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Reportagem
A história da arte de mensurar
Por Cristina Caldas
10/03/2008

Diariamente, uma enxurrada de indicadores com suas mais variadas siglas invade nossa casa, o nosso trabalho, o nosso dia-a-dia. Medir e transformar essas medidas em índices utilizados para revelar e sinalizar diversos aspectos da sociedade tornou-se parte integrante de nossas vidas. Mas quando surgiram os indicadores? Como eles se modificaram ao longo do tempo?

“As sociedades vêm manobrando uma série de medidas nos últimos 300 anos. Inicialmente, dimensões sociais como a idade da população e morte eram contabilizadas. Indicadores do panorama da população eram elementos importantes de definição das riquezas e poder do Estado”, explica Benoit Godin, líder de um grupo de estudos sobre o histórico dos indicadores de ciência, tecnologia e inovação da Universidade de Quebec, no Canadá. “Em seguida, as estatísticas econômicas começaram a ser coletadas, principalmente no começo do século XX. O mais conhecido desses indicadores é o produto interno bruto (PIB). Finalmente, uma série de novas estatísticas apareceu: cultura; meio ambiente; ciência, tecnologia e inovação (CTI)”, completa.

No início da história e da evolução dos indicadores, predominava a exclusiva quantificação, seja de pessoas, recursos ou equipamentos. Um exemplo disso são os primeiros censos populacionais, “as estatísticas mais antigas”, segundo Juarez Rizzieri, economista da Universidade de São Paulo. O tamanho da população de um país era contabilizado com objetivos fiscais e militares. O matemático belga Adolphe Quételet (1796-1874), considerado o “pai das estatísticas públicas”, fez grandes contribuições para esta área do conhecimento, de acordo com o José Maria Pompeu Memória, da Sociedade Internacional de Biometria, em seu artigo “Breve história da estatística”, publicado pela Embrapa Informação Tecnológica. “Antes dele, a estatística era uma compilação de informação numérica. Após Quételet, estatísticas mais sofisticadas, baseadas em medidas de variação, começaram a substituir médias”, esclarece Godin.

A quantificação numérica também predominava nos indicadores de CTI. No início, o interesse era “medir o estoque de cientistas”, lembra Godin. “Muitos acreditavam que não havia número suficiente de cientistas. Eles estavam se reproduzindo muito menos que as classes mais pobres, um perigo para a raça e para o desenvolvimento da civilização”. Surgiu, então, a idéia de medir o número de homens de ciência (demografia), sua hereditariedade, geografia, entre outros dados. A bibliométrica, ou seja, a contagem do número de artigos científicos também apareceu nos primórdios dos indicadores de CTI. Godin enfatiza também o papel precursor do estatístico britânico Francis Galton (1822-1911) nesse momento.

No entanto, a partir de 1920, e particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, a estatística mudou completamente, saindo da mão exclusiva de cientistas e passando a ser produzida por departamentos, agências e divisões de repartições públicas nacionais. Em seguida, instituições como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Gabinete de Estatísticas da União Européia (Eurostat) desenvolveram padrões internacionais para as estatísticas locais, como é o caso do Manual Frascati – um indicador de ciência e tecnologia – e das metas estabelecidas para a construção de indicadores sociais, em meados dos anos 1960. Essa institucionalização da estatística foi fundamental para a dispersão do termo e do uso dos indicadores.

Indicadores econômicos

Essa institucionalização também aconteceu com os índices da economia. Em São Paulo, instituições públicas e privadas, como a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe/USP), a Federação das Indústrias do Estado (Fiesp) e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese) tomaram a iniciativa de produzir índices econômicos, como explica o economista Rizzieri. “A estatística econômica mais antiga é o índice de custo de vida, de 1939, construído para acompanhar a evolução do custo de vida na cidade de São Paulo”, completa. Em seguida, vieram as estatísticas das contas nacionais e os índices de preços, ambos de 1945. O IPCA e o INPC, do IBGE, surgiram no final de 1979. As estatísticas da área monetária e financeira já eram coletadas desde a primeira década do século passado pelo Banco do Brasil, função que passou a ser desempenhada pelo Banco Central, criado em 1964, que mantém séries de indicadores desde 1965.

Uma dimensão das modificações dos indicadores econômicos ao longo do tempo pode ser percebida com o histórico do PIB e a ampla discussão que esse indicador propicia. O PIB foi criado pelo russo naturalizado americano Simon Kuznets na década de 1930, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 1971. Hoje em dia, o PIB continua sendo um indicador importante do desenvolvimento econômico de um país, embora o próprio economista que o criou tenha pontuado, durante fala no Congresso dos Estados Unidos, em 1932, que “a riqueza de uma nação dificilmente pode ser aferida pela medida da renda nacional”.

O uso desses indicadores, cuja base essencial é o dinheiro, difundiu-se durante a Segunda Guerra Mundial, como uma forma de mensurar a produção voltada para o conflito, segundo a colunista internacional e consultora de desenvolvimento sustentável Hazel Henderson, autora dos livros Mercado ético e Construindo um mundo onde todos ganhem, entre outros. Em seu artigo “PIB: um indicador anacrônico”, publicado no Le Monde Diplomatique, Henderson acrescenta que “numa lógica idêntica à do capital, o PIB enxerga custos sociais e ambientais como ‘externalidades'”. Por exemplo, um país pode cortar toda a sua floresta e registrar o valor da venda da madeira como ganho no PIB sem que nenhuma perda seja computada. “O PIB verde da China é um caso emblemático: as taxas de crescimento chinesas, em torno de 10% ao ano há mais de duas décadas, caíam a pouco mais de zero, quando descontadas as perdas ambientais”, acrescenta Henderson.

Ativista da rede mundial Ethical Markets, Henderson resgata as discussões ocorridas desde a Cúpula da Terra, ou ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, e incentiva grupos da sociedade civil a pressionar seus governantes, acadêmicos e estatísticos a criar indicadores mais abrangentes de progresso e qualidade de vida. Segundo documento da conferência Beyond PIB, promovida pelo parlamento europeu em novembro do ano passado, “não são necessárias alternativas ao PIB, e sim indicadores adicionais que o complementem”. Ainda é importante saber quão forte uma economia é, mas é necessário levar em consideração questões ambientais e sociais. Para Henderson, “talvez as 27 nações da União Européia sejam as primeiras a avançar além do modelo de crescimento do PIB e incorporem todas as estatísticas disponíveis sobre saúde, educação, desigualdade e direitos humanos, que foram abandonadas nas ‘contas-satélites' do PIB”.

Seguindo a temática do deslocamento do foco estritamente econômico dos indicadores da década de 1930, foi elaborado o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, o IDH tem o objetivo de ser uma medida sintética do desenvolvimento humano, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Sen foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, mais um ligado ao mundo dos indicadores. Além de incorporar medidas sociais – como longevidade e educação –, o IDH reflete a evolução dos índices, por ser um exemplo de indicador agregado, diferentemente das primeiras quantificações presentes no início da história.

Indicadores sociais

Abrangência é um termo que figura também nos aprimoramentos dos indicadores sociais. Embora dimensões sociais já viessem sendo contabilizadas ao longo da história, o termo “indicadores sociais” se dispersou apenas na década de 1960. Na ocasião, o governo dos Estados Unidos encomendou aos comitês responsáveis o desenvolvimento de estatísticas e indicadores sociais para mapear o progresso social no país. A publicação de relatórios, como “Towards a social report” e “Social indicators”, representaram marcos importantes do chamado “Movimento dos Indicadores Sociais”.

Esse movimento chega ao Brasil entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, de acordo com Luiz Antônio de Bento Oliveira, coordenador de população e indicadores sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Na época, o interesse era estabelecer indicadores que refletissem o ‘Estado Social da Nação', muito mais um retrato social do país”. As primeiras Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs) eram pesquisas de mão-de-obra e, com o passar do tempo, outros quesitos passaram a ser incorporados.

Para Oliveira, essa ampliação do leque das pesquisas, ocorrida a partir dos anos 1980, foi a principal modificação dos indicadores sociais no Brasil. Com a ajuda da informática e os processamentos de dados cada vez mais rápidos e complexos, os indicadores vêm avançando para problemas mais pontuais, setoriais, como questões emergentes dos direitos humanos, uso do tempo, entre outros. “A modelagem estatística mudou muito nos últimos anos, face aos avanços da computação. Nos dias de hoje, pode-se elaborar modelos mais amplos para analisar dados e construir indicadores, outrora nunca sonhados. Os métodos para avaliar os indicadores econômicos e sociais estão cada dia mais sofisticados”, explica Gauss Cordeiro, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

O movimento “Nossa São Paulo - outra cidade” é um exemplo. Concebido no final de 2006 pelo empresário e filantropo Oded Grajew, conta hoje em dia com a participação de 400 organizações da sociedade civil e tem como objetivo a construção de um conjunto de indicadores de qualidade de vida. Cerca de 130 indicadores contemplam as seguintes áreas: assistência social, cultura, educação, esporte, habitação, meio ambiente, orçamento, saúde, trabalho e renda, transporte – incluindo acidentes de trânsito e mobilidade urbana – e violência.

Indicadores e intangibilidade

Partindo de contabilizações e passando por medidas agregadas cada vez mais complexas, os indicadores “começam agora a tecer a teia da intangibilidade”, pontua Oliveira. Um exemplo é o índice de felicidade mundial, que incorpora em sua medida três indicadores: um ecológico, um de expectativa de vida e um de satisfação pessoal. Uma das perguntas feitas durante as coletas de dados para compor o indicador satisfação pessoal é: “Quão satisfeito você está com a sua vida ultimamente?”, o que carrega um alto grau de subjetividade. Essa entrada em áreas conceituais e temáticas intangíveis, como a cultura, uso do tempo, direitos humanos, tem sua importância reconhecida. No entanto, para Oliveira, “ainda há um caminho para operacionalizar indicadores que incorporem essas medidas”. Embora indicadores culturais, por exemplo, já tenham sido estabelecidos no Brasil, eles ainda tem um viés muito econômico, com a medida de gastos em cultura, número de pessoas, entre outros.

Contar já não é fácil, embora o número de pessoas e investimentos sejam dimensões tangíveis. “A dificuldade aumenta quando se quer medir coisas intangíveis como conhecimento, cultura científica, inovação e impactos”, completa Godin. Para o pesquisador canadense, embora essa seja a nova tendência dentro dos indicadores, ainda não há padrões para tais medidas. Norteando a questão dos indicadores está a definição do que se quer medir: a estatística sempre depende de definições. Perguntas como: “O que é ciência? O que é pesquisa? O que é cultura? O que é qualidade de vida?” suscitam discussões importantes. Um esforço maior de definição é requerido quanto mais subjetivo e intangível o que se quer medir é. “Definições são as bases para qualquer medida”, conclui Godin.