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Reportagem
Um outro modelo civilizador
Por Daniela Lot
09/04/2008

A história que aprendemos na escola sobre a África começa no período colonial (1500-1822) e apresenta os negros trazidos ao Brasil como escravos, como força motriz da empresa mercantil. De forma geral, é uma história em que os negros são percebidos como coadjuvantes, sem voz. “Nos livros de história, a África sempre aparece como pano de fundo”, explica Anderson Oliva, historiador da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Oliva explica que o que se faz é uma história eurocêntrica, que privilegia um ponto de visto europeu. “Não apenas as características da Europa como modelo civilizatório a ser copiado ou seguido – diz ele – mas tudo que parte do velho continente é apresentado como o centro da história e a partir dali se articulam as outras civilizações ou as outras histórias”. Ou seja, é uma história contada a partir da presença dos europeus na África.

Por isso, para entender de uma outra forma esse universo, o antropólogo e colaborador do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São Paulo (USP), Maurício Waldman, propõe que entendamos a África partindo daquilo que propõe como um projeto de civilização, ou seja, com uma visão centrada no continente, e não periférica a ele.“A África tem um padrão civilizatório que apresenta suas próprias contradições. Mas existe um estado de espírito construído, que faz com que as pessoas reproduzam, mesmo que inconscientemente, uma visão equivocada do continente”.

Por uma nova história

Em 09 de janeiro de 2003, foi sancionada a lei 10.639 que alterou as diretrizes e bases da educação nacional e tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino médio e fundamental, públicos e particulares. De acordo com a lei, o currículo deve conter o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra no país e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira nas áreas econômica, social e política. A lei afirma ainda que esse conteúdo deverá ser ministrado em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação artística, literatura e história.

Para Waldman, a focalização da lei nessas áreas ocorre justamente porque foi a partir delas que houve mais mobilização, sobretudo do movimento negro, para incluir a África no currículo. “A lei é resultado de décadas de mobilização social e da ação do movimento negro e de historiadores como Clóvis Moura e Abdias Nascimento”, diz ele. Waldman explica também que ocorreu uma série de mobilizações na literatura de língua portuguesa, realizada por países africanos, além de Portugal e Brasil, assim como na cultura, expressa na música, na dança e nas artes plásticas. “Esses movimentos – diz o antropólogo - pautaram a necessidade de falar sobre o tema africanista em termos de preocupação com a sociedade mais ampla”.

Jurema Werneck, médica e doutora em comunicação e cultura, e membro da ONG Criola, concorda que o movimento negro contribuiu para que a lei fosse sancionada. “Isso ocorreu por sua ação política anti-racista de longa data, pela estratégia de confrontar o Estado brasileiro e sua responsabilidade em reverter o quadro, e priorizar políticas de educação que tivessem como eixo o anti-racismo e que propusessem uma mudança nas diretrizes da política de educação e no currículo”, esclarece Werneck.

Kabengele Munanga, antropólogo do CEA da USP, acrescenta ainda que, por pressão do movimento social negro, a Constituição de 1988 incluiu a prática de racismo como crime inafiançável e sujeito à reclusão. “A lei 10.639 e a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foram também resultado da pressão do movimento social negro”, diz ele.

Já o cientista social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Elio Flores, chama a atenção para as conquistas pós Constituição de 1988 relacionadas à luta dos movimentos sociais de todo o período republicano, desde a abolição. “Nós temos a luta da frente negra dos anos 30, o teatro experimental do negro de Abdias Nascimento, Solano Trindade e Guerreiro Ramos dos anos 40, 50 e 60, os movimentos reivindicativos dos intelectuais negros e trabalhadores negros no período da redemocracia, dos anos 45 até 64, o que é retomado nos anos 70 com o grupo Palmares no Rio Grande do Sul. É daí que surge a idéia do 20 de novembro como a data da resistência negra. Nos anos 70 ocorre também a formação do movimento negro unificado”. Para Flores, as conquistas que a sociedade brasileira teve no período democrático, ou seja, a partir de 1988, são resultado dessas reivindicações e dessa organização, especialmente do movimento negro organizado, politizado.

Anderson Oliva, historiador da UFRB ressalta ainda a importância do movimento negro para modificar a idéia de África que transita em nossas memórias. Para ele, desde os anos 70 o movimento busca uma outra imagem que se distancie de uma África de pouco prestígio, que se confunde com visões estereotipadas, que privilegiam a escravidão, a violência, os golpes de Estado, as doenças, epidemias e a fome. “Reconstruir suas próprias identidades e valorizar a descendência africana é criar uma visão positiva. É importante resgatar valores, histórias, mitos. O continente começa a ser reinventado, portanto, por esses setores organizados da nossa sociedade”, completa Oliva.

Cinco anos de lei

Apesar da Lei já ter completado 5 anos, ainda não existem dados que mostrem em quantas escolas ela é de fato aplicada, nem o número de livros didáticos que abordam o continente africano com um modelo civilizatório, ou ainda quantos cursos de capacitação estão sendo ministrados para preparar os professores dos ensinos médio e fundamental. O que os entrevistados apontaram é que, com a lei, começou uma mudança de mentalidade e de olhar. A percepção mais geral é de que hoje existem mais cursos de capacitação, mais livros didáticos e mais professores preparados.

A publicação Igualdade das relações étnico-raciais na escola: possibilidades e desafios para implementação da Lei nº 10.639/2003 é o resultado do trabalho de parceira entre a ONG Ação Educativa, o Centro de Estudos Afro-Brasileiros (Ceafro) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert). De acordo com Tânia Portella da Ação Educativa, os dados disponíveis na publicação não tratam da implementação da Lei em si; mas são o resultado da discussão do tema junto à comunidade escolar, e mostram um interesse pela história e cultura dos africanos e dos afro-brasileiros.

O projeto A Cor da Cultura, proposto pelo Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan) e pela Seppir, que contou com a parceria do MEC, da Petrobrás, da TV Globo e do Canal Futura, teve por objetivo implementar a Lei, como explica Ana Paula Brandão, coordenadora de Projetos do Canal Futura: “Esse projeto não foi o único com o objetivo de auxiliar na implementação da Lei, mas foi um dos primeiros; nós fomos a algumas escolas com um kit pedagógico que foi distribuído a 3000 educadores no Brasil, em 7 estados, atingindo cerca de 90.000 alunos. Nossa intenção, explica a coordenadora, era de implementar a lei, dando aos professores subsídios. É um material didático que não é completo, mas a intenção do projeto é muito mais de sensibilização e preparação dos professores para tratar do preconceito e de uma série de questões que causam impactos na vida social”.

Pesquisas e material didático

O historiador da UFRB, aponta que a mudança na Lei e a atenção que as universidades, escolas, secretarias de educação e o Ministério da Educação (MEC) passaram a ter com seu cumprimento aumentaram o interesse do mercado editorial. Além dos livros didáticos, há também reflexos desse processo em pesquisas, na produção de teses ou dissertações no Brasil.

Bárbara Rosa, que é técnica em assuntos educacionais da Secretaria de Educação Continuada (Secad), do MEC, lembra que antes de 2003 não existia nenhum amparo legal para que fossem ensinadas as questões referentes à história da África e dos afro-descendentes no Brasil. “Existiam iniciativas pontuais de professores e de pessoas ligadas ao movimento negro, que agiam por uma questão de consciência individual. Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que foi promulgada a lei, que vem de toda uma série de conquistas e reivindicações dos movimentos negros, e decorrente também de uma série de compromissos internacionais que o Brasil firmou junto à Organização das Nações Unidas (ONU), como a Declaração de Durban e a Declaração dos Direitos Humanos na Constituição”, diz Rosa.

Werneck, por sua vez, acrescenta que o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras já era feito antes da Lei, mas de forma descentralizada e segundo interesses e capacidades de profissionais, aponta. “A Lei institui a obrigatoriedade e o caráter nacional e de política pública para o que antes era compromisso político de educadores e ativistas”, diz ela.

Invertendo a democracia racial

De acordo com Flores, a idéia da miscigenação no Brasil acaba prejudicando muito as políticas de ações afirmativas focalizadas em grupos étnicos diferenciados “No Brasil o racismo é velado. É um racismo submisso a uma subjetividade de que ninguém é racista, explica Flores. Essa lógica é prejudicial porque as pessoas confundem as políticas públicas de ação afirmativa com um enfoque exclusivo em uma cultura, uma identidade”.

Munanga explica que uma das características do racismo é negar as contribuições culturais dos outros, inferiorizá-las e não reconhecê-las. Portanto, de acordo com o antropólogo, a luta contra o racismo é uma questão de justiça social. “Ao reconhecer o outro e colocar sua cultura em um plano que não seja inferior ou secundário, como sempre foi, e compreender que isso faz parte da construção da identidade do Brasil no plural, e ainda que no cotidiano convivemos com essa diversidade, que passa de uma cultura a outra, estamos construindo a riqueza do Brasil”.

Munanga retoma a idéia de que apesar do Brasil ter nascido do encontro de culturas e civilizações, o ensino é focalizado na Europa, o que faz com que as outras raízes formadoras do povo brasileiro sejam deixadas de lado.

Assim, apesar da Lei ter iniciado uma mudança de atitude, ainda há muito a fazer para que ela não fique apenas no papel. Por isso, Flores enfatiza a importância de se avançar nas mudanças curriculares. “O problema é muito mais complexo do que resolver através de uma lei, o problema é da cultura escolar brasileira, que nunca foi acostumada e direcionada a pensar o Brasil em função de povos étnicos diferenciados. Sempre trabalhamos com o senso comum de que somos misturados, somos mestiços e portanto não somos diferentes. Essa é uma concepção que nos leva a esse retardamento de políticas afirmativas de promoção da igualdade”.

A Declaração de Durban foi resultado da terceira conferência mundial no combate ao racismo, que aconteceu na cidade de Durban, na África do Sul, em 2001.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi escrita em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), no bojo do pós-guerra. No Brasil esses direitos são incorporados na redemocratização do país e inseridos na Constituição de 1988.

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