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Sobre criadores e criaturas, e os medos e perigos das tecnociências
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Artigo
Sobre criadores e criaturas, e os medos e perigos das tecnociências
Por Daniela Manica
10/10/2008

Nas primeiras décadas do século XIX, um romance de terror escrito por Mary W. Shelley introduziu o que viria a ser uma das figuras mais emblemáticas do temor perante os potenciais da ciência e dos cientistas. Ao estudar exaustivamente os processos de vida e morte, o jovem cientista Victor Frankenstein, conseguira transpor a descoberta do “segredo da vida” para a criação efetiva de um ser inspirado no humano, em laboratório. O êxtase pela eficiente experiência logo se transmutaria, no entanto, em um decisivo arrependimento por parte do cientista, e no horror, terror e culpa pelos resultados dessa inconseqüente empreitada.

Embora Frankenstein, o “Prometeu moderno”, houvesse lhe concedido a vida, à monstruosa criatura seriam recusadas a humanidade e a convivência social. O enredo se constitui a partir das conseqüências terríveis dessa ausência de um lugar, dos embates entre criador e criatura, e dos dilemas enfrentados pelo primeiro. Um deles, o de concluir o script do mito fundador que a estória invoca: criar, para o monstruoso “Adão”, a sua “Eva”, o que o levaria, finalmente, a deixar em paz o criador e sua comunidade. Mas isso significaria, também, conceder à criatura uma existência plena: permitir que, tendo nascido, se reproduzisse, como os outros seres vivos. Mais do que isso, constituísse um par heterossexual monogâmico, como nos modelos sociais hegemônicos do parentesco “ocidental”.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vida_sintetica/ar_daniela/AR-Daniela-Frankenstein.jpg
O monstro de Frankenstein, da adaptação feita para
o cinema em 1931.
Imagem extraída de www.frankenstein1931.com

A criatura de Frankenstein, imortalizada no imaginário sobre os excessos e horrores das ciências, convive com várias outras figuras assustadoras. Monstros, quimeras, extraterrestres. Os seres e objetos que concentram medos e temores, e aos quais são prescritas interdições, não são, evidentemente, exclusividade das sociedades que têm respondido aos efeitos das suas ciências e às criações de seus cientistas. O repertório de figuras é vasto e variável, sempre dependente de um contexto histórico específico: uma comunidade humana, os valores e simbologias que cria e compartilha, as diversas instituições sociais que a compõem.

Algumas religiões cristãs, por exemplo, se apropriaram de figuras como Deus e o Demônio. Seja a partir da lógica do castigo divino, seja através do perigo da influência do Diabo sobre algumas ações e decisões humanas, os infortúnios e desgraças ancoravam-se nessas figuras temíveis e na sua capacidade de agência. Assim, fenômenos trágicos como as epidemias e as guerras poderiam ser explicados como resultado da ira divina, ou da culpa individual resultante de um pecado cometido, ou, ainda, da influência demoníaca. Perigo, medo, culpa e julgamento articulavam, com o auxílio dessas figuras e seres, as formas como as ações e os fenômenos eram compreendidos e explicados. Essas figurações forneceram, portanto, não somente um repertório simbólico, religioso, mas algumas respostas para a questão da constituição de uma determinada ordem e dinâmica social.

Para algumas sociedades africanas, como os Azande, o grande mistério estava em compreender o que leva um infortúnio a acontecer em um determinado momento e não em outro. Os sistemas divinatórios eram utilizados para encontrar respostas e as acusações de bruxaria e feitiçaria ocupavam parte importante do repertório de causas possíveis. Assim como para as sociedades que herdaram as tradições judaico-cristãs, as preocupações dos Azande têm a ver não apenas com explicações sobre o mundo, mas também com moralidades e a manutenção da ordem social.

Perigo, tecnociência e riscos

Em Pureza e perigo (1976), a antropóloga Mary Douglas explora a importância das definições do que é “perigoso” e “impuro”, cujas atribuições seriam variáveis nos diferentes contextos sociais possíveis, mas, de certa forma, sempre presentes nas diferentes sociedades humanas. Segundo ela, atribuir às religiões consideradas primitivas a característica de congregar fiéis a partir do medo seria uma interpretação inadequada. Não é exatamente o “medo” que está em questão, mas o perigo. O perigo da desordem, das impurezas e poluições, das ambigüidades. Da instabilidade classificatória, das coisas “fora de lugar”. E objetos impuros e perigosos estão presentes em todas as sociedades, que à sua maneira buscam a “purificação”, ou, a delimitação de fronteiras que ajudem a “localizar” corretamente as coisas, substâncias, objetos e seres. Mary Douglas argumenta que a linguagem do “perigo” configura um recurso importante para a política e a moral.

Ao procurar rediscutir, anos depois desse primeiro ensaio, a questão do perigo e da poluição nas sociedades industriais, Mary Douglas percebe um deslocamento para a questão do risco – quantificado, probabilístico –, resultado de cálculos e pesquisas científicas. As sociedades industriais desenvolveram, segundo ela, mecanismos crescentes de determinação dos riscos. O perigo, que já se configurava num recurso político e moral, ganha com a agregação das probabilidades e causalidades determinadas cientificamente uma capacidade forense cuja importância é crescente. A alocação dos riscos e as atribuições de culpa dependem dos pareceres especializados das ciências contemporâneas.

Há, no entanto, um paradoxo. Ao mesmo tempo em que são chamadas a explicar alguns fenômenos e determinar as taxas de riscos, as ciências são muitas vezes a própria fonte criadora de novas criaturas – muitas das quais passíveis de serem compreendidas como “perigosas”.

Para pensar como isso tem acontecido nas ciências, é preciso deixar de lado os pressupostos de “verdade, objetividade e neutralidade”, que as colocariam em um patamar diferente da magia e da religião. Por outro lado, não se deve ignorar a proliferação de objetos técnicos e de conhecimentos produzidos pelas ciências. Refletir, portanto, sobre os “lugares” das criaturas das tecnociências no mundo contemporâneo, e sobre a linguagem do medo e do perigo – transmutada ou não para o cálculo dos riscos – deve ajudar a pensar de forma conjunta as ciências, os cientistas e os objetos e sujeitos por eles produzidos.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vida_sintetica/ar_daniela/AR-Daniela-Nagasaki.jpg
Fotografia tirada da bomba atômica lançada em Nagasaki,
em 9 de agosto de 1945.
Foto extraída de www.archives.gov

Criaturas assustadoras das tecnociências

Contribuindo crescentemente para as inúmeras demandas de desenvolvimento tecnológico, as tecnociências contemporâneas são agentes potentes na geração de inúmeras novas criaturas, muitas das quais podem compartilhar, com os exemplos anteriores, o adjetivo de assustadoras. A bomba atômica. Os “bebês da talidomida”, deformados por causa do uso do medicamento pelas gestantes. As vacinas, em um determinado momento da história. Implantes contraceptivos, órgãos para transplante provenientes de outras espécies. A ovelha Dolly (que bem poderia representar, literalmente, o lobo em pele de cordeiro). Peixes e coelhos fosforescentes, o rato com uma orelha humana nas costas, organismos geneticamente modificados em geral. Clones, robôs, máquinas inteligentes.

A ousadia de Frankenstein em criar um ser quase-humano em laboratório é fatal – o grande perigo, a fonte dos temores e assombros, se concretiza: a criatura revela-se maligna, e controlá-la torna-se um desafio. O enredo e a figura do monstro são emblemáticos justamente porque concentram esses ingredientes perigosos dos quais as ciências são feitas: o estudo dos mecanismos da vida e da natureza, que implica a manipulação empírica de seres, objetos e fenômenos por cientistas, a imprevisibilidade dos efeitos e resultados.

Não se trata simplesmente de um temor “primitivo” em relação ao desconhecido. Mas da proliferação, problemática, de experimentos e de criaturas. Em questão estão os julgamentos sobre a validade da sua criação, os perigos e conseqüências da sua presença, e as decisões sobre que lugares essas criaturas ocuparão no mundo. Esses lugares têm a ver, como defende Mary Douglas, com o modelo de sociedade que as cria. Seu argumento é o de que tanto a atribuição de culpa por feitiçaria como os processos cognitivos que fundamentam o conhecimento científico estão imersos em relações e contextos politizados e, portanto, fundamentados também por preocupações morais. A diferença não estaria, assim, na qualidade do conhecimento (na sua objetividade), mas sim no tipo de comunidade que ele torna possível. Para que, ou, para quem, são criadas essas criaturas? Quais expectativas financiam as tecnociências? Quais alianças são feitas para a constituição conjugada de conhecimento e artefatos tecnológicos?

É possível defender a neutralidade das ciências depois dos experimentos sobre a energia atômica, desenvolvidos no contexto da Segunda Guerra, terem resultado em armas de destruição tão potentes? A bomba atômica é a prova de que os temores sobre os perigos das ciências não são, necessariamente, infundados. Nem resultam de uma ignorância leiga, que desconhece os interstícios e peculiaridades das ciências e as verdades de suas teorias. É um exemplo também emblemático porque a imagem da explosão da bomba, o cogumelo de fumaça, funciona como uma espécie de ícone da tragédia que se concretizou naquele momento: o desvio de função de um conhecimento “científico” para a montagem e utilização de uma arma de guerra. Assim como seriam, anos depois, os aviões que atingiram as torres gêmeas no centro financeiro de Nova Iorque. São essas imagens e o que representam sobre o perigo de desastres, tragédias ou eventos apocalípticos que fundamentam, por exemplo, as reações recentes de desconfiança e temeridade em relação às pesquisas com o acelerador de partícula LHC (Grande Colizor de Hádrons), cujos resultados esperados envolveriam a produção de “mini” buracos negros.

A artificialidade da vida e da morte e o “anti-renascimento” ciborgue

Vida e morte são concepções, valores e fronteiras fundamentais. Especulações sobre ambos caracterizam as preocupações filosóficas humanas mais comuns. São, justamente, as ações e potencialidades criativas e destrutivas que motivam os debates e embates mais inflamados. Não é à toa, portanto, que as ciências relacionadas à reprodução sejam um foco de tensão privilegiado no que diz respeito aos receios e perigos. A reprodução remete diretamente ao fantasma da manipulação da vida, da criação de seres por vias que não as da natureza. Quanto mais próximos esses seres dos humanos, ou quanto mais híbridos, maior o assombro, mais assustadoras as criaturas. Seja por meio das técnicas recentemente desenvolvidas de engenharia genética, que possibilitam combinações moleculares previamente inexistentes, seja pela clonagem, que coloca questões como a da individualidade e da reprodutibilidade, a possibilidade de criar novos seres em laboratório ressoa, inevitavelmente, as concepções sobre a criação do mundo e da vida.

É recorrente o estabelecimento de uma analogia entre cientistas e a figura a quem se costumava atribuir o poder de criação, Deus. A história de Frankenstein é um exemplo dessa analogia, e da sacralização da figura divina. Cientistas, no entanto, não podem ser deuses, e parte dos esforços das sociedades contemporâneas está em criar mecanismos de controle social que impossibilitem que eles ajam como se fossem. O Código de Nuremberg, constituído como resposta aos horrores das experimentações científicas nos campos de concentração nazistas, as diversas Declarações Universais (como, por exemplo, a de Helsinki) e as comissões e comitês de ética são alguns desses instrumentos. Apesar do rendimento simbólico e metafórico dessas analogias, e da indiscutível relevância da instituição desses mecanismos, é ilusório pensar que o problema da tecnociência está somente na agência individual de cientistas descontrolados brincando de Deus. Sabemos que há forças e alianças bem mais potentes, pesadas e descentralizadas em jogo.

Assim, como é preciso renunciar à figura divina nas ações e explicações científicas, talvez também não caiba considerar o conhecimento e a produção tecnocientífica como interpretações fidedignas, neutras e objetivas, da “natureza”. Ou mesmo o oposto, como instituições “sociais” que não têm leituras ou efeitos concretos sobre as coisas e seres. Pensar as tecnociências implica levar a sério suas criaturas, assim como a multiplicidade de agentes, redes e instituições envolvidas na sua construção.

Ainda que com as ressalvas iluministas, por vezes a natureza parece ocupar um lugar correspondente ao de Deus. As oposições entre natureza e sociedade e os adjetivos natural e artificial ainda fundamentam muitas das concepções correntes sobre o mundo contemporâneo e, sobretudo, sobre a ação tecnocientífica. O que significa dizer que os artefatos técnicos são artificiais? Será o suficiente caracterizar desta forma os monstros e criaturas tecnocientíficas em proliferação?

A “explosão demográfica” de novas criaturas, que nublam as fronteiras entre natureza e artificialidade, maquinaria e animalidade, humanidade e não-humanidade, indica mais do que uma crise dessas fronteiras e o perigo a que essa “impureza” remete. Evidencia, como sugere Donna Haraway, ainda que à revelia, somos todos ciborgues, híbridos de máquina e organismo. Enfrentado o assombro inicial que essa ausência de parentesco nos traz, é possível então desfrutar do seu rendimento simbólico, mítico, metafórico. E começar a transformar estas assustadoras figuras em aliadas políticas.

Mestre e doutoranda em antropologia social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Membro do grupo de pesquisa CTeMe (Conhecimento, Tecnologia e Mercado). Estuda as relações entre tecnociência, gênero e contracepção.

Para saber mais:

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. São Paulo: Perspectiva, 1976.
DOUGLAS, Mary. Risk and blame: essays in cultural theory. London; New York: Routledge, 1992.
HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
SHELLEY, Mary Wollstonecraft. Frankenstein: or the modern Prometheus. Oxford, New York: Oxford University Press, 1980 <1831>.