velocidade relativa dos objetos fotografados.

A genealogia do instantâneo remete a experiências, iniciadas ainda na metade do século XIX, com diferentes processos químicos, óticos e de iluminação. Difíceis de se obter e restritos apenas aos fotógrafos mais bem equipados, esses primeiros instantâneos só se tornaram acessíveis a um público mais amplo a partir do desenvolvimento das placas secas por Maddox em 1871, com seu tempo de exposição de meio segundo.

Foi no final do século XIX, justamente quando o instantâneo fotográfico começava a se consolidar tecnicamente, que pioneiros como o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge e o médico francês Etienne-Jules Marey realizaram seus experimentos com a fotografia seqüencial (cf. Figuras 5 e 6). Capturando movimentos de corpos no espaço em séries de instantâneos igualmente separados por um curtíssimo espaço de tempo, eles indicaram, ainda nos anos 1870 e 1880, o caminho para a emergência do cinema, que só se concretizaria em meados da década de 1890.


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Muybridge chegou a desenvolver um aparelho (o zoopraxiscópio) capaz de exibir em seqüência as suas séries de instantâneos, como num proto-cinema, e Marey, além de construir uma espécie de "fuzil fotográfico" capaz de tirar 10 fotografias por segundo, desenvolveu ainda a cronofotografia - registro, em uma só chapa fotográfica, de uma seqüência isócrona de instantâneos de um movimento. Nessa mesma época, o físico austríaco Ernst Mach concebeu a possibilidade de estudar movimentos extremamente lentos a partir de seqüências fotográficas com longos intervalos entre as fotos, princípio aplicado posteriormente por seu filho no estudo do crescimento de plantas. Se evitarmos retroagir sobre o trabalho de pioneiros como Muybridge, Marey e Mach as técnicas cinematográficas que eles prefiguraram, veremos que, para eles, mais importante do que a devolução do movimento às imagens pela sua "leitura" seqüencial, era a sua eliminação pelo instantâneo bem definido. Em outras palavras, mesmo quando interessados no movimento, esses fotógrafos-cientistas buscavam-no naquilo que ele não é: poses imóveis, entre as quais o movimento escapa como a fumaça entre os dedos daquele que tenta apanhá-la.

Diferentemente da linhagem fotográfica que faz da longa exposição um recurso estético para incorporar o movimento na imagem fotográfica em detrimento da nitidez formal, o que vemos agora é toda uma outra linhagem fotográfica que busca justamente o contrário: a nitidez formal da imagem fotográfica pela eliminação de todo e qualquer movimento interno a ela. Poderíamos dizer que esta linhagem fotográfica se inicia no século XIX com a fotografia posada e estática, quando muitos estúdios fotográficos contavam com armações e aparelhos destinados exclusivamente a imobilizar partes do corpo daqueles compreensivelmente incapazes de manter a mesma pose por mais de alguns minutos. Ela desemboca, com os tempos de exposição de centésimos de segundo alcançados pelas máquinas do início do século XX, no culto daquilo que o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (cf. Figura 7) chamou de "instante decisivo": corte temporal formalmente ideal que o fotógrafo deve saber distinguir de todos os outros instantes anteriores e posteriores nos quais ele poderia ter disparado sua máquina.


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O instantâneo, em oposição ao borrão, é o registro fotográfico negativo do movimento, pois expulsa de um corte de curta duração toda a variação contínua do campo. Enquanto o borrão nos revela uma coexistência de diferentes velocidades relativas em um só campo, o instantâneo nos revela a existência de um campo no qual todas as velocidades tendem a zero. O instantâneo revela um mundo invisível constituído de cortes temporais tão curtos que fixam formas muitas vezes inacessíveis ao olho nu. No cinema, porém, o retorno desses cortes à invisibilidade pela sua velocidade seqüencial de projeção nos devolve efetivamente uma imagem do movimento.

O tempo e o espaço no movimento da imagem média

Poderíamos dizer que o cinema uniu o borrão ao instantâneo, escandindo em uma seqüência de instantâneos que se sucedem num intervalo visualmente indiscernível de tempo o movimento múltiplo e heterogêneo que o borrão contrai em uma só continuidade. Apesar de basear-se na sucessão de instantâneos fotográficos, seria um erro reduzir o cinema a essa sucessão, pois, como bem notou Gilles Deleuze, "o cinema opera por meio de fotogramas mas o que ele nos oferece não é o fotograma, mas uma imagem média à qual o movimento pertence enquanto dado imediato". Não se trata, portanto, nem de uma série de instantâneos imóveis, nem de um borrão de movimento, mas sim do movimento nítido de uma imagem média. Como isso é possível?

O cinema gera uma imagem média pela sucessão de quadros imóveis a uma velocidade específica. A imagem de um trem em movimento, por exemplo, pode ser produzida pela projeção, sobre uma tela, de uma série de fotografias do trem que passa, de maneira que se substituam umas às outras a uma velocidade suficientemente alta para que a visão dos instantâneos individuais dê lugar à visão de uma imagem média móvel que dura. A partir de fotografias que representam o trem em atitudes imóveis, sua mobilidade é reconstituída. Cinema=fotografia+velocidade. O importante aqui é notar que a velocidade assume papéis distintos na fotografia e no cinema.

Na fotografia, a velocidade é o que distingue, pela sua presença ou ausência do campo, o móvel do imóvel, o borrão do instantâneo. O cinema, baseando-se em seqüências de instantâneos, já incorpora desde o início o registro fotográfico negativo do movimento. Mesmo assim, quando exibe esses instantâneos a uma velocidade de 24 quadros por segundo, produz algo de novo, um movimento que não pode mais ser explicado apenas pela sucessão de todos os instantâneos exibidos, mas que envolve também aquele que percebe a imagem média movente assim produzida. A velocidade, no cinema, não é interna à imagem (que precisa ser instantânea); é na máquina que registra e reproduz a seqüência de instantâneos que reside a velocidade do cinema, regulada de forma a obrigar a superfície sensível do olho a fundir uns nos outros esses instantâneos. O olho encontra a imagem média, transformando instantâneos em imperceptíveis borrões, graças à relação entre a sua sensibilidade e a velocidade de uma máquina.

A chegada do trem à Estação de La Ciotat, curto filme dos irmãos Auguste e Louis Lumière exibido em Paris a 6 de janeiro de 1896 (cf. Figura 8), marcou o encontro da locomotiva, a imagem da velocidade tecnológica, com a cinematografia, a velocidade da imagem fotográfica. Relatos daquela exibição retratam um público totalmente afetado pela imagem do trem que se aproximava vertiginosamente do fundo para o primeiro plano, rumo ao limite esquerdo do campo. Estamos aqui em plena inauguração daquilo que Deleuze chamou de imagem-movimento, as pessoas correndo todas para o fundo da sala num ato reflexo diante da imagem do trem chegando à estação. A imagem-movimento é, poderíamos dizer, a pura passagem do movimento da imagem média pelo corpo do espectador em circuitos pré-existentes herdados ou construídos pelo hábito: "emoções baratas", entretenimento, algo muito próximo da idéia que pesquisadores-empreendedores como os Lumière tinham do cinema em seus primórdios.


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Mas o efeito de reiteração do hábito promovido pela imagem-movimento não é, necessariamente, uma propriedade da própria imagem cinematográfica. Todo o contexto no qual a imagem participa contribui para a forma como ela é recebida pelo espectador. O videasta alemão Harum Farocki, que já usou outro curto filme dos irmãos Lumière em uma de suas obras – trechos de A Saída da Fábrica Lumière em Lyon (Lumière, 1895) foram usados em Pensei ter visto condenados (Farocki, 2000) –, poderia certamente resgatar A chegada do trem... do ciclo estéril da causalidade reflexa no qual ele nasceu (e de cujo nascimento ele participou ativamente) e deslocá-lo para a linha de fuga criadora e paradoxal das conexões e dos desvios que impedem o movimento da imagem média de percorrer seus circuitos habituais.

Hiroshi Sugimoto, que vem experimentando há algumas décadas com fotografias de salas de cinema nas quais o tempo de exposição do filme fotográfico coincide com o tempo de exibição da película cinematográfica (cf. Figura 9), seria outro forte candidato a transportar A chegada do trem..., da imagem-movimento, rumo àquilo que Deleuze chamou de imagem-tempo, cristalizando em apenas um corte fotográfico todo o movimento da luz projetada sobre a tela e refletida sobre a sala naqueles poucos segundos que marcaram o nascimento do cinema.


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Epílogo

Na era da imagem digital – não apenas nas salas de cinema, mas principalmente na internet – é difícil não se sentir anacrônico ao falar de "cinema" e "fotografia". Não obstante, ou justamente por isso, procuramos tratar aqui de questões que, apesar de terem sido levantadas em função de tecnologias analógicas, permanecem totalmente atuais e até mesmo ganharam mais relevância nos meios digitais. A relação entre o borrão e o instantâneo na fotografia, assim como as implicações do papel deste último no cinema, não diminuem com os meios digitais, apenas se complexificam.

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. 1994. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (trad. Sérgio P. Rouanet) São Paulo: Brasiliense
BERGSON, Henri. 2005. A evolução criadora. (trad. Bento Prado Neto) São Paulo: Martins Fontes 1907
DELEUZE, Gilles. 1985. Cinema 1: a imagem-movimento. (trad. Stella Senra) São Paulo: Brasiliense. 1983
__________. 1990. Cinema 2: a imagem-tempo. (trad. Eloisa de Araujo Ribeiro) São Paulo: Brasiliense 1985

Pedro Peixoto Ferreira é doutor em ciências sociais, pesquisador do CTeMe e do CEBRAP e prepara um livro sobre música eletrônica de pista. Márcio Barreto é doutor em ciências sociais, pesquisador do CTeMe, e desenvolve pesquisa sobre cinema e percepção espaço-temporal. Juntos eles gostam de discutir o pensamento de Henri Bergson, assim como a sua presença no pensamento de Gilles Deleuze.