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Artigo
Difusão da biologia sintética: um desafio para a biossegurança
Por Markus Schmidt
Tradução: Rodrigo Cunha
10/10/2008

Artigo originalmente publicado no periódico Systems and Synthetic Biology no segundo trimestre de 2008

Rapidamente tornando-se um dos mais dinâmicos novos campos da ciência e da engenharia, a biologia sintética tem o potencial de impactar diversas áreas da sociedade. Biólogos usam moléculas artificiais para reproduzir comportamentos que emergem na biologia natural, com o objetivo de criar vida artificial ou buscar partes biológicas intercambiáveis para juntá-las em dispositivos ou sistemas que funcionem de maneira não encontrada na natureza. Avanços da biologia sintética, em particular a síntese calculada de complexos sistemas biológicos, têm a capacidade de mudar a forma de chegarmos a muitas tecnologias-chave e aplicações biotecnológicas.

O conhecimento dos princípios do desenho de sistemas biológicos se torna mais fácil de ser obtido, e as capacidades de fabricação estão cada vez mais poderosas e em toda parte. Tarefas como sequenciar ou sintetizar DNA, que alguns anos atrás tinham que ser realizadas por cientistas com pelo menos doutorado, agora podem ser feitas por assistentes técnicos ou são terceirizadas para máquinas inteiramente automatizadas. O aumento na capacidade de produção para sequenciar e sintetizar já tem sido comparado à lei de Moore na microeletrônica. Avanços na capacidade tecnológica relacionada à síntese e sequenciamento estão associados ao esforço de converter a biologia em uma verdadeira disciplina da engenharia, com características como simulação de modelos, estabelecimento de hierarquias de abstração, padronização e intercâmbio, e a separação de projeto e fabricação. Se bem sucedidas, essas mudanças vão, além disso, facilitar o uso racional de sistemas biológicos. Irão também ampliar o círculo de pessoas com as habilidades necessárias para projetar biologia. A competição de estudantes para o desenho de máquinas geneticamente projetadas (iGEM, na sigla em inglês), por exemplo, reúne estudantes de graduação de várias disciplinas, incluindo estudantes de disciplinas não biológicas, como engenharia e informática. Seu objetivo é promover o uso de partes biológicas padrões e aumentar o número de partes utilizáveis para tornar o desenho de organismos novos e úteis mais fácil e mais interessante. A difusão da biologia sintética, em outras palavras, o fácil acesso e a simplicidade de usá-la, criaria automaticamente uma mudança sem precedentes em biossegurança.

Os recém-chegados e a segurança em laboratório

A biologia sintética é um campo realmente interdisciplinar, envolvendo químicos, biólogos, engenheiros, físicos ou cientistas da computação. Algumas dessas comunidades e atores da biologia sintética são geralmente formados em disciplinas que não incluem rotineiramente uma educação formal em biossegurança. Na medida em que o crescente interesse em biologia sintética atrai um número de não biólogos para o campo, a quantidade de recém-chegados sem formação em regras de biossegurança também aumenta. Em recente documento sobre genômica sintética (Garfinkel et al., 2007), algumas opções de controle apresentadas podem ajudar a mirar esse fenômeno:

- Incluir formação em biossegurança como parte de uma educação interdisciplinar em biologia sintética, lidando com riscos e práticas mais desejáveis como parte do currículo universitário, crucial para pelo menos preparar esses recém-chegados para as mudanças em segurança na biologia sintética.

- Preparação de um manual de biossegurança para laboratórios de biologia sintética, distinto dos manuais já disponíveis.

- Estender as inspeções dos Comitês Institucionais de Biossegurança de forma mais rigorosa na supervisão e/ou cumprimento da lei.

Essas e outras estratégias podem controlar o possível problema associado ao fato de que muitos novos pesquisadores com formação profissional diversa da biologia não são habilitados na manipulação de (perigosos) materiais biológicos em laboratório. Essas estratégias, no entanto, são praticamente inúteis se os recém-chegados não estão trabalhando em um ambiente profissional e não são responsáveis perante a autoridade pública, como é o caso dos famosos biopiratas.

Biopirataria, biologia de garagem, biologia do “faça você mesmo”

Quanto mais a biologia se torna uma ciência da informação, mais os cenários em programas de computador se tornam possíveis dentro da biologia. Não é surpresa que algumas pessoas das tecnologias de informação ou comunidades de engenharia a par dos recentes progressos em biologia sintética antevejam um avanço que leve cientistas da computação e/ou piratas a mudar seus interesses para a biologia. Também é verossímil que, no futuro, cada vez mais pessoas sem uma formação tradicional em biologia ou genética (e provavelmente sem até mesmo o ensino superior) serão capazes de fabricar sistemas biológicos. A biologia sintética pode, portanto, levar ao aumento de um novo tipo de pirata cultural, o “biopirata”. Biopirataria significa desenhar e fabricar sistemas biológicos de forma aberta, mas simplesmente sem nenhum tipo de supervisão regulatória ou cumprimento adequado da lei. Apesar de o número desses biopiratas ser relativamente limitado, não demora muito para que documentos com DNA pirata de uma tecnologia barata do tipo “faça você mesmo” estejam disponíveis na web.

Recentemente, um grupo de discussão online de biologia “faça você mesmo” (DIY-Bio, na sigla em inglês) foi lançado e motivou os biopiratas a participar do seu primeiro encontro presencial em Boston (EUA), em maio de 2008. Uma multidão de jovens entusiastas da biopirataria pode bem seguir o exemplo do “Clube do Aplicativo de Computador Caseiro”, de meados dos anos 1970, e uma verdadeira comunidade de biopiratas pode despertar uma imperceptível onda de inovação em programas de pesquisa cooperada. Facilitar a todos a construção de novas formas de vida ou sistemas biológicos, no entanto, também cria um risco inerente em biossegurança (e em biodefesa). Imaginar um mundo onde praticamente qualquer um com um certo QI teria a habilidade de criar novos organismos na garagem de sua casa sem aderir a um código profissional de conduta, a um sistema de acúmulo de informação, e com carência de uma formação suficiente em biossegurança, é uma idéia assustadora.

É verdade que existe uma espécie de código de ética informal para a comunidade pirata que pede para “ser seguro, não causar dano a nada nem a ninguém – física, mental ou emocionalmente –, ser divertido, pelo menos para a maioria das pessoas que aderirem a ela”. Essa ética pirata, porém, não impede e nem pode impedir as grandes quantidades de programas pouco cuidadosos internet afora. Quanto mais as experiências para programar DNA em uma linguagem binária tiverem êxito para a engenharia biológica, mais será possível o surgimento de “bio-lixo, bio-espionagem, bio-anúncios”, e outros bio-transtornos. Um cenário de biopirataria sem limites pode colocar sob risco sem precedentes a saúde de um biopirata, a comunidade em torno dele ou dela e o ambiente. Esse cenário não passou totalmente despercebido pela comunidade biopirata, e certos membros começaram a mostrar pelo menos algum interesse em questões de segurança, questionando, por exemplo, “como usar um fogão como esterilizador” ou pensando em como obter determinados vídeos de segurança em laboratório.

Bio-economia ilícita

Em contraste com um cenário de biopirataria amplamente guiado pela curiosidade, outro cenário possível pela disponibilidade dessa tecnologia pode envolver propósitos econômicos ilícitos. Entre as potenciais aplicações da biologia sintética está a produção de química fina de uma forma mais fácil e barata que a feita atualmente. Embora a maioria das pessoas possa imediatamente pensar em fármacos, bio-plásticos ou bio-combustíveis, o alcance dos produtos químicos não está limitado por normas morais. De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, por exemplo, cerca de 200 milhões de pessoas, ou 5% da população mundial entre 15 e 64 anos, consumiu drogas pelo menos uma vez nos últimos 12 meses. Sem esquecer que o tamanho do mercado ilícito global de drogas é imenso, com um valor, medido em preços de varejo, maior que o PIB de 88% dos países do mundo.

Um dos exemplos mais importantes de biologia sintética é a produção de artemisina para tratamento anti-malária em fermentação projetada. A estimativa é que essa forma de produção possa reduzir em até dez vezes o custo em comparação com a forma tradicional de produção, isto é, a plantação da Artemisia annua e a posterior extração de seus compostos bioquímicos. Não há razão para acreditar que a biossíntese completa de drogas atualmente semi-sintéticas como heroína ou cocaína, ou completamente sintéticas de estimulantes do tipo anfetamina não serão possíveis ou economicamente atrativas usando a ferramenta da biologia sintética em um futuro próximo. Dado que, por exemplo, 2,8% dos norte-americanos adultos são consumidores regulares só de cocaína, a futura bio-economia ilícita pode passar por algumas mudanças dramáticas, uma vez que a tecnologia para fabricar metabolismos à la carte esteja disponível.

Biodefesa

A biodefesa tem que ser considerada pelo prisma da segurança nacional, e não da segurança para a saúde ou o ambiente. Há, contudo, aspectos desta última que também estão envolvidos. É verdade que a biodefesa não lida exclusivamente com biologia sintética, entretanto, é improvável que uma nova tecnologia tão poderosa passe despercebida pela comunidade de biodefesa. Vale a pena lembrar, ainda, que uns dos primeiros vírus completamente sintetizados foram o vírus da poliomielite e o vírus influenza da gripe espanhola de 1918. Desde os ataques de 11 de setembro, os recursos para o trabalho em biodefesa aumentaram dramaticamente nos Estados Unidos. O Fundo de Biodefesa Civil do governo, entre os anos fiscais de 2001 e 2008, custou aos contribuintes mais de US$ 39 bilhões. Mas mesmo dentro dos Estados Unidos há muitas vozes questionando esse tipo de alocação de recursos. Klotz (2007) usou recentemente o cálculo da taxação básica do risco para nos alertar para o desequilíbrio na aplicação e esforços entre biodefesa, “a ameaça superestimada”, e as doenças infecciosas endêmicas, “as verdadeiras assassinas”. De qualquer forma, essa questão não é restrita apenas à biologia sintética, a qual pode apenas acelerar o avanço da situação.

Segurança para biopartes padronizadas

A pesquisa que se ocupa com biopartes padronizadas sugere que poderia ser possível – um dia – ter-se uma caixa de ferramentas com biopartes que possam facilmente ser montadas em dispositivos e sistemas. À medida que a pesquisa e desenvolvimento em biopartes padronizadas progride, veremos mais e mais partes, dispositivos e sistemas com características diferentes. Se essa idéia tiver êxito, ela pode significar uma tremenda simplificação no processo de desenho de organismos vivos, de tal forma que mesmo um estudante secundário poderia projetar seu próprio animal de estimação. À medida que mais partes se tornem disponíveis no catálogo de bio-legos e mais pessoas tenham acesso geral a especificações de seqüências e sínteses de DNA, a tarefa de controle legal do acesso e uso se tornará altamente intangível. Como nenhuma outra caixa de ferramentas, algumas combinações de partes, dispositivos e sistemas poderiam suscitar preocupação com biossegurança, especialmente quando comportamentos emergentes de novos biocircuitos não puderem ser controlados fora do previsto, devido à falta de separação suficiente das unidades funcionais (como em circuitos integrados) e ao número vertiginosamente crescente de possíveis interações entre essas unidades.

Conclusão

Uma mudança raramente mencionada em relação ao desenvolvimento seguro e construtivo da biologia sintética é o avanço da difusão da tecnologia, do conhecimento e das habilidades entre a comunidade profissional de biotecnologia. Esse universo, em primeiro lugar, envolve engenheiros e cientistas da computação, mas mais tarde irá incluir também outros grupos além dos círculos acadêmicos e profissionais, como piratas e estudantes escolares, e talvez mesmo indivíduos menos idôneos e organizações ativas na bio-economia baseada em conhecimento ilícito. Finalmente, o expressivo investimento e crescimento da comunidade de pesquisa em biodefesa e de suas atividades também suscita algumas questões sérias de segurança, tanto para os profissionais da biodefesa quanto para as comunidades envolvidas. O crescimento do acervo de bio-legos baseados na manipulação de biopartes padronizadas também abre questões particulares em biossegurança que precisam ser tratadas à medida que mais pessoas comecem a usá-lo.

A biologia sintética poderia muito bem ser a nova revolução industrial definidora do século XXI, e assim sendo, seria absolutamente necessário considerar as implicações de sua difusão, bem antes que ela se materialize, e planejar estratégias para minimizar os riscos de segurança. Não há, contudo, nenhuma receita mágica para resolver essa complexa questão, e a proibição justificada não é uma opção, se quisermos colher os benefícios da biologia sintética. Alguns cientistas argumentam que certas tecnologias chave em biologia sintética (como a síntese de DNA) serão controladas por poucas empresas e mais eficientes, automaticamente criando gargalos para regulação e licenciamento. Tal desenvolvimento pode ser comparado ao da indústria eletrônica, onde atualmente apenas um punhado de empresas produz chips de computador. Esse processo de concentração econômica e tecnológica poderia, por um lado, resolver facilmente o problema de experimentos fora de controle, mas por outro lado, poderia limitar a “domesticação democrática” da biotecnologia.

Não há, porém, nenhuma receita ou ferramenta que possamos aplicar para minimizar os riscos de uma biotecnologia que um dia pudesse ser tão fácil de usar que todo mundo poderia projetar seu próprio organismo. Deixar de tratar das mudanças impostas pela difusão da tecnologia, do conhecimento e das habilidades em biologia sintética pode levar a uma situação em que não possamos mais voltar para fechar a “caixa de Pandora”. O melhor a fazermos é começar a pensar sobre isso agora.

Markus Schmidt é coordenador do projeto Synbiosafe e membro da Organização para Diálogo Internacional e Gerenciamento de Conflito, da União Européia.

Referências

Garfinkel MS, Endy D, Epstein GL, Friedmann RM (2007) Synthetic genomics: options for governance. Disponível em: http://www.jcvi.org/
Klotz L (2007) Casting a wider net for countermeasure R&D funding decisions. Biosecurity and bioterrorism. Biodefense Strategy Pract Sci 5(4):313–318. doi: 10.1089/bsp. 2007.0026