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Reportagem
Da fogueira à pulseira eletrônica
Por Yurij Castelfranchi
10/05/2008

Para o governador de São Paulo, José Serra, que aprovou uma nova forma de monitoramento de presos em abril deste ano, sancionando a Lei Estadual 12.906/08, esta punição “não vai constranger ninguém”. Ao contrário, vai melhorar o controle de 20 mil detentos em regime semi-aberto e diminuir os custos. Serão usados para o controle de réus condenados por terrorismo, homicídio, estupro, tráfico de drogas, tortura, entre outros. Custarão, de acordo com algumas estimativas, 600 reais por dia para cada preso. Guardas especiais? Tropas de elite? Nada disso. Serão pedacinhos de plástico, metal e silício do tamanho de uma pulseira. Aliás, serão mesmo pulseiras ou tornozeleiras eletrônicas conectadas com a rede GPS (Global Positioning System), capazes de informar 24 horas por dia a posição de um condenado em semi-liberdade.

Já experimentados no estado da Paraíba e aprovados também no Distrito Federal, esses vigias eletrônicos causaram elétricas polêmicas, não só pelas questões éticas que levantam. Muitos políticos, tanto no governo, quanto na oposição, gostaram. Outros disseram: são ilegais. Porque, de acordo com alguns promotores e desembargadores, só uma Lei Federal pode alterar as formas de restrição de liberdade. Pela constituição brasileira, somente o Congresso pode votar leis penais, declarou Sérgio Salomão Shecaira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, braço consultivo do Ministério da Justiça.

Seja como for, essa idéia de controlar condenados por ondas eletromagnéticas representa uma enésima técnica para vigiar e punir quem fez algo proibido ou condenável. Uma opção numa lista milenar. Porque o castigo é antigo como a humanidade, e mutável como as nuvens no céu tropical.

Em lugares e momentos históricos diferentes, a punição foi entendida, motivada e aplicada em formas tão diversificadas quanto a fantasia humana. Os imperadores romanos puniam os crimes mais graves (tipicamente, a rebelião contra eles) com a crucificação, a queimadura ou a luta na arena. Na Europa medieval, fundada na religião, crimes da máxima gravidade eram a heresia e a bruxaria, que mereciam penas terríveis e tristemente famosas. Os bandidos eram, por vezes, punidos por esmagamento com uma grande roda. No século XV, o conde Vlad III Drácula era chamado “Tepes”: em romeno, o “empalador”, pelo tremendo castigo que, se dizia, infligira a dezenas de milhares de inimigos, na maioria muçulmanos.

A lista das punições inventadas pelos soberanos ou pelo povo preencheria uma lista telefônica: multas, exílio e banimento, perdas dos bens ou dos direitos civis, flagelação, açoitamento, pública humilhação, penitência, trabalho forçado, serviço comunitário, mutilação ou, ainda, nos casos piores, linchamento, fogueira, fuzilamento, lapidação, enforcamento, esquartejamento, afogamento, garrote, injeção letal, cadeira elétrica, decapitação....

Penas de todas as cores

No entanto, “não é só a pena que muda”, explica Andrei Koerner, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, “mas a lógica das regras sociais que determina o que é obrigatório, permitido, proibido. Aquilo que hoje consideramos ‘crime', noutra época ou sociedade é conduta obrigatória”.

Os exemplos são muitos. Autores que outrora teriam sido considerados heréticos (e brutalmente perseguidos pelos Papas na época da Inquisição), hoje criam mercadorias de grande consumo na indústria cultural (em forma de filmes e romances, como Código da Vinci). Por outro lado, em alguns países islâmicos, conteúdos análogos são, ainda hoje, considerados passíveis de pena capital. Na Grécia de Platão, as relações homossexuais masculinas, até mesmo de um adulto com um adolescente, eram consideradas uma forma nobre de amor. Na Idade Média, pelo contrário, a sodomia foi freqüentemente punida com a morte na fogueira. De outro lado, o estupro sofrido pelas mulheres era em geral considerado um crime contra a propriedade (ou contra a autoridade paterna) e não contra a pessoa. Como conseqüência, quando a vítima pertencia à aristocracia, o castigo podia ser violento e exemplar, mas quando se tratava de uma mulher pobre, a punição era apenas monetária.

Para Jonatas Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco, vários estudiosos (entre outros, o sociólogo Émile Durkheim e o filósofo Michel Foucault) enfatizaram que a punição varia nas sociedades, bem como o que é considerado crime: crime é aquilo que julgamos como tal. De acordo com Ferreira, Foucault fala de certa tolerância que a sociedade francesa rural do século XVIII teria para com práticas que hoje associaríamos claramente à pedofilia. “Segundo essa mesma linha de raciocínio”, continua o sociólogo, “é possível pensar por que a eutanásia é considerada em muitos países como um crime, mas a negligência para com as desigualdades sociais, que resultam em desnutrição, endemias, surtos de dengue não recebem o mesmo tipo de resposta social”.

Tal como as penas, as motivações para a punição são muitas e mudam com o contexto social. Antigamente, a punição era, substancialmente, uma vingança (da vítima, do soberano ou da coletividade contra o réu). Depois, a mesma passou a ser chamada de “retribuição”: o criminoso merece receber, em retaliação, algo em troca do que fez com suas vítimas (como na Lei do Talião). Mas foram inventadas muitas outras motivações para o castigo. Por exemplo, a punição serviria como educação (para que as pessoas aprendam como funcionam as normas sociais), como intimidação (para que, conscientes do preço que podem pagar, os indivíduos decidam comportar-se adequadamente), como reparação (para dar ao réu a possibilidade de remediar o estrago que fez, por exemplo trabalhando para a comunidade), como incapacitação (para impedir uma reincidência do criminoso, afastando-o da sociedade), ou ainda, o que foi moda especialmente a partir do Iluminismo, reabilitação (ou seja, reeducar, dar a possibilidade de se arrepender, de maneira que o próprio criminoso não queira mais agir de forma inapropriada).

Punição “mais humana”?

No entanto, apesar do repúdio moderno contra a prática da vingança e do horror que sentimos ao ouvir a descrição dos suplícios antigos, a idéia de que a punição antigamente fosse irracional e selvagem, para depois ter ficado “mais humana” com o surgimento das penitenciárias e da afirmação da noção de “direitos humanos”, é ingênua. Primeiro, porque as sanções monetárias (e outras formas “leves” de punição) existem desde a Antiguidade. Segundo, porque, mesmo naquele período, as punições extremas eram utilizadas com certa cautela. Terceiro, porque o moderno sistema “humanitário”, que aprisiona milhões de pessoas submetendo-as a condições de humilhação e, em muitos casos, de violência e tortura, não é automaticamente mais “racional” ou capaz de causar menos sofrimento. De fato, as formas extremas de punição nunca foram abandonadas: mudaram de endereço e de nome. Junto com multas e prisões, ainda existem, em todos os países do mundo, inúmeros castigos violentos, para adultos e crianças: chicote, palmadas, tortura, execução por esquadrão da morte.... Para Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, do Departamento de Antropologia, da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, “diferenças e mudanças nas formas de punir não se deram (e não se dão) segundo uma única lógica evolutiva, que permitiria comparar formas menos e mais ‘aprimoradas' ou mais ‘justas' de punição”.

A pesquisadora, que também é vice-presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP), explica que hoje muitos estudiosos refutam a visão segundo a qual a vingança seria uma reação “selvagem e arcaica” a uma infração, pondo em risco a ordem social, ao passo que a “pena civilizada” seria uma reação do corpo social benéfica ao conjunto. “Sistemas penais modernos, ocidentais, dentre eles o brasileiro”, afirma Schritzmeyer, “ comportam ‘vinganças pessoais ou coletivas', sendo fortemente marcados por relações de poder e por discriminações étnicas, etárias, de gênero etc. Mudanças só podem ser entendidas em relação a seus respectivos contextos”.

“Vigiar e punir”

Em um de seus trabalhos mais celebrados, Vigiar e Punir (de 1975), o filósofo Michel Foucault trata justamente de como, ao longo da história ocidental, a lógica e as técnicas da punição mudaram. Nos séculos XVII e XVIII, diz Foucault, o poder do soberano se explicitava, de maneira predominante, como o poder absoluto de “tirar a vida”. Para que o povo testemunhasse este poder, a punição era pública e espetacularmente violenta. Mais tarde, segundo Foucault, apareceu um tipo de “economia de poder” em que não era importante somente o suplício, o castigo exemplar, mas sobretudo formas sutis de criar “corpos dóceis” cujo trabalho pudesse ser disciplinado e aproveitado. Torna-se importante inventar formas positivas de normalizar, incentivar, regular a vida da população e a essas formas associam-se instituições como prisão, hospital e escola.

Ana Lúcia Schritzmeyer ressalta no entanto que Foucault não afirma serem as prisões uma evolução positiva em relação aos castigos corporais e espetaculares. “O que ele faz, brilhantemente, é demonstrar como as prisões (e também hospitais, escolas e fábricas) resultam de um novo modo de conceber um controle eficaz de corpos e mentes”.

Para Jonatas Ferreira, Foucault entendia que o poder já não era uma questão de soberania, mas de administração dos corpos, da vida biológica. “Os governantes – diz Ferreira – já não precisavam recorrer ao espetáculo da morte, ao terror, para governar. O poder estava disperso nas práticas diárias de controle sobre a vida biológica”.

Ainda segundo Ferreira, embora a reabilitação e a disciplina desempenhassem um papel importante na racionalização da vida nas sociedades ocidentais, “formas tradicionais de punição continuaram a existir”. Basta pensar a pena de morte: abandonada na França apenas durante o século XX, ainda adotada em alguns estados dos EUA, desejada por muitos no Brasil. “Seria interessante”, afirma Ferreira, “contrastar, por exemplo, o discurso reabilitador do sistema penitenciário brasileiro e a sua realidade efetiva”.

Guantánamo na sociedade dos direitos universais

De fato, ao mesmo tempo em que os castigos extremos e as torturas são descritos como algo do passado, formas de punição “clássica” reaparecem em novos contextos. O objetivo de prisões como a de Guantánamo (prisão norte-americana em Cuba) parece ser, entre outros, de demonstrar que o poder de castigar o terrorismo deve ser absoluto e impiedoso. Ao mesmo tempo, em muitos regimes islâmicos, a punição corporal e os suplícios são parte da lei.

“A guerra contra o terror intensifica uma combinação entre ação militar e policial”, comenta Koerner. Em princípio, são duas formas de ação diferentes, pois a primeira destina-se à vitória contra um inimigo externo, organizado em força armada, enquanto a outra teria a finalidade de manter a segurança interna, tendo como seus objetos e destinatários os próprios cidadãos e utilizando a força apenas como recurso extremo. “O objetivo da destruição do inimigo estende-se a seu julgamento e punição”, continua o pesquisador. “O terrorista é um inimigo ao mesmo tempo interno e externo. O risco que se lhe atribui passa a justificar ações antecipadoras, para cuja eficácia considera-se necessário romper-se com interditos fundadores da ordem constitucional contemporânea, tais como o respeito absoluto à integridade física dos indivíduos e a proteção de suas liberdades civis e políticas”.

Disciplina e controle

Além disso, hoje outras técnicas parecem também ter importância. Andrei Koerner explica: “Fala-se hoje em sociedade de controle, ou pós-disciplinar. A punição é pensada em função da retribuição do mal e da neutralização do indivíduo que cometeu o ato criminoso. Ampliam-se formas de monitoramento das condutas, a fim de prevenir atos criminosos e evitar os seus efeitos”. Os projetos de “regeneração” dos condenados ficam, em muitos casos, em segundo plano, e se dá mais importância a “uma lógica da antecipação que se aplica em campos como as operações financeiras, a internet e, também, as pulseiras eletrônicas que se colocam nos condenados em liberdade provisória”. O controle dessas práticas torna-se, segundo Koerner, mais difícil: a lógica da segurança amplia o mandato das autoridades policiais e as demandas de resposta imediata dessas autoridades. Além disso, há uma privatização do controle dos espaços públicos e privados.

Por outro lado, para Jonatas Ferreira alguns comportamentos de hoje podem ter a ver com um certo “prazer em se adequar”. O castigo corporal e a lógica disciplinadora, diz o pesquisador, dividem hoje espaço com uma forma de controle em que seguir a norma é fortemente recompensado com honras sociais. “A zoologização da vida cotidiana em reality shows”, se pergunta Ferreira, “não é recompensada com a fama meteórica? As dores por que passam aqueles que se submetem a cirurgias plásticas cosméticas, dietas miraculosas, exercícios físicos, não são recompensadas pelo olhar público?”.

Ao mesmo tempo, para Ana Lúcia Schritzmeyer, tecnologias de punição aparentemente novas, como a castração química para os pedófilos, são “ reedições de velhas (e falidas) formas de pensar a punição, segundo as quais os condenados são como doentes incuráveis que devem extirpados do corpo social ou mantidos à sua margem”. Para a pesquisadora, hoje predomina um tipo de sistema penal “excessivo, inflacionário e pouco eficaz porque se distanciou da moral e é menos interiorizado”. Um sistema cheio de ficções que ocultam “preconceitos, privilégios e conflitos sociais que estão na própria origem e manutenção tanto de penas (oficialmente predominantes) quanto de tortura, castigos físicos e morais (oficiosamente predominantes)”.

A pulseira eletrônica suscita uma discussão porque é mais um elemento no labirinto complicado do vigiar, do punir, do autovigiar e, às vezes, auto-punir. Um elemento em que se entrecruzam as histórias velhas e novas que a humanidade inventa para explicar os castigos que inflige a seus membros.