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A mulher e o macaco
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Resenhas
A mulher e o macaco
De forma inteligente e bem humorada, Peter Hoeg problematiza as fronteiras entre humano e animal, e coloca no centro do debate a politização desse tema.
Por Marta Kanashiro
10/12/2007

“– Quando não estivermos mais aqui – ele disse – os senhores vão nos esquecer. Até que voltemos novamente. Até lá, há só uma coisa que lhes rogamos, por favor, não esqueçam. Trata-se do seguinte: como é difícil saber onde, em cada um de nós, acaba aquilo que os senhores chamam de 'homem' e começa aquilo que os senhores chamam de animal”. Essa diluição das fronteiras natureza/cultura, animal/humano poderia não causar tanto estardalhaço. Sim, porque sempre há aqueles que ao se defrontarem com a complexidade de anular as fronteiras que criamos, menosprezam de forma apressada o que consideram um risco. Assim, como menosprezam tudo que pode ser atribuído a algumas correntes teóricas, como os estudos culturais propostos po Donna Haraway (leia resenha sobre o tema). De forma geral, nos últimos anos tais debates insistem em destacar o quão simplista são esses duplos ou essas oposições binárias que têm formatado o pensamento.

Pois bem, mas a afirmação acima não passou incólume. O que ocorreu depois dela foi que “em quatro milhões de lares, sete milhões de londrinos passavam por uma crise psicótica de identidade. Estavam impedidos de saber sobre o destino da Inglaterra, da Europa, e do resto do mundo. Duvidavam do próprio governo, da própria sociedade. Desconfiavam da identidade de seus amigos e chefes”. O tumulto teve como motivo, não a frase, mas aquele que a proferiu: um macaco de 150 quilos!

A discussão sobre fronteiras é apenas uma das que está presente em A mulher e o macaco, ficção publicada originalmente em 1996. Há, inclusive, textos acadêmicos que discutem lado a lado essa obra e alguns trabalhos da área de estudos culturais, como os de Donna Haraway.

O autor dinamarquês Peter Hoeg (leia matéria do Times sobre o autor), caracterizado pela imprensa por seus longos momentos de reclusão, ficou mais conhecido por Smilla's sense of snow (1992), adaptado para o cinema (Mistério na neve em português) em 1997. Assim como em vários de seus outros livros, Hoeg também inclui em A mulher e o macaco um questionamento do modo de vida das classes mais abastadas na Dinamarca e na Inglaterra. Mas aqui, além de sinalizar o conservadorismo de colégios internos, a frieza de relações pessoais, ou a futilidade que se mescla com lençóis de cetim, o autor também usa essas classes para simbolizar a civilização e a cultura.

É desse universo que provém a alcoólatra Madeleine. Ela é casada com um famoso cientista britânico Adam Burden, que também é apresentado no livro com todos os traços civilizados que se contrapõe aos do selvagem macaco, que ironicamente é chamado Erasmus, como o humanista Desiderius Erasmus Roterodamus do século XVI.

Tudo começa quando esse macaco aparece em Londres, vítima do tráfico de animais, e é aprisionado na casa dos Burden. Mas este não é um macaco qualquer, mas um antropóide extremamente inteligente que representa para Adam uma descoberta que o fará alcançar novos postos na sua carreira além de um tesouro para o zoológico que está prestes a dirigir.

A presença do macaco na casa, muda os hábitos de Madeleine, que passa a preocupar-se com ele e resolve trocar a empreitada alcoólica pela salvação do animal. Este é o ponto de partida para que toda a relação e a definição humano/animal passe a ser questionada. É em relação à visão do homem como forma mais inteligente da evolução que Hoeg coloca, por exemplo, o tráfico de animais, a exibição de animais em zoológicos, os matadouros, as experiências científicas com animais, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

A salvação de Erasmus representa para Madeleine sua própria transformação, sua “humanização”, sua recuperação do vício. Ela se agarra a essa causa e ajuda o macaco a fugir.

Durante a fuga, a relação entre homem dominante e animal dominado vai lentamente se desfazendo. Há momentos que parece que quem guia o rumo da fuga é ela, em outros momentos, ele. Juntos atravessam rapidamente Londres e olham a cidade como quem não participa daquele lugar e notam que ninguém os vê, porque a maior parte das pessoas está imersa nos próprios problemas trazidos pela civilização. Nessas passagens e no momento em que os dois passam a viver numa floresta, há sim um quê de crítica à civilização, e à sociedade. Uma forma de resgate do que fomos antes de nos tornarmos “civilizados”. Durante o tempo que permanecem juntos eles aprendem um com o outro. Madeleine, por exemplo, ensina Erasmus a falar, a se colocar de pé. Enquanto ele ensina-a a locomover-se de forma ágil em quatro patas e a se firmar num galho. Aos poucos eles estão tão misturados que não se pode mesmo saber aonde começa o humano e começa o animal. E essa mistura é intensa ao ponto de mulher e macaco apaixonarem-se e tornarem-se amantes.

Da mesma forma como, gradativamente, o autor nos mostra esse híbrido Madeleine/Erasmus, também apresenta dicas da inteligência do macaco. Inicialmente, ele é apresentado como um animal dotado de uma inteligência quase humana, depois humana e, por fim, superior à humana. O ponto alto do livro se dá com a frase proferida por Erasmus, que abriu este texto. Ela é dita num evento do zoológico, diante de cientistas, da imprensa e de políticos. E em meio a platéia vão surgindo outros Erasmus que já conviviam com os “humanos”, sem que estes se dessem conta.

São Erasmus que ocupam posições interessantes e que dão o viés político e engajado do livro. Um deles é decano da Universidade de Londres, e conhecido por ser constantemente impedido de se tornar reitor já que tem certas idéias acerca das ciências naturais e de responsabilidade global. Outro, é a vice-diretora da Sociedade Zoológica Real, uma personalidade pública, porta-voz em questões de ética animal. Intelectual defensora da proibição definitiva de experiências animais, e da proteção jurídica, econômica, ética e social para animais. Outros dois são funcionários do Ministério da Agricultura e conhecidos por serem criticados, neutralizados e isolados politicamente pela sua tese de que a sobrevivência de animais selvagens estaria radicalmente ligada à insaciável voracidade material dos países ricos. São todas figuras que vêem algo de muito errado na forma de pensamento e produção que predomina nas sociedades contemporâneas ocidentais.

Não se trata, portanto, de um elogio ao fim das fronteiras, mas de embaralhar essas divisões e resgatar um ângulo de visão mais politizado. Certamente, está distante da profundidade das discussões propostas por Donna Haraway, por exemplo. Mas ainda assim pode ser um ponto de partida interessante que retira o homem do centro para começar a repensar o que esse descentramento pode causar, ou o que o hibridismo nos faz alcançar.

A mulher e o macaco
Peter Hoeg
Editora: Companhia das Letras
263
páginas
1996