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Reportagem
O que nos faz ser mais espertos
Por Luiz Paulo Juttel
10/12/2007

Até há pouco tempo atrás, comparar uma pessoa a alguma espécie animal soaria como blasfêmia para quase todo mundo. O homem acreditava estar um nível acima das demais espécies do planeta. Até que um dia explode como uma bomba a teoria da seleção natural de Darwin. Depois veio James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins com o modelo da molécula de DNA e, em pouco tempo, pesquisas começaram a propor uma semelhança genética de praticamente 100% entre os chimpanzés e os seres humanos. Mas, se por um lado a biologia insiste em dizer que somos como outros animais, por que nossa cognição é capaz de feitos inimagináveis a outras espécies? Onde está nossa singularidade?

Para responder a esta pergunta a ciência tem se apropriado, nas últimas décadas, de pesquisas arqueológicas, estudos com chimpanzés, análises de comportamento, neuroimagens funcionais, entre outras ferramentas de investigação. Já se pensou que a solução poderia estar no tamanho absoluto do cérebro, no tamanho relativo do córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio abstrato e outras habilidades), ou na quantidade elevada de massa encefálica, comparada ao peso total do corpo. Atualmente, pode-se dizer que a resposta caminha, principalmente, em duas direções.

Para Benito Damasceno, coordenador do Departamento de Neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) o principal atributo distintivo da nossa cognição é a complexa “organização das redes e conexões sinápticas interneuronais, especialmente em regiões pré-frontais e temporal-parietais, predominantemente do lado esquerdo do cérebro”.

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Células nervosas e sinapses
Crédito: www.greenspine.ca

As sinapses comentadas por Damasceno nada mais são que as ligações eletroquímicas que ocorrem entre os neurônios. O neurologista comenta ainda que o aprimoramento dessas conexões ocorreu durante os milhões de anos de evolução conforme o “aumento de complexidade em nossa vida social, especialmente nas atividades produtivas que levaram à necessidade de linguagem, cognição social e desenvolvimento das regiões cerebrais que as processam”.

Aliado a isso, uma pesquisa da equipe do Laboratório de Anatomia Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostra que somos o primata com o maior número de neurônios, algo em torno de 86 bilhões. No entanto, isso não é uma dádiva que nos foi concedida. “A questão é que somos a maior espécie dentre os primatas e possuímos exatamente o número de neurônios que era esperado que um primata do nosso tamanho tivesse”, diz Suzana Herculano-Houzel, coordenadora da pesquisa.

Um dos segredos para a nossa suposta superioridade cognitiva, de acordo com essa pesquisa, pode estar na regra de construção do cérebro de um primata. Ao comparar a quantidade de neurônios entre cérebros de primatas e roedores do mesmo tamanho, os pesquisadores da UFRJ perceberam uma notável diferença. “O cérebro dos primatas cresce linearmente conforme ganha neurônios”, explica Herculano, enquanto o dos roedores não. Isso possibilita que acumulemos um grande número de neurônios sem que o cérebro fique grande demais.

Enquanto o cérebro da capivara é 183 vezes maior que o do camundongo, ele possui apenas 23 vezes mais neurônios. Já nos primatas, a variação do tamanho cerebral entre o maior e menor animal pesquisado ficou em torno de 11 vezes e o número de neurônios também variou na mesma proporção. Em resumo, a regra de construção do cérebro de um primata permite que se tenha mais neurônios em um determinado espaço do que em cérebros de outras famílias de mamíferos. Isso pode fazer a diferença

Teoria da mente

Até o ano de 1950, acreditava-se que só o ser humano possuía um aparato capaz de inferir pensamentos, crenças e desejos de outros indivíduos, conceito cunhado em 1978, curiosamente por dois primatologistas David Premack e Guy Woodruff, como Teoria da Mente. Segundo a psicóloga e mestranda em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Nina Taboada, a teoria da mente “simplesmente permite a existência da vida social, e possibilita que o ser humano module seu comportamento de acordo com as pistas sociais dadas pelos seus semelhantes”.

Por exemplo: você conversa com uma pessoa e nota que ela está com uma cara de sono. Logo se deduz que a conversa está chata e que deve ser feito algo para que aquela pessoa se anime. “Sem a Teoria da Mente não haveria sociedade, nem relacionamentos interpessoais da forma como se conhece atualmente”, completa Taboada.

Em seres humanos, psicólogos e neurocientistas estimam que a Teoria da Mente surge a partir dos quatro anos de idade. A comprovação empírica desse surgimento, segundo Taboada ocorre em pesquisas de análise de comportamento de crianças. “Os principais testes acerca da teoria da mente em crianças, refere-se à situações-problema experimentais em que a criança necessariamente precisa ter a noção de que outras pessoas tem um ponto de vista distinto do seu para conseguir resolver”.

Damasceno diz também que neuroimagens funcionais, feitas por ressonância magnética e tomografia por emissão de pósitrons (PET) também são utilizadas para que se saiba quais são as áreas cerebrais envolvidas nos processos de inferência de estados subjetivos a terceiros. Agora, se a existência de uma Teoria da Mente em seres humanos é consenso para a comunidade acadêmica, nos últimos 60 anos pesquisas etológicas começaram a propor que certos recursos dessa teoria surgiram há muitos milhões de anos e existem também em outras espécies de primatas.

Isso nos leva à segunda direção para uma possível reposta acerca das raízes da nossa cognição. Se de um lado nossa capacidade cognitiva não é tão impressionante como até há pouco tempo se imaginava, por outro, nem todas as demais espécies animais possuem uma “mente” tão primitiva quanto se acreditava.

Uma prova disso é o experimento feito em 1978 por Premack e Woodruff em que eles colocaram um chimpanzé diante de um vídeo com cenas em que um ator humano era desafiado por situações-problema. Em uma dessas situações, o ator tentava pegar um alimento que estava fora do seu alcance. Após o vídeo, fotografias eram apresentadas ao animal, sendo que uma delas continha a solução do problema: uma vara que permitiria o acesso ao alimento. Em uma grande quantidade de vezes, o chimpanzé testado escolheu a opção correta para a situação. Isso, segundo eles, denotava a capacidade do animal em: reconhecer que a apresentação no vídeo representava um problema a ser solucionado, entender a intenção do ator, e escolher alternativas compatíveis com essa intenção. Tais pesquisadores concluíram que o chimpanzé domina alguns aspectos cognitivos diretamente relacionados à existência de uma Teoria da Mente.

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Pesquisas com chimpanzés abrem novas perspectivas para a Teoria da Mente
Crédito: www.sxc.hu

Pesquisas posteriores também mostraram que certas espécies de primatas dissimulam comportamentos para obter favores sexuais e alimentícios de seus parceiros. Agora, o que está em jogo para os cientistas é comprovar até que ponto a Teoria da Mente desses animais está avançada.

Para o arqueólogo da Universidade de Reading (Inglaterra), Steven Mithen, a cognição humana atual advém da capacidade da nossa espécie de vencer obstáculos impostos pelo meio ambiente nas muitas fases de nossa evolução. Cada uma dessas barreiras, como a fabricação de ferramentas (leia reportagem sobre o tema), a complexidade da vida social, a sobrevivência em ambientes cada vez mais gelados e o desenvolvimento da agricultura, arte, religião e escrita fizeram com que nosso aparato cerebral gradativamente evoluísse.

Em A pré-história da mente Mithen fala que regiões distintas do nosso cérebro, que cuidavam de aspectos diversos de nossa cognição de maneira isolada, aumentaram de tamanho e também começaram a se interconectar de seis milhões de anos para cá. O maior salto evolutivo teria ocorrido há 60 mil anos, quando os sistemas cerebrais que cuidavam da inteligência geral, técnica, naturalista e social se interligaram definitivamente, dando origem ao que Mithen chama de explosão cultural. A partir desse período há registros fósseis que indicam rituais de sepultamento de mortos, pessoas com vestimentas ornamentadas, pinturas rupestres, objetos artísticos, o desenvolvimento da agricultura e da escrita, entre outros. Tal teoria vem a corroborar a afirmação de Benito Damasceno sobre as redes sinápticas e sua ligação com a cognição humana atual tida como “superior” entre as espécies.

As promessas das neurociências, amplamente divulgadas pela mídia, dizem que em pouco tempo será possível mapear o funcionamento cerebral por completo. Quando esse dia chegar, se é que realmente chegará, talvez consigamos entender até que ponto vai a cognição de outras espécies.