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Editorial
Prêmio virtual, punição virtuosa
Por Carlos Vogt
10/05/2008

Sem culpa, não há punição. E de que é que somos culpados? De muitas coisas e de uma, em particular: a do pecado original, do erro da transgressão, da quebra do limite, da aventura do conhecimento, do conhecimento do bem e da desventura do mal.

Como escreve, a propósito de Freud e da psicanálise, Georges Minois no livro Les origenes du mal – une histoire du péché originel (Éditions Fayard, Paris, 2002, pp. 306-307), “essa culpa provém de um ato inicial que é o verdadeiro pecado original da humanidade: no começo da história, os homens jovens do clã mataram o pai e o comeram, porque ele reservava para si as mulheres. É o Édipo fundamental, que Freud apresenta em Totem e tabu. Tudo decorre daí. Os jovens machos que odeiam e admiram o pai liberam sua agressividade, matando-o, comendo-o para assimilar sua força e, dando livre curso à sua libido, unem-se às suas mulheres, que são suas mães. Do remorso engendrado por esse crime deriva toda a organização social civilizada: o tabu do incesto, os interditos da moral, que visam a desviar a agressividade de cada um contra si mesmo, e também a religião. Passa-se, assim, da sociedade selvagem à sociedade civilizada e aos seus recalques.”

E, citando Louis Derousseaux, acrescenta:

“A horda paterna foi substituída pelo clã fraterno, fundado sobre laços de sangue, escreve Freud. A sociedade repousa, a partir de então, sobre uma falta comum; a religião, sobre o sentimento de culpa e sobre o arrependimento; a moral, sobre as necessidades dessa sociedade, de um lado, e sobre o dever de expiação engendrado pelo sentimento de culpa, de outro lado.”

Se tentássemos apreender o conceito de punição, utilizando o hexágono lógico de Robert Blanché (Ver edição n. 89 – Determinismos, meu artigo “Determinismo e ordem simbólica” para uma breve apresentação do hexágono de Blanché), poderíamos chegar à seguinte representação:

Nesse jogo de oposição assim representado, o conceito de punição é participativo: só se aplica se for possível, contrariamente, aplicar também o conceito de premiação e o conjunto de termos que, variando em grau e em qualidade, formam o sistema de significação no caso designado pelo conceito de competição.

Quem não concorre não pode assim, nem ser premiado, nem ser punido. É o que também pode ser manifesto quando se fala em concurso da vida, expressão que poderia, da mesma forma, dar título ao sistema de conceitos representado na figura acima.

Isso nos leva a buscar associação com outros sistemas de valores que poderiam ter correspondências com aquele em que se apresenta a punição.

Quando se diz que devemos premiar os bons e punir os maus, estabelecemos um paradigma de valores no qual a bondade, opondo-se à maldade, estabelece um jogo de sinais em que o positivo e o negativo se distribuem de modo a tornar um pouco mais complexos os conceitos em questão.

Punir é sempre negativo, pelo que é punido, e positivo, pelo ato mesmo de punir o que é negativo. Nesse sentido, toda punição é virtuosa. Inversamente, premiar é sempre positivo pelo que é premiado, e positivo também pelo ato de premiar o que é positivo. É, contudo, negativo na oposição constante ao ato de punir, mas dele se aproximando no reconhecimento simultâneo e antagônico do que deve ser eleito e do que deve ser estigmatizado.

Nesse sentido, toda premiação é virtual, implicando, de alguma forma o que há de virtuoso na punição. Vale a pena lembrar que o estigma das chagas de Cristo são as marcas do castigo e da punição que lhe são infligidos e, ao mesmo tempo, de sua eleição como filho de Deus, cujo sacrifício na cruz é também a redenção de nossos pecados e o caminho figurado de nossa salvação.

Nas religiões, como a católica, em que céu, inferno e purgatório se opõem triangularmente, (ver meu artigo na ComCiência referido anteriormente) da mesma forma que verde, vermelho e amarelo, sim, não e talvez, ou bem, mal e indiferença, a relação com prêmio e punição desde logo se impõe, ficando o estado intermediário − nem premiar, nem punir, ou premiar e punir, ao mesmo tempo − para o purgatório dos médios, dos neutros, dos medíocres, no sentido técnico, mas também depreciativo deste adjetivo.

Do ponto de vista dos fundamentos psicanalíticos da organização da sociedade civilizada em oposição à sociedade selvagem, tal como mencionado anteriormente, poderíamos ter uma tensão de conceitos em que o autoritário se oporia ao permissivo, opondo-se a ambos, como termo médio, o democrático, num triângulo que reproduziria, geometricamente, as oposições de céu,inferno e purgatório, sem, contudo, carregar, necessariamente, da geografia de um para a geopolítica do outro, todas as implicações de valores lá contidas.

A horda paterna substituída pelo clã fraterno não pode engendrar a permissividade que impediria o funcionamento organizado e justo da sociedade que, assim regulada, pode encontrar na forma democrática o equilíbrio necessário entre a hierarquia assentada sobre o princípio vertical da autoridade e a horizontalidade fraternal e igualitária baseada no princípio da liberdade individual e do consentimento coletivo.

Como foi dito, temos na gênese da sociedade civilizada a necessidade da punição engendrada pelo sentimento de culpa em relação ao crime ancestral cometido em comum, o qual sustenta a religião e que, acompanhado do arrependimento, dá origem à moral. Adão e Eva e o pecado original fazem, é claro, parte dessa família.

É verdade que o nascimento das ciências humanas no século XVIII deu início a um processo de desculpabilização da sociedade, relativizando progressivamente, através da psicanálise, da sociologia, da psiquiatria, da genética, da antropologia a compartimentação do bem e do mal que o cristianismo consistentemente contribuiu para produzir.

Desse modo, as contas com o passado foram sendo acertadas sem que, contudo, tenhamos nos libertado, efetivamente, do sentimento de culpa por uma falta que se não cometemos estamos prontos e sujeitos a cometer no futuro.

Como escreve Georges Minois no livro citado, à página 397, à guisa de conclusão:

continua a desconfiar de si mesmo, e se ele se culpabiliza menos por um passado pelo qual não se sente mais responsável, ele começa a se culpar pelo futuro: que mundo vai ele transmitir aos seus descendentes? Um mundo poluído, devastado, um mundo sem fé, sem lei? E sobretudo, a quem irá transmiti-lo? A um monstro geneticamente modificado, cuja criação ele não soube impedir? A biogenética é a nova árvore do conhecimento do bem e do mal? Comer o seu fruto é tornar-se como um deus, murmura o biólogo tentador. O homem se arrepende de antemão, porque sabe que vai ser tentado a desempenhar o aprendiz de feiticeiro, pois está na sua natureza ultrapassar todos os limites, todos os interditos, custe o que custar. O novo Adão é de fato filho de seu pai.”