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Reportagem
No ritmo das máquinas
Por Daniela Lot
10/11/2007

Na fábrica, a placa de metal move-se pela esteira. Operários em pé com ferramentas em mãos trabalham sobre ela conforme chega até eles. Do gabinete do presidente vem o comando para o controlador das máquinas: “aumente a velocidade na linha 5”. Charles Chaplin é um desses operários no filme Tempos modernos (1936), que com uma chave-inglesa em cada mão, tenta desesperadamente obedecer ao ritmo acelerado da esteira, mas termina hospitalizado para tratar dos nervos. O filme, do também cineasta Chaplin, satiriza o movimento de intensificação do trabalho industrial capitalista, onde a velocidade dita a produção em massa, o lucro e o comportamento dos trabalhadores.

Fruto da criação da linha de montagem de automóveis por Henry Ford, o fordismo – nome dado ao sistema de produção em série que criou – permitiu um aumento da produtividade a partir dos recursos disponíveis, diminuindo, portanto, as despesas. Isso resolveu o grande problema das empresas, que era vender seus produtos. No mercado da época, não havia grande concorrência e os produtos tinham alto custo de produção. “A linha de produção é uma síntese da questão econômica e da questão de produção técnica”, diz Roberto Antônio Martins, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ela permite, segundo ele, acelerar o trabalho, a exemplo do filme Tempos modernos. Antes da linha de produção, afirma, os trabalhadores se deslocavam até o produto que estava sendo montado.

O novo modelo de produção que surgiu com o fordismo extrapolou os limites da indústria automobilística e foi absorvido por outros setores da economia. “O fordismo está na base de todas as transformações contemporâneas das empresas e do trabalho, pois formula um mecanismo, um regime de acumulação baseado no aproveitamento intensivo do trabalho, isto é, dos ritmos produtivos, e consegue, com isso, garantir o máximo de produto excedente possível e o máximo de lucro para as empresas”, explica Ruy Braga, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP).

Mais velocidade de produção, inevitavelmente, gerou algumas limitações. Entre elas na qualidade do produto, pois mesmo que um problema fosse identificado, a linha de produção não poderia parar para resolvê-lo. A mudança de modelos de produtos também ficou prejudicada, já que isso significava a interrupção na linha para troca de ferramentas e peças. “Dizem que você poderia escolher qualquer automóvel da marca Ford, desde que fosse preto e modelo T”, ironiza Martins, referindo-se ao modelo conhecido no Brasil como “Ford bigode” produzido nos anos 1920.

A flexibilização começou quando a General Motors segmentou sua linha através de fábricas menores. Mas quem conseguiu estabelecer a troca rápida de ferramentas, a partir do estudo de tarefa foi a Toyota. “Eles conseguem com a mesma linha oferecer vários modelos de veículos, porque trocam rápido de um produto para outro, minimizando as paradas e aumentando o tempo disponível para produzir, não precisando, como a GM, de várias empresas, ou deixando de oferecer vários modelos como a Ford”, completa Martins.


Foto modelo T da Ford
Crédito: Ford

Entrando nos eixos

No cenário atual, com o aumento da capacidade de inovação das empresas, que utilizam máquinas e ferramentas mais eficientes e trabalham com velocidades mais altas, aumenta também o ritmo de lançamento de novos produtos no mercado, explica Reginaldo Teixeira Coelho, engenheiro mecânico da USP. A inovação torna-se uma estratégia indispensável para a sobrevivência das empresas. Regra que é praticada com afinco pelas companhias de telefonia celular, informática e automobilística, sempre a oferecer novas tentações de consumo. As melhorias na produtividade são possíveis, de acordo com Coelho, porque as empresas investem no setor produtivo, treinando pessoal e adquirindo softwares que auxiliam no projeto, na fabricação e na manutenção de peças. Por outro lado, a gestão das atividades é auxiliada com ferramentas como, por exemplo, o Seis Sigma, metodologia que otimiza a performance detectando problemas mais rapidamente e permitindo que a empresa tenha uma certeza estatística de que o problema detectado realmente existe. Para Roberto Martins, “a qualidade é um fator que atrapalha a velocidade, porque ela emperra a produtividade. O Seis Sigma procura reduzir a variabilidade do processo, o que aumenta a velocidade de produção, melhorando a qualidade do produto e a produtividade ao mesmo tempo”.

Um dos efeitos rebote desse processo de produção acelerada e intensificação do trabalho é a transferência das qualificações típicas do setor produtivo para o trabalhador. Os sociólogos Ricardo Antunes, da Unicamp, e Giovanni Alves, da Unesp de Marília, no artigo “As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital” (Educ. Soc, 2004), analisaram as mudanças impostas pela esfera produtiva ao trabalhador. Entre os pontos levantados está o modo como o toyotismo diminuiu a distância entre os processos de elaboração e execução das tarefas, buscando uma nova forma de envolvimento do trabalhador. “Se o fordismo expropriou e transferiu o savoir-faire do operário para a esfera da gerência científica para os níveis de elaboração, o toyotismo tende a retransferí-lo para a força de trabalho, mas o faz visando a apropriar-se crescentemente de sua dimensão intelectual, das suas capacidades cognitivas, procurando envolver mais forte e intensamente a subjetividade operária. Os trabalhos em equipe, os círculos de controle, as sugestões oriundas do chão da fábrica são recolhidos e apropriados pelo capital nessa fase de reestruturação produtiva”, enfatizam os autores. Esse processo impõe aos trabalhadores uma crescente necessidade de melhorar sua qualificação, o que passa a ser feito através do uso de uma parte de seu tempo livre para adquirir mais “empregabilidade”.

Deterioração do emprego

A classe trabalhadora não está desaparecendo com a mecanização do trabalho industrial, como muitos temeram. O que ocorreu foi um processo distinto “que tornou o trabalho ainda mais precarizado, por meio das formas de subempregado, desempregado, intensificando os níveis de exploração para aqueles que trabalham”, concluíram Antunes e Alves. Já Ruy Braga afirma que o maior controle do capital financeiro sobre o capital produtivo redesenhou a arquitetura da empresa, causando uma desaceleração ou até interrupção na progressão de carreiras. “A empresa fordista tinha uma estrutura piramidal, com uma base larga; com o regime de acumulação com dominância financeira, o modelo passa a ser o de rede, ou seja, com grandes formas de contratação, de subcontratação, de terceirização. As pessoas ficam, então, sem horizonte, sem meios de se organizar politicamente, e estruturar uma ação coletiva”, lamenta.

Neste cenário, as tecnologias da informação garantem um controle refinado sobre o tempo de trabalho, lembra Braga. O trabalho financeirizado aumenta o índice do trabalho terceirizado e subcontratado, e o trabalho imaterial, aquele em que as aptidões cognitivas e a criatividade intelectual imperam sobre o dispêndio de energia física. Conseqüentemente, o tempo livre perde ainda mais espaço para o trabalho (leia artigo sobre lazer).

O percurso da industrialização mostra que sua manutenção é possível com o incessante revolucionar dos instrumentos e das relações de produção, o que acontece num ritmo veloz e gera profundas transformações nas relações de trabalho. Como resultado, Marshall Berman, no livro Tudo que é sólido desmancha no ar (Ed. Companhia das Letras, 1998), aponta que o trabalhador cada vez mais imaterializado por suas condições de trabalho não tem alternativa de sobreviver na sociedade moderna, a não ser assumindo a fluidez imposta por essa sociedade e aceitando as constantes e rápidas mudanças, se empenhando em sua auto-renovação, e se deliciando em sua mobilidade. “A intensa e incansável pressão no sentido de revolucionar a produção tende a extrapolar, impondo transformações também naquilo que Karl Marx chama de 'condições de produção' (ou 'relações produtivas'), e, com elas, em todas as condições e relações sociais'”. A velocidade imposta pelo ritmo das máquinas no galpão da fábrica atingiu as relações sociais, fazendo com que as antigas sejam dissolvidas e as novas tornem-se obsoletas antes mesmo de se consolidar. “Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma”, completa Berman em obra escrita em 1982.


Fordismo

Modelo de produção em massa que surgiu nos Estados Unidos na primeira metade do século XX, quando Henry Ford implantou a linha de montagem, utilizando os princípios de simplificação e padronização idealizados por outro norte-americano contemporâneo seu, Frederick Taylor. O fordismo é conhecido pela exploração intensiva do trabalhador, que é visto como um apêndice da máquina: quanto mais trabalho e quanto menos salário, maior o lucro do dono dos meios de produção.