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A ficção como vitrine
Por Heloisa Buarque de Almeida
10/06/2008

Estas reflexões advêm de uma pesquisa etnográfica – método de pesquisa usado pela antropologia, que consiste em conviver com as pessoas pesquisadas, fazendo “observação participante” – que foi parte de minha tese de doutorado. Convivendo com famílias de classe média e classe trabalhadora em Montes Claros (MG), com as quais eu acompanhava uma novela das 21hs, exibida pela Rede Globo, pude inicialmente notar como as pessoas interagiam, debatiam com a novela, e chocavam-se com a moral sexual ali representada. As novelas da Globo referem-se a um mundo cultural dos grandes centros urbanos, da classe média e alta carioca e paulista, e muitas vezes suas imagens e histórias chocam-se com a moral, o contexto cultural e social de outras partes do país, como outras pesquisas antropológicas já tinham demonstrado.

Entretanto, outro tema ganhou importância a partir de sua relevância na vida cotidiana das pessoas, particularmente relacionado à interação com a mídia. Como as pessoas consomem a própria novela e a partir dela, como são promovidos ideais de corpo e de beleza, como se cria o desejo de comprar certos bens, como roupas da moda ou fazer dietas e ginásticas, ou adquirir s bens de consumo muito associados ao espaço doméstico. Um dos pontos de debate constante com a televisão e com as novelas da Globo, e inclusive uma forma de crítica por esses espectadores, é o quanto elas mostram um mundo repleto de bens, gerando o desejo de comprar e consumir nos espectadores.

Durante a pesquisa de campo, este era o aspecto em que a mídia parecia ter mais poder: o consumo, a promoção e venda de vários tipos de bens (inclusive bens culturais) e serviços. A novela ensina e prepara o espectador para entender e atuar numa sociedade de consumo e auxilia na compreensão de linguagens, valores e estilos de vida usados na publicidade. Passei a estudar a esfera da produção da televisão comercial aberta em sua interface com a publicidade e com a forma de funcionamento simbólico da propaganda.

Na análise sobre a televisão brasileira e seu modelo comercial, tanto no universo acadêmico como no empresarial, ressalta-se a questão da imbricada associação entre televisão e publicidade, com a formação mais ampla, desde meados dos anos 60, do mercado consumidor nacional (por exemplo, o trabalho de Kehl, 1986). No jargão do meio publicitário, a TV facilita a criação de “novos comportamentos”, ou seja, novos hábitos de consumo e de atitudes do cotidiano que impulsionam a compra e o uso de novos produtos. Isso constitui inclusive um senso comum no meio publicitário, segundo profissionais que entrevistei, que afirmam que a TV permite construir “padrões de comportamento”. A televisão seria parte integrante do desenvolvimento do país, transformando a população em mercado consumidor ativo, criando uma “disposição ao consumo” – nos termos dos próprios profissionais do meio publicitário ou televisivo.

Há mecanismos acionados pela novela para promover o consumo, além de mostrar um estilo de vida consumista das classes médias dos grandes centros urbanos, e da promoção objetiva de moda e bens ligados diretamente às novelas (como as trilhas sonoras ou o merchandising). A novela parece ter um funcionamento semelhante ao da publicidade na promoção de bens e serviços. A publicidade vende diversos produtos, mas como fenômeno social ela vai além, promovendo mais do que os produtos, o hábito de comprar, o consumo.

O trabalho de Stuart Ewen (1976), que analisa o caso dos Estados Unidos no início do século XX, trata o fenômeno da publicidade como processo de educação e socialização que ensina os cidadãos a consumir, criando consumidores. A publicidade é, assim, um braço fundamental da expansão do processo de industrialização, incentiva a formação de consumidores para os bens, promove novas construções de espaço doméstico e de cuidados pessoais que precisam destes bens para se efetivar. O discurso dos empresários analisados por Ewen afirma literalmente que a entrada no mercado consumidor é uma "experiência civilizadora". A família e o espaço doméstico é o centro do consumo nesse processo inicial de formação de uma sociedade de consumo. E a televisão parece ser, no Brasil, o meio ideal para efetuar essa mudança de comportamentos, esse “processo civilizador”.

Desde esse período, a mulher é vista como a consumidora por excelência, pois é ela que compra a maior parte dos produtos e para o lar. Tanto aqui, como na discussão sobre a novela, há uma associação simbólica constante entre família, espaço doméstico e feminilidade. A novela é também pensada, pelo meio industrial e publicitário, como um produto feminino. É na esteira da associação entre mulher e consumo que a telenovela surge (e se mantém) como um programa especialmente adaptado a vender uma grande variedade de produtos e estilos, dado que o gênero narrativo já era visto como feminino. Novelas, para o meio publicitário, ainda que femininas, são vistas como capazes de atingir “todo mundo”, “a família toda” que assiste à TV, todas as classes sociais, o Brasil em geral. Há inclusive uma constante confusão entre “familiar” e “feminino”, ou seja, a própria esfera das relações familiares, especialmente tomadas como dentro do espaço doméstico, é feminilizada.

As ações de merchandising (inclusão de produtos anunciados no meio da narrativa) permitem que a novela use de um recurso muito comum nos anúncios de televisão: o que os publicitários denominam de “demonstração” do uso do produto, muito citado nos manuais de publicidade. Também o modelo de anúncio denominado “problema e solução do problema” pode surgir no merchandising.

Outro importante aspecto da questão comercial das novelas são os subprodutos lançados em cada narrativa. O disco com a trilha sonora é um dos produtos mais diretamente vendidos. No entanto, um dos pontos mais reconhecidos na associação entre novela e consumo é aquele que é mais uma vez feminilizado: a moda, as roupas, os estilos dos personagens. Na maioria dos casos, a moda da novela está de acordo com o que está em voga no período de sua exibição, no entanto, nem tudo que é lançado dá certo. É necessário que o produto tenha uma “imagem de marca” – que freqüentemente é criada pelo usuário do produto, no caso o personagem da novela – que crie simpatia no público que quer atingir.

A moda sofre um processo de popularização através da novela – que na verdade é a contrapartida da questão de distinção discutida por Bourdieu. O que antes era uma moda européia e de elite, populariza-se com a novela, e ao final da narrativa está nas lojas populares. Nas novelas, pode surgir uma moda específica, associada a um personagem ou narrativa, mas na maior parte das vezes trata-se apenas da popularização de um estilo que pode ter se iniciado uma estação antes, na França por exemplo. O mesmo tipo de roupa que havia sido moda um ano ou um semestre antes nas revistas européias mais elitizadas – como Vogue ou Elle. No começo da novela, as revistas femininas nacionais para camadas médias e altas divulgam o mesmo que está na tela da Globo, que também vemos nas vitrines dos shopping centers voltados às camadas mais altas, mas ainda não nas lojas populares. Ao decorrer da novela, o estilo se populariza e ao seu final a mesma moda torna-se acessível às camadas populares, mas já é considerado “fora de moda” para as camadas mais altas.

Em cada novela, são vários desses estilos que são mostrados, inclusive usados para diferenciar os personagens entre si. As roupas constróem a personalidade e o estilo de cada personagem; demonstram de modo rápido e visual como os indivíduos se diferenciam e se destacam numa sociedade de consumo.

O tema dos produtos lançados e sua publicidade (que pode ser indireta) mesclam-se à questão dos personagens com os quais os produtos podem ser identificados. O problema remete a um tema típico da publicidade, ou seja, da identificação que o anúncio tenta criar entre usuário do produto e pessoa com a qual o consumidor pode se identificar, sentindo-se valorizado e projetado no produto. A personalidade ou estilo do usuário ajuda a construir a imagem de marca do produto e, por outro lado, o uso de certos produtos é parte da composição do personagem, como os casos de roupas citados acima. Aliás, é por favorecer-se dessas associações simbólicas que muitos atores estrelam anúncios de diversos produtos, por vezes até agregando a imagem de personagens ao produto.

Wernick (1991) lembra que a estrutura básica da mensagem publicitária consiste na associação entre o produto e um segundo nível, seu significado, ou qual significado o anúncio (ou toda história de suas campanhas) constrói para o produto (a “imagem de marca” ou “personalidade” do produto de que tratam os manuais de publicidade). O passo central desse processo é uma associação entre mercadoria e sentido que se enraíza, e todos os significados se confundem com o próprio produto. O objeto em si, sem sentidos agregados, já não existe mais – ele e seus sentidos tornam-se uma só entidade. E estes sentidos, para que o anúncio cumpra a sua função, precisam atrair os consumidores, ter a capacidade de criar uma identificação com seu público alvo.

O que se focaliza de modo bastante óbvio em vários anúncios – e também nas novelas de modo indireto com todos os bens que os personagens consomem – é um estilo para o/a consumidor/a daquele produto. Em outras palavras, a “imagem de marca” que os publicitários gostam de destacar é muitas vezes construída pelo estilo de vida mostrado pelo usuário do produto, e que remete a um estilo de vida para aquele que consome determinado produto – o que na novela é parte da construção do personagem.

Alguns desses produtos promovidos pelas novelas podem ser direcionados para as camadas de maior poder aquisitivo, ao passo que a moda feminina e as trilhas sonoras pretendiam atingir uma população mais ampla. Há assim uma divisão entre aqueles produtos que estão sempre presentes nas novelas – como as trilhas sonoras – e alguns mais específicos que podem se dirigir a públicos considerados mais particulares de uma dada narrativa.

A questão da moda e dos estilos dos personagens não é mera estratégia de promoção – está presente mesmo quando não se pretende vender um produto qualquer, mas apenas pela própria construção das personagens – e pode gerar um processo mais amplo, pois ensina aos espectadores de todo o país, de todas as camadas sociais e mesmo aqueles de baixo poder aquisitivo, o que é e como atuar numa sociedade de consumo. Os estilos mostram as diferenças entre as pessoas numa sociedade de consumo, ensinam os espectadores a “ler” as distinções sociais pela moda e pelas roupas que vestem – como o fato de usar roupas na “última moda” era destacado pelas personagens femininas de maior poder aquisitivo.

Numa sociedade de consumo, o estilo do que é usado e vestido costuma ser associado a uma marca de individualidade, de distinção e autonomia. Embora a cultura de consumo, como denomina Featherstone (1995), seja uma forma de classificar o mundo social em categorias de pessoas, promovendo marcas visíveis de distinção e prestígio. Ela, ao mesmo tempo, usa imagens e símbolos que sugerem imaginariamente ao consumidor que é ele que escolhe o quer consumir de acordo com seus desejos e sonhos mais íntimos, como uma realização de si mesmo. Por este motivo, as roupas são um dos sinais mais fortes na tentativa de distinguir-se e assumir um estilo individual. Aquilo que está na “última moda”, embora possa tornar várias consumidoras semelhantes entre si, tem, no entanto, vários sentidos simbólicos: ser moderno, estar atualizado, cuidar-se, manter-se bonita, entre outros. Recusar a moda pode ser uma forma de criar um estilo particular.

A novela efetua assim o papel de uma vitrine viva, que familiariza o espectador com diversos estilos e modas. Através dos personagens e de toda sua história na narrativa, os estilos de vida – que incluem roupas, entre outros produtos e serviços que cada personagem utiliza – são aos poucos compreendidos pelo público. A novela tem muito mais tempo do que os anúncios e atenção mais garantida dos espectadores para poder explorar esses diversos estilos, que mostram muitas vezes como os personagens vestem-se, portam-se, o que consomem em suas casas em termos de bens duráveis, a que tipo de serviços recorrem, e tudo isso é associado a que tipo de pessoas são, suas particularidades – construindo assim “estilos de vida” em conjunto com o uso de determinado produtos. Os mesmos estilos podem depois ser usados nos anúncios de modo bem curto e rápido, sem muita explicação, pois o espectador já se familiarizou com eles pela novela (e igualmente por outros programas, como os filmes e seriados).

Heloisa Buarque de Almeida é professora do departamento de Antropologia da USP e pesquisadora associada ao Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Heloisa Buarque: Telenovela, consumo e gênero: “muitas mais coisas”, Bauru, EDUSC, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilo de vida. In Bourdieu, Col. Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1983.
BOURDIEU, Pierre: Distinction: a social critique of the judgement of taste, Cambridge, Harvard University Press, 1984.
EWEN, Stuart: Captains of consciousness – advertising and the social roots of the consumer culture, New York, McGraw-Hill, 1976.
FEATHERSTONE, Mike: Cultura de consumo e pós-modernismo, São Paulo, Studio Nobel, 1995.
KEHL, Maria Rita: “Eu vi um Brasil na TV” in: Costa, Simões, Kehl: Um país no ar: história da TV brasileira em três canais, São Paulo, Brasiliense, 1986.
WERNICK, Andrew: Promotional culture – advertising, ideology and symbolic expression, London, Sage, 1991.