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Reportagem
Bio-legos e biofábricas
Por Luciano Valente
10/10/2008
O termo “biologia sintética” apareceu pela primeira vez em 1974, em um artigo do geneticista polaco Waclaw Szybalski. Esse texto descrevia os trabalhos da época como “a fase descritiva da biologia molecular”, mas previa que o verdadeiro desafio seria o início da biologia sintética, em que “novos elementos de controle fossem sintetizados em módulos e que esses módulos fossem inseridos em genomas existentes para constituir novos genomas.” Pois o que parecia, à primeira vista, ficção científica se concretizou. Em 2003, foi fundada a BioBricks Foundation (BBF), uma organização sem fins lucrativos, comandada por cientistas do MIT, da Universidade de Harvard e da Universidade da Califórnia, e que promove o uso da tecnologia BioBricks, partes padronizadas de DNA que codificam certas funções biológicas. Essa “área com potencial ilimitado de expansão”, como definiu o próprio Szybalski, promete trazer grandes inovações num futuro próximo.

A expressão BioBricks é traduzida em português por bio-legos, remetendo ao famoso brinquedo, cujas pequenas peças podem ser agrupadas para montar diversas estruturas. E este é, de fato, o propósito da fundação: usar partes biológicas padronizadas para programar organismos vivos, da mesma maneira que um analista de sistemas pode programar um computador. A pesquisadora Paula Tamagnini, do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) da Universidade do Porto, em Portugal, define os bio-legos como “ unidades funcionais da biologia sintética, ou seja, blocos moleculares que são concebidos obedecendo a determinadas ‘regras', que fazem deles peças padronizadas e permitem a sua fácil integração em módulos e circuitos, capazes de interagir de uma forma controlada, e que serão posteriormente incluídos num “chassi” ”.

O número de pesquisadores envolvidos em projetos desse tipo é bastante expressivo. Desde 2006, a BBF organiza uma competição anual de fragmentos biológicos, da qual participam em 2008 mais de 1000 estudantes de 84 times de universidades de todo o mundo. Drew Endy, pesquisador do MIT e um dos fundadores da BBF, acredita que “as novas gerações de estudantes de biotecnologia querem saber como conceber e construir organismos que se comportem como eles projetaram”, por isto a iniciativa da competição e de uma biblioteca de bio-legos de acesso livre. No último mês de setembro, em Vancouver, no Canadá, ocorreu um evento sobre a indústria de biotecnologia e bioenergia, organizado pela Organização das Indústrias de Biotecnologia, que tem mais de 1200 empresas associadas, espalhadas pelos Estados Unidos e outros 30 países.

Dentre essas corporações, uma de grande destaque é o J. Craig Venter Institute, que reúne cerca de 400 pesquisadores e é comandado por J. Craig Venter, geneticista americano que ganhou fama ao conduzir, em paralelo ao Projeto Genoma, o sequenciamento do genoma humano. Venter viajou pelo mundo coletando águas e sequenciando o DNA de algas. Seu objetivo era conseguir um genoma básico, que contivesse apenas o mínimo necessário para a sobrevivência da criatura. Ele chegou à bactéria Mycoplasma genitalium, que continha um DNA já bastante simples. Seu grupo de pesquisa foi desligando cada um dos genes dela para testar quais eram absolutamente necessários à sua sobrevivência. Chegaram a um DNA mínimo de 400 genes. O J. Craig Venter Institute quis patentear esse chassi de vida básico e criou polêmica na comunidade científica. A plataforma encontrada por Venter pode ser usada, por exemplo, para produzir hidrogênio ou medicamentos. No ano passado, o instituto deu mais uma mostra de seu poder, ao transformar uma espécie de bactéria, a Micoplasma capricolum, em outra, a Microplama nycoides.

Os Estados Unidos concentram os principais centros de pesquisa em biologia sintética e o maior número de corporações que exploram comercialmente a síntese de DNA. Mas as pesquisas também avançam na Europa. A portuguesa Paula Tamagnini e sua equipe de pesquisa estão envolvidos num projeto europeu que visa desenvolver uma nova forma de produzir hidrogênio utilizando as cianobactérias, também conhecidas como algas azuis. Nomeado BioModularH2 e conduzido em parceria com diversos centros de pesquisa europeus, o projeto visa conceber blocos moleculares padronizados e reutilizáveis (bio-legos), que irão construir uma bactéria fotossintética contendo módulos de engenharia química para uma produção limpa, competitiva e sustentável de hidrogênio, considerado por muitos como o combustível do futuro.

Dentre os organismos estudados para a produção de hidrogênio, as cianobactérias são os que possuem requisitos nutricionais mais simples. Elas podem crescer num ambiente constituído basicamente por água e alguns sais minerais, utilizando a luz solar, o dióxido de carbono e o nitrogênio atmosférico. “ A simplicidade das cianobactérias, faz com que estes sejam organismos atraentes para a modelação”, explica Tamagnini. “Neste momento, parte da nossa pesquisa centra-se na construção de um ‘chassi' cianobacteriano, capaz de integrar circuitos sintéticos destinados à produção sustentável de hidrogênio, assim como a outras aplicações fotobiológicas. Esses circuitos compreendem módulos biológicos desenhados para, por exemplo, funcionarem como interruptores, ligando e desligando a expressão de genes, ou mesmo para criar um ambiente sem oxigênio dentro da célula, de forma a garantir o funcionamento adequado de uma hidrogenase altamente eficiente”, continua. A presença de oxigênio no interior da cianobactéria é um dos fatores que determinam a eficiência das hidrogenases – as enzimas que produzem o hidrogênio.

“Estes módulos são desenhados de forma a interagirem entre si de uma forma totalmente controlada e previsível”, diz a pesquisadora. O projeto pretende, então, retirar os genes e partes biológicas que não interessam e susbtituir por outras, conferindo ao organismo novas funcionalidades. Cada um desses componentes biológicos modificados são padronizados, ou seja, podem ser chamados de bio-legos. No IBMC, a equipe de Paula Tamagnini tem a intenção de criar um módulo que retire o oxigênio do interior das células.

A pesquisadora portuguesa concorda com o pai do termo “biologia sintética”, Waclaw Szybalski, e acredita que os horizontes desta área são infindáveis e “apenas limitados pela consciência ética da comunidade científica”. Segundo ela, a capacidade da biologia sintética para desenhar circuitos biológicos que irão se comportar de forma perfeitamente previsível e regulável, torna possível atingir-se qualquer objetivo. Essa abordagem pode ser utilizada em aplicações biotecnológicas que visem a produção otimizada de compostos de interesse farmacêutico, combustíveis, ou biorremediação, entre outras. A contribuição da biologia sintética para o melhoramento desses processos, de modo a torná-los competitivos e sustentáveis, poderá a médio prazo, ter um grande impacto na sociedade.

Imprimindo órgãos: as biofábricas

Se a biologia sintética faz uso de princípios biológicos, mas insere elementos sintéticos em organismos vivos, a bioimpressão, também conhecida por biofabricação, é um processo autólogo, ou seja, utiliza células de um próprio paciente para produzir as estruturas que, mais tarde, serão transplantadas de volta neste mesmo paciente. Gabor Forgacs comanda a empresa Organ Printing, fundada por ele e pesquisadores de diferentes universidades norte-americanas. O objetivo do empreendimento é construir órgãos usando as células dos próprios pacientes.

O pesquisador dá exemplos de como funciona o processo. “Se nós queremos fabricar um vaso sanguíneo, nós fazemos uma estrutura tubular, feita com células que compõem um vaso sanguíneo e, depositando-as de maneira correta, a natureza fará o seu trabalho, as células se reproduzirão e logo teremos a nova estrutura”, ilustra. A Organ Printing já conseguiu fabricar vasos sanguíneos. No momento, a empresa já está submetendo esses vasos a testes mecânicos, para verificar suas propriedades, principalmente testando a sua capacidade para suportar a pressão de uma corrente sanguínea.

Otimista, Gabor Forgacs afirma que os primeiros testes em animais ocorrerão dentro de seis meses. E, se tudo ocorrer bem, possivelmente os primeiros testes clínicos em humanos acontecerão em 2011. Para ele, os vasos sanguíneos são o primeiro passo para se construir um órgão, já que todos eles possuem vascularização. Além disto, a escolha por uma estrutura tubular não é por acaso. “Mais de 70% do nosso corpo é tubular, o sistema digestivo, circulatório e nervoso são quase que inteiramente formados por este tipo de estrutura”, afirma. Quando os primeiros vasos forem implantados com sucesso em humanos, o pesquisador crê que será possível iniciar a empreitada para se produzir o primeiro órgão, que até já foi escolhido: o rim. Mas para esse teste, ele ainda não possui um cronograma. Entretanto, ele preconiza: “Chegará o dia em que poderemos ir a um hospital e pedir um novo rim”.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vida_sintetica/rp_luciano/1.jpg
Imagem que mostra o funcionamento de uma bioimpressora, detalhando o processo de
deposição de células.
Fonte: Organ Printing, esquema de Dr. Vladimir Mironov (University of South Carolina)