REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Vida sintética e linguagem da vida - Carlos Vogt
Reportagens
À espera do ser sintético
Hércules Menezes
Bio-legos e biofábricas
Luciano Valente
A ciência se auto-regula ou deve haver controle do Estado?
Rodrigo Cunha
Vende-se: vida sintética
Flavia Natércia
Vida artificial e sintética: aposta na substância
Susana Dias
Artigos
Vida sintética: uma nova revolução?
Charbel Niño El-Hani
Vitor Passos Rios
Difusão da biologia sintética: um desafio para a biossegurança
Markus Schmidt
Tradução: Rodrigo Cunha
Biotecnologia e inteligência sintética
Luís Junqueira
A biofabricação de tecidos e órgãos
Jorge Vicente Lopes da Silva
Silvio Eduardo Duailibi
Sobre criadores e criaturas, e os medos e perigos das tecnociências
Daniela Manica
Resenha
O que é vida?
Por Cristina Caldas
Entrevista
Richard Jefferson
Entrevistado por Marta Kanashiro e Rafael Evangelista
Poema
Cantiga de acordar
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Vende-se: vida sintética
Por Flavia Natércia
10/10/2008

Estamos diante de um desvio na história das biotecnologias, engenharia genética extrema, biologia construtiva ou intencional? Uma zona de confluência das tecnologias da informação e da engenharia com as ciências da vida? “Suspeito que a biologia sintética será uma das tecnologias-chave do século XXI, fornecendo a maioria dos compostos sintéticos (incluindo novas fontes de combustível), e vai dominar as indústrias terapêuticas”, diz Brian Johnson, do grupo Biociência para a Sociedade, do Conselho de Pesquisa em Biotecnologia e Ciências Biológicas do Reino Unido. Mais que a bricolagem de algumas receitas genéticas (genes) entre organismos não-aparentados, como plantas e bactérias, a aposta agora está em ir além da tecnologia do DNA recombinante e redesenhar a vida.

Isso significa fabricar moléculas similares às naturais em sistemas vivos desenhados; criar organismos totalmente novos, como “bactérias” produtoras de etanol ou hidrogênio; incorporar novas letras ao código genético, “aminoácidos” (ou coisa parecida) às proteínas. Conjugando “partes” biológicas padronizadas (seqüências de DNA ou RNA, enzimas, vírus), barateando o sequenciamento e a síntese de biomoléculas, simplificando sistemas operacionais e de modelagem e a simulação e o desenho de vias metabólicas, a biologia sintética é um campo emergente de pesquisa. E, ao mesmo tempo, uma florescente indústria.

O relatório “ Engenharia genética extrema: uma introdução à biologia sintética ”, divulgado pelo Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC Group), do Canadá, em janeiro de 2007, enumera 66 empresas criadas para explorar seu potencial comercial. Dentre elas estão a Blue Heron Biotechnology, fundada pelo geneticista John Mulligan em 1999, que detém a patente da tecnologia e a marca GeneMaker; e a Codon Devices, que registrou a marca Biologia Construtiva e é proprietária da tecnologia BioFAB. Fundada em 2004 por Drew Endy (à época no MIT), George Church, da Universidade Harvard, e Jay Keasling, da Universidade da Califórnia, em junho de 2006 a Codon já apresentava em seu portfolio dez patentes concedidas e 35 pedidos nos Estados Unidos, mais 28 pedidos e 12 patentes concedidas em outros países. Além das tecnologias proprietárias, a empresa também desfruta de licenças exclusivas para usar patentes e tecnologias desenvolvidas por instituições como a Universidade Harvard, a Universidade Duke, a Universidade de Wisconsin e o MIT, dentre outras.

Como a Codon Devices e a Blue Heron, a maioria das novas companhias fica nos Estados Unidos, onde se estima que tenha sido feita até agora 74% da pesquisa relevante na área. A União Européia é responsável por apenas 10% do total dos artigos de peso; e entre os países europeus, merecem destaque a Alemanha (30%), o Reino Unido (15%), a Dinamarca (13%) e a França (12%), onde também se encontram companhias do novo segmento. E, além das empresas criadas para isso, as pesquisas também são financiadas por capital de risco e empresas tradicionais do ramo, como as transnacionais Merck, GlaxoSmithKline, Eli Lilly, Bayer, Basf, Pfizer, DuPont, Sanofi-Aventis, entre outras.

O mercado para a biologia sintética é um dos segmentos das chamadas “ciências da vida” que mais crescem. Segundo estimativa do Departamento de Energia dos Estados Unidos, o mercado global de tecnologias e serviços ligados à molécula de DNA atingiu US$ 7 bilhões em 2006. E deve seguir crescendo entre 10 e 20% ao ano nos próximos anos, de acordo com a Bio Economic Research Associates, empresa de pesquisa e consultoria. No setor químico, as novas técnicas podem elevar a penetração da produção biológica a 15 ou 20% em 2015. No setor de vacinas, as sintéticas podem chegar a representar 30% da produção dentro de alguns anos.

No segmento de “engenharia genômica” ou “genômica sintética”, que tem entre suas promessas as biofábricas de combustíveis, Craig Venter, fundador da Synthetic Genomics, anunciou “uma bactéria de US$ 3 bilhões”. Se a promessa se cumprir, deve contribuir para fazer os lucros globais desse setor subirem de US$ 22 bilhões, em 2006, para US$ 150 bilhões em 2020. Numa estimativa feita por Mulligan, da Blue Heron, em 2006, o mercado somente para a síntese de genes era de US$ 30 a 40 milhões e, US$ 1 a 2 bilhões eram gastos na aquisição e na modificação de moléculas de DNA. No documento “ Genômica sintética: opções de governança ”, publicado em 2007 pelo Instituto J. Craig Venter, em parceria com o MIT e o Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, experts estimaram haver 45 empresas somente nesse segmento: 24 nos Estados Unidos, 5 na Alemanha, 4 no Canadá e outras 12 espalhadas pelo mundo.

Outra medida da aposta na biologia sintética vem dos investimentos realizados. A empresa EraGen Biosciences foi criada em 2002 para desenvolver testes moleculares para detecção e monitoramento de doenças. É proprietária da plataforma MultiCode chemistry, que usa um alfabeto genético expandido. Em 2006, conseguiu US$ 12 milhões numa única rodada de arrecadação de fundos. Outra empresa, fundada por Jay Keasling e três de seus alunos de pós-doutorado em Berkeley, a Amyris Biotechnologies, angariou nada menos que US$ 70 milhões de um consórcio de capitalistas de risco para adaptar sua plataforma à fabricação de combustíveis. Para desenvolver bactérias bilionárias – outro alvo é a biorremediação –, Craig Venter recebeu ao menos US$ 30 milhões de empresas de capital de risco. A Fundação Bill e Melinda Gates doou US$ 42,6 milhões ao longo de cinco anos, contados a partir de 2004, para a produção de um precursor sintético da artemisinina, remédio contra a malária, pela Amyris em parceria com o Instituto para OneWorld Health, a Sanofi-Aventis e a Universidade da Califórnia.

Além da importância tecnocientífica, a biologia sintética também tem caráter estratégico, o que se depreende da quantidade de projetos e do tipo de agências governamentais que os financia. A União Européia apóia 18 projetos de pesquisa e diretrizes sobre biologia sintética pelo programa Novas e Emergentes Ciências e Tecnologias ( Nest, na sigla em inglês), dentre eles: “ Emergence ”, “ Synbiology ”, “ Synthcells ” e “ Tessy ”. Nos Estados Unidos, nada menos que 8 agências financiam pesquisas, dentre as quais a Nasa, o Departamento de Defesa e o Escritório de Pesquisa Naval. Num esforço multi-institucional para consolidar a posição do país como líder no novo campo, foi criado o SynBERC, com verba de US$ 17 milhões da National Science Foundation, mais US$ 3 milhões de universidades e da indústria, para durar cinco anos. Trata-se de um programa do Instituto da Califórnia para Biociências Quantitativas, resultante de uma parceria entre a Universidade da Califórnia, o estado da Califórnia e a indústria privada, para desenvolver novas soluções para problemas biomédicos.

Também chama atenção o fato de todas as iniciativas reservarem altas somas para a exploração dos aspectos sociais e morais das pesquisas. A Fundação Alfred P. Sloan deu ao MIT US$ 570 mil para explorar as questões éticas ligadas à pesquisa. No Programa Nest, um dos projetos é o Synbiosafe, com verba de 236 mil euros por dois anos (2007-2008) para analisar as questões éticas que as novas tecnologias suscitam ou suscitarão. Mas, como disse Joachim Henckel, professor de gestão da tecnologia e da inovação da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, “com tanto dinheiro em jogo, certamente o futuro reserva muitos problemas e também muitas disputas de patentes”. Entretanto, diferentemente da patente pedida por Craig Venter e seus colegas para o “genoma bacteriano mínimo”, a maioria deverá ter pouco a ver com questões éticas. “Por isso, não acredito que o dinheiro gasto com questões sociais e éticas vá impedir os problemas de surgir”, diz Henckel. A Codon Devices e a Blue Heron Biotechnology, por exemplo, se enfrentaram pelo uso de 5 patentes norte-americanas – quatro da Universidade Duke e uma do MIT. A disputa foi resolvida em março deste ano: a Blue Heron aceitou tirar uma sub-licença e reconheceu a importância do portfolio de patentes da rival.

Patente polêmica e improvável

Depois de correr para sequenciar o genoma humano e patenteá-lo antes do consórcio público, o pesquisador norte-americano Craig Venter voltou a causar polêmica com dois pedidos de patente: um relativo a genomas sintéticos, divulgado pelo Escritório Norte-Americano de Patentes em 15 de novembro de 2007 – e pelo Escritório Europeu em fevereiro de 2008 –; e outro relativo à “ instalação de genomas ou genomas parciais em células ou sistemas semelhantes a células ”, divulgado uma semana depois.

No primeiro caso, a equipe do Instituto J. Craig Venter pediu patente para a versão sintética do genoma do Mycoplasma genitalium, que tem 482 genes que codificam proteínas e 43 genes de RNA, compreendendo um cromossomo circular de 580 mil bases. No entanto, o pedido descreve a principal invenção como “um método para construção de um genoma sintético, compreendendo a montagem de ‘chassis' de ácido nucléico”, e ainda afirma que “o método” será usado para construir genomas de todo tipo, bacterianos, mínimos ou sintéticos. Entre os produtos a serem obtidos os pesquisadores incluíram hidrogênio ou etanol.

Um artigo sobre esse trabalho foi publicado na revista Science em janeiro de 2008. Dan Gibson, o primeiro autor do estudo, disse que a pesquisa é “a segunda das três etapas para a criação de um organismo vivo inteiramente artificial”. A primeira etapa teria sido cumprida em 2007, quando o genoma de uma bactéria foi transferido para outra, que mudou de espécie. Mesmo sem completar a promessa – produzir uma célula viva a partir de genomas sintéticos –, o pedido de patente foi considerado amplo e levou o grupo ETC a reivindicar de Venter sua retirada. Mas é pouco provável que ela seja concedida nos termos em que foi requerida.

Especialistas como Luigi Palombi, da Rede de Instituições Reguladoras, fizeram duras críticas ao pedido. Suas reivindicações não se prendem a um método específico: procuram cobrir simplesmente todo o setor de fabricação de genomas em laboratório pela montagem de “chassis”. E, mesmo um genoma sintético fabricado inteiro de uma vez, não deixa de ser um “chassi de ácidos nucléicos”, o que coloca qualquer método de fabricação de genomas sintéticos sob seu escopo e, de quebra, a produção de duas possíveis fontes de energia. Outro problema é que não basta ser artificial para ser original. Se o genoma artificial é substancialmente idêntico ao natural – exceto por algumas modificações, como a desativação de genes patogênicos –, o caráter inventivo do trabalho se enfraquece. Da mesma forma, o etanol e o hidrogênio anunciados como produtos da técnica seriam iguais aos produzidos naturalmente ou por outros métodos, o que também atenta contra a inventividade, um dos três requerimentos básicos na concessão de patentes.

Segundo Berthold Rutz, examinador de patentes em biotecnologia do Escritório Europeu de Patentes, dificilmente uma patente ampla resiste ao processo de tramitação. “A questão da amplitude do escopo dos pedidos de patente é decidida na fase de exame com base numa comparação entre o estado da arte anterior e pela aplicação dos critérios gerais de patenteabilidade. A maioria dos pedidos em biotecnologia tem seu escopo reduzido nesse procedimento”, afirma.

No segundo pedido de patente publicado por Venter, a invenção reivindicada é um método para obter um genoma sintético e introduzi-lo numa célula ou num “sistema semelhante à célula”. O texto afirma que peptídeos da insulina poderiam ser coletados de células sintéticas, deixando implícito que a fabricação de insulina está entre os usos potenciais da técnica, o que poderia suscitar uma onda de pedidos patentes relacionadas com substâncias terapêuticas “naturais” como a insulina, o hormônio de crescimento e a eritropoietina humana.

Regras para o patenteamento da vida

Em 1971, o pesquisador indo-americano Ananda Mohan Chakrabarty, trabalhando no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da General Electric, construiu em laboratório uma bactéria capaz de “comer petróleo”. Chakrabarty juntou na nova espécie de bactéria os plasmídios de quatro espécies de bactéria naturalmente equipadas para a tarefa de quebrar diferentes componentes do petróleo. No ano seguinte, entrou com pedido de patente contendo 36 reivindicações de três tipos: o método para produzir a nova bactéria; o inóculo contendo um material carreador flutuante em água e a nova bactéria; a própria bactéria.

O examinador do pedido aceitou as duas primeiras reivindicações, mas, entendendo que bactérias são produtos da natureza, e não do homem, e portanto não são patenteáveis, negou a última. Chakrabarty apelou ao Conselho de Apelações e Interferências do Escritório de Patentes, que sustentou a decisão do examinador. Então, o pesquisador recorreu à Corte de Costumes e Apelações de Patentes, que reverteu a decisão, considerando que o fato de os microorganismos estarem vivos é irrelevante para as finalidades da lei de patentes. Em 1974, a patente foi concedida, mas a decisão desagradou ao comissário de Patentes e Marcas, Sidney Diamond, que apelou à Suprema Corte.

Foi somente em março de 1980 que se deu a argüição do caso na Suprema Corte, que divulgou em junho do mesmo ano sua decisão: a bactéria em questão, no lugar de produto do trabalho da natureza, é produto do engenho humano. Estava aberto o caminho para a proteção intelectual dos frutos da pesquisa em biologia molecular – ou, como pretendem os críticos, estava aberto o caminho para o patenteamento da vida. Ao longo da década, multiplicaram-se empresas criadas para produzir proteínas terapêuticas (insulina, eritropoietina, hormônio do crescimento). Genes foram patenteados como “remédios”. Muitas das patentes pedidas foram contestadas – afinal, as proteínas eram idênticas às produzidas naturalmente –, mas foram mantidas porque o processo de fabricação em microorganismos transgênicos era inovador.

Em 1991, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) pediram patentes para seqüências genéticas expressas (ESTs, no jargão genômico), inclusive fragmentos de genes sem descrição do gene completo e fragmentos sem função conhecida, reacendendo o debate em torno do patenteamento da vida. Os NIH foram obrigados a rever sua política de patentes – e os pedidos para ESTs acabaram negados e retirados–, mas outras instituições e empresas continuaram pedindo proteção abrangente para suas descobertas. E a ambição logo se estendeu aos resultados do Projeto Genoma Humano.

Muita controvérsia e uma sucessão de casos nos Estados Unidos e no mundo levaram à consolidação da tendência a não conceder patente a seqüências genéticas parciais ou a seqüências cuja função não tenha sido determinada. A partir de 1999, as diretrizes para a biotecnologia do Escritório Norte-Americano de Patentes sofreram diversas revisões. Em 2001, foi divulgada a versão produzida após a consulta a 35 indivíduos e 17 organizações, vigente até hoje, que deixa claro que seqüências de DNA para as quais nenhuma utilidade fosse atribuída não eram patenteáveis. Além disso, a patente só é dada para a forma purificada e isolada do gene, e não para a forma “encontrada na natureza”. Patentes do tipo podem cobrir tanto um gene removido de um cromossomo natural quanto uma molécula sintética de DNA. As ESTs ainda são passíveis de patenteamento, desde que os três critérios norteadores sejam respeitados.

Para saber mais

Sintetizado genoma completo de bactéria (Ciência Hoje)
http://cienciahoje.uol.com.br

No ramo da vida sintética (Scientific American Brasil)
http://www2.uol.com.br