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Artigo
Deslocados. O espectro de um corpo-memória
Por Eugénia Vilela
09/04/2008

Contemporaneamente, figuras intimamente relacionadas com um espaço territorial emergem em todo o mundo como a incessante enunciação de uma história dos vencidos (Walter Benjamin). No espaço narrativo de um pensamento identitário cujas dimensões constitutivas são a inclusão e a exclusão – os apátridas, os refugiados, os imigrados, os deslocados – (e tantas outras figuras que fracturam os regimes do poder e da verdade) são excêntricos relativamente às ficções criadas em torno de um sentido político, social e económico convergente.

Uma vez mais, o outro cria-se a partir de um movimento centrífugo dos regimes de poder e de verdade onde, sob o signo do medo, as fronteiras são apenas traços arbitrários de definição do mundo; onde a memória é apenas o tempo impreciso do morrer. No limite, o lugar é um espaço que se faz sobre as deslocações, o medo e o ódio envolventes. Como sublinha Derrida, “a experiência terrível do nosso século, foi, e permanece, a deslocação massiva de populações que já não são constituídas por cidadãos, e para as quais as legislações dos Estados-nação não são suficientes” (Derrida,1999:69).

Uma impossibilidade de (abertura ao) outro – a outro lugar, outra palavra, outro caminho, outra viagem, outra existência – constitui-se na simetria desse espaço. Ele define um estado de aniquilamento que atinge o âmago da transmissão humana, isto é, o simbólico. E assim, o espaço fere o tempo de morte: um tempo de abandono, um tempo onde a linguagem é suturada ao mutismo do corpo que se dobra sobre si mesmo. Há, assim, uma “significação imediatamente biopolítica do estado de excepção como estrutura original onde o direito inclui em si o vivo através da sua própria suspensão” (Agamben,2003:12-13).

No interior desse cenário, os deslocados surgem como figuras enunciadas através de um mecanismo discursivo onde os corpos singulares, na sua existência concreta, são metamorfoseados em corpos abstractos enquanto corpos de discurso. Diferentes dos espaços de fechamento clássico, os espaços de deslocação e de fuga definem um modo de silêncio que se cria a partir de um movimento de ininterrupta deslocação e de contínuo abandono. Esses espaços constituem novas figuras dos estados de excepção que caracterizam a forma de biopoder na contemporaneidade. O estatuto de deslocado é conceptualmente diferente do estatuto de refugiado, uma vez que o deslocado é aquele que, num movimento de fuga no interior das fronteiras administrativas do seu próprio país, percorre distâncias indeterminadas, sem outro rumo definido a não ser o de sobreviver ao cenário de violência e morte. O deslocado não possui qualquer estatuto legal de protecção; ele move-se no interior de um espaço em dissolução onde não lhe são conferidos direitos específicos face à sua fuga. Daí que, no interior de um país em convulsão, os campos para deslocados sejam pesados espaços de desespero.1

Perdidos num movimento errático de fuga contínua, mulheres, homens e crianças são à deriva num espaço onde não existe um mapa definível. Neste território, os lugares possuem apenas um sentido precário. Através de subtis estratégias de dominação sobre a vida (direito ao corpo) e sobre a liberdade (direito à palavra), onde se expõe a dependência dos corpos aos lugares de poder, o abandono acompanha surdamente a paisagem humana.

Ultrapassando a diferença marcada por Foucault entre a enunciação do modo de poder soberano do Estado territorial – fazer morrer e deixar viver – e o modo de enunciação do bio-poder moderno – fazer viver e deixar morrer – cujo objectivo é o exercício do poder sobre a vida da espécie e das populações, Agamben assinala a emergência de uma terceira fórmula que enunciaria a especificidade da biopolítica do século XX: “não mais fazer morrer, não mais fazer viver, mas fazer sobreviver. (...) Pois não é mais a vida, não é mais a morte, é a produção de uma sobrevida modulável e virtualmente infinita que constitui a manifestação decisiva do bio-poder do nosso tempo. (...) A ambição suprema do bio-poder é realizar num corpo humano a separação absoluta do vivo e do falante, da zoè e do bios, do não-homem e do homem: a sobrevida” (Agamben, 1999:204-205).

Nos espaços da deslocação não se encontra um ponto de nascimento, mas a memória da partida anterior e a impossibilidade de regresso. A deslocação inaugura uma língua de abandono em que uma outra semântica define a progressiva desistência de raízes. Enquanto fuga, esta deslocação não é um percurso de encontro com um sentido qualquer. Como sobreviver, num cenário em que a dominação não é apenas um movimento exterior que deixaria intactos os seres e as coisas, mas é, também, uma germinação que se desenvolve no interior daquilo que se é ? A partida forçada desrealiza o movimento como símbolo de possibilidades. O movimento torna-se, assim, o flagrante delito de um traço de morte. Para o deslocado esse movimento é a deserção progressiva do seu corpo e da sua palavra, cortados do instante e da memória.

Num traçado político do espaço, a deslocação é a passagem nómada de um sentido material de sobrevivência, onde a pátria é apenas um espaço interior. Esses homens, mulheres e crianças são seres que trazem a deslocação como um movimento paradoxal de procura e perda, de presença e ausência. A deslocação desencadeia, assim, uma forma radical de estranheza onde o desejo é acossado e o corpo surge como o último lugar possível. A fronteira é a pele; entre o mundo, a deslocação e o impulso que os levou a partir. Partir para voltar. Fugir. O movimento é uma ferida que se vai constituindo em cicatriz. Uma cicatriz que deforma a figura da linguagem, da língua e da relação.

Uma inquietação essencial sobre a identidade joga-se então aqui, pois a errância é um movimento linear através de paisagens que perderam o valor simbólico. Deslocando-se sem cartografia definida, milhares de homens e mulheres “estão separados no mundo,/cada um com a sua noite,/cada um com a sua morte” (Celan,1996:59). Nesse abandono consiste uma modalidade de morte sem a destruição física dos corpos; uma destruição das forças de vida através das modalidades de “fazer sobreviver”, pela qual ocorre o recalcamento da vida nos próprios corpos. Nesse abandono reside a perda: do silêncio e da palavra. Do nome.

Sob esta narrativa, a história é concebida, antecipadamente, como um acontecimento sem testemunha. Por isso, é fundamental encontrar os corpos, dar-lhes visibilidade, reaver o silêncio, e assim recuperar a luta enunciada em cada um desses corpos, para que o acontecimento da deslocação não se converta em narrativa metafórica de uma história sem corpos. Pois, mesmo desde o interior de um lugar de horror, emergem – obstinadamente – vértices de sentido no espaço mínimo de habitação de si, isto é, num corpo enquanto acontecimento.

E assim, a figura de um modo de poder que se assume como biopoder — caracterizando aquilo que Agamben denomina a viragem biopolítica da modernidade : “em todo o Estado moderno, existe uma linha que assinala o ponto em que a decisão sobre a vida se torna decisão sobre a morte e a biopolítica pode, assim, transformar-se em tanatopolítica” (Agamben,1998:118) — é questionada. Nesses corpos em trânsito intui-se, como um abismo lateral, a irrupção de vozes paralelas onde as histórias se jogam no silêncio das línguas e dos gestos: nos corpos singulares perdidos no corpo do mundo. A recusa de se resignar, toma corpo,tanatopolítica por uma força de vida que insuspeitadamente irrompe nesses corpos impossíveis. Os corpos – singulares – de uma humanidade em trânsito surgem como fronteiras materiais (fronteira incorporada) da fractura entre a ordem do discurso e a desordem do silêncio. Deixando de se apresentar como um puro objecto e um puro signo do medo, o corpo é, ele mesmo, o gesto da fractura do sentido. simultaneamente, em sinais singulares de inscrição no mundo e numa história colectiva onde os impasses políticos e os impasses poéticos se dobram na linha obliqua de um corpo que cai. Pressente-se o esgarçar do cenário fechado da

Em A baía dos tigres, ao narrar o que testemunhou quando atravessou os territórios da guerra civil em Angola, Pedro Rosa Mendes escreve: “Homens descansam as próteses e desfrutam, dizem-me, o prazer suave da brisa nos cotos. (...) Uma jovem mutilada corre na direcção da fábrica, rápida através do frio, com um recém-nascido às costas berrando de vida. (...) Devastadora coragem, em Bonga. O mundo vive, mesmo de outra maneira” (Rosa Mendes, 1999: 94).

Em gestos que significam, simultaneamente, a habitação de si mesmos e a inversão da língua característica das políticas do mutismo, esses homens e mulheres encontraram objectos (como as próteses), movimentos e sons com os quais criam uma outra linguagem. Cada um desses gestos não é um regresso anunciado ao nada, como se cada começo fosse apenas um falso nascimento ou um desaparecimento a vir. Cada gesto é uma afirmação em que a transmissão desenha um traço violento de vida. A verdade habita precisamente esse instante, pois ela é o movimento indefinido de criação de sentido.

Escritos nos corpos, os gestos surgem como territórios inaugurais das significações. Através deles, regride-se ao tempo mínimo da criação dos sentidos do mundo: tal como os povos antigos pintavam o corpo porque o seu mundo começava precisamente no seu corpo, também aqui, uma cor, um silêncio, uma prótese ou um gesto servem para reorganizar o mundo; o mundo de cada um. Aí, a dor e a alegria que impelem os corpos a atravessar continuamente a realidade, rompem a aceitação melancólica do desaparecimento.

Eugénia Vilela é doutora em Filosofia. Professora no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigadora responsável do Grupo de investigação “Estética, Política e Artes” do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto & FCT.

1 Em Hier, demain, Nuruddin Farah regista a referência ao caso de um refugiado etíope, Oromo, que vivia num campo de refugiados que existia na Somália até ao eclodir do caos e da destruição no início dos anos noventa do século XX. Juntamente com a população somaliana, também os refugiados foram obrigados a partir, e, então, talvez ele estivesse também num campo de refugiados queniano ou talvez tivesse regressado ao seu país, a Etiópia, encontrando-se num campo para pessoas deslocadas. Se assim for, “il n'a plus la dénomination de réfugié, puisqu'il est retourné dans son pays d'origine. Je présume donc qu'on va le compter comme personne déplacée, mais en queue de peloton, et qu'il va arpenter le cercle vicieux auquel le condamne la malchance. D'emblée, il est né pauvre. Ensuite, sa situation d'infériorité s'est aggravée: sans droits politiques, il est devenu réfugié, et à présent il fait partie des personnes déplacées” (Farah,2001:41).

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. Homo Sacer I. Lisboa: Editorial Presença, 1998.
AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. L’archive et le témoin. Homo Sacer III. Paris: Éditions Payot & Rivages
, 1999.
AGAMBEN, Giorgio. État d’exception. Homo Sacer, II. Paris: Éditions du Seuil,
2003.
CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde. (Antologia poética). Lisboa: Edições Cotovia,
1996.
DERRIDA, Jacques. No escribo sin luz artificial. Valladoliz: Ediciones Mauricio Jalón,
1999.
FARAH, Nuruddin. Hier, demain. Voix et témoignages de la diaspora somalienne. Paris: La Serpent à Plumes,
2001.
MENDES, Pedro Rosa. Baía dos Tigres. Lisboa: Edições D. Quixote,
1999.