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Reportagem
A ciência se auto-regula ou deve haver controle do Estado?
Por Rodrigo Cunha
10/10/2008

Nesse início de século XXI, o mundo assiste a avanços tão rápidos em ciência e tecnologia que tem se tornado cada vez mais tênue a fronteira entre ficção científica e realidade. E tanto filmes quanto livros de ficção anteciparam possíveis riscos que tais avanços poderiam oferecer à humanidade e ao mundo em que vivemos, como se fizessem um alerta para que fosse estabelecido algum controle sobre as novidades científicas. Com o novo campo da biologia sintética prestes a anunciar o êxito da criação de um microorganismo vivo em laboratório, reacendeu-se o debate sobre se esse controle deve ser feito pelos próprios cientistas ou se deve haver algum tipo de regulação do Estado. Embora já exista discussão nos parlamentos, não há previsão de quando as leis internacionais e de cada país acompanharão mais esse avanço da ciência.

A primeira tendência, em casos como esses, é que a própria comunidade científica faça um movimento de auto-regulação para controlar os possíveis riscos ligados à sua atividade. Foi o que aconteceu no segundo encontro da comunidade de biologia sintética sediado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em 2006. Após discussões sobre biossegurança, percepção de riscos e propriedade intelectual, os participantes formularam um documento com recomendações de auto-controle para o campo. Na ocasião, um grupo de trinta e cinco organizações internacionais como GeneEthics Network, da Austrália, GeneWatch, do Reino Unido, e Fondation Sciences Citoyennes, da França, assinou uma carta aberta aos participantes do evento solicitando o abandono da proposta de auto-regulação e a ampliação do debate com a inclusão de organizações da sociedade civil nas discussões. Um dos principais receios do grupo é que a confiança no auto-controle dos cientistas retarde as normatizações por parte dos governos.

“Alguns aspectos da biologia sintética estão cobertos nas regulações de biossegurança (muito parcialmente), mas em parte alguma há a discussão das implicações totais desta tecnologia, que está prestes a criar vida artificial, sem nenhum controle social, com implicações potenciais enormes (a maioria desconhecida) sobre o ambiente, a natureza, as economias, além de cruzar fronteiras éticas inéditas, que nos afetará a todos, mas que se faz em benefício do lucro de poucas empresas”, disse à ComCiência Silvia Ribeiro, do ETC Group, uma das instituições que assina a carta aberta.

O modelo, tanto para os defensores da auto-regulação quanto para os que a condenam, é a 2ª Conferência de Asilomar, nos Estados Unidos, que reuniu, em 1975, cientistas preocupados em discutir os rumos das pesquisas envolvendo DNA recombinante. A recém-descoberta possibilidade de recombinar parte do material genético de um organismo com o de outro havia levado a própria comunidade científica a propor uma moratória, suspendendo as pesquisas com DNA recombinante até que fossem estabelecidas formas adequadas de lidar com os potenciais riscos dessa atividade. Essa foi justamente a motivação do encontro de Asilomar, onde se decidiu pelo fim da moratória e se definiu regras básicas para a continuidade das pesquisas, como, por exemplo, criar mecanismos para que um organismo que tenha recebido parte do material genético de outro não fosse capaz de sobreviver em condições naturais, ou seja, fora do laboratório. O evento é tido como um marco na discussão sobre ética na ciência.

Uma das aplicações da pesquisa com DNA recombinante é a modificação genética de plantas e animais. As primeiras plantas transgênicas surgiram no início da década de 1980 e apenas quinze anos após o encontro de Asilomar surgiu a primeira legislação internacional com regras para produção e comercialização de organismos geneticamente modificados, a Diretiva 90/220 da União Européia. O rigor que essa norma estabelece para a aprovação de cada novo transgênico pelo órgão de segurança alimentar de seus países membros é bem maior que o do ato aprovado em 1992 pela Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos. Para a FDA, se o fragmento de material genético inserido em uma planta pertencer a algum alimento existente na natureza e que já seja considerado seguro, não é preciso um novo processo para aprovação. “Trata-se da mesma visão de mundo segundo a qual os mercados se auto-regulam e que acredita que a ciência também pode se auto-regular”, observa Lavínia Pessanha, co-autora do livro Transgênicos, recursos genéticos e segurança alimentar (Ed. Autores Associados, 2005). “O processo de tomada de decisão, na aprovação de uma lei, é disputado por agentes de interesse político, econômico e de Estado. E não existe ciência sem Estado, já que ele investe maciçamente em pesquisa”, pondera.

Com a biologia sintética, acontecerá o mesmo?

Após o documento aprovado em 2006 pela comunidade científica, na Califórnia, vários trabalhos sobre segurança em biologia sintética foram publicados, na linha da auto-regulação. Um dos destaques é “Synthetic genomics – options for governance”, de 2007, resultado de uma parceria entre o Instituto Craig Venter, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e o Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, todos dos Estados Unidos. Esse estudo foi financiado pela Fundação Alfred Sloan, uma instituição sem fins lucrativos criada em 1936 por um ex-executivo da General Motors para apoio a ciência e tecnologia. Os autores sugerem, nesse trabalho, várias opções de regulação para empresas que exploram comercialmente a síntese de DNA e para seus usuários finais, além de propor a formação de cientistas em questões de biossegurança e um manual de segurança para laboratórios de biologia sintética.

A principal preocupação nos Estados Unidos é a biossegurança: a possibilidade de novos organismos serem usados como arma biológica, o chamado bioterrorismo. Pesquisadores do Centro de Estudos para a Não-Proliferação de Armas, voltado para o combate às armas de destruição em massa, expressam essa preocupação no artigo “The promise and perils of synthetic biology(The New Atlantis, nº 12, 2006). Os autores sugerem que seja adotado, em relação à biologia sintética, o princípio da precaução – o mesmo que tornou a legislação européia sobre alimentos transgênicos mais rigorosa que a norte-americana. Uma das recomendações é que sejam banidos todos os usos de organismos sintéticos em ambiente aberto até que uma avaliação robusta de riscos tenha sido feita para cada aplicação proposta. Os autores de “Options for governance” não concordam com a sugestão: para eles, isso tornaria a pesquisa mais cara e restrita a poucos laboratórios.

Apesar de ter um número bem menor de laboratórios e empresas trabalhando com biologia sintética que os Estados Unidos, avançam na Europa as discussões que podem levar à regulamentação. O Conselho Internacional de Controle de Riscos, uma organização independente sediada em Genebra, na Suíça, publicou este ano um estudo sobre riscos e oportunidades desse campo que pode apoiar os tomadores de decisão. O trabalho propõe algumas questões para reflexão: se diferentes níveis de síntese biológica (como os bio-legos, por um lado, e os organismos sintéticos, por outro) deveriam ter diferentes níveis de regulação; se os organismos sintéticos deveriam ser patenteados; se o debate deveria ser mais inclusivo e quem deveria participar desse debate.

E não são apenas as organizações independentes que se somam à comunidade científica na análise do controle de riscos. A União Européia está patrocinando um projeto para pesquisas sobre aspectos éticos e de segurança da biologia sintética. É o Synbiosafe, que conta com um fundo de 236 mil euros do Programa para Ciências e Tecnologias Novas e Emergentes. “As experiências anteriores, especialmente no campo dos alimentos geneticamente modificados, mostraram a importância de um debate prévio sobre ética e segurança”, dizem os coordenadores. O projeto, que teve início em janeiro de 2007 e está previsto para durar até dezembro deste ano, já tem diversos trabalhos publicados. E no início de 2008, o gabinete de ciência e tecnologia do parlamento britânico também se manifestou sobre o assunto, propondo uma alavancagem da pesquisa em biologia sintética, ainda muito incipiente no Reino Unido, associada a um engajamento público nas discussões sobre riscos ao ambiente e à saúde e a adequação das políticas de controle de risco já existentes aos produtos da biologia sintética.

“Isso não substitui a necessidade de um debate social amplo e transparente, com todos os atores sociais, e onde os que têm conflito de interesses (a indústria) não deveriam participar no mesmo nível”, avalia Silvia Ribeiro, do ETC Group. Ela afirma que a negociação não pode ser independente de governos e que ainda não existe controle ou discussão governamental desse processo. “Certamente, a gritante maioria são representantes de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da indústria, deixando claramente à margem os países do sul e a sociedade civil sem interesse de lucro”, completa.

Embora ainda tímida, a discussão já chegou até mesmo no parlamento brasileiro, mesmo o Brasil não tendo ainda nenhuma empresa que explore comercialmente a síntese de DNA – elas são 45, ao todo, no mundo, e 24 delas estão nos Estados Unidos. Em 2007, o deputado Edson Duarte (PV), da Bahia, solicitou a elaboração de um projeto de lei que proibisse no país organismos e componentes biológicos gerados por técnicas de biologia sintética, e um estudo técnico sobre o assunto para acompanhar o projeto. Na conclusão do estudo, a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados recomenda que o projeto de lei com a proibição não seja protocolado.

“A biologia sintética é um ramo do conhecimento em franca e rápida expansão, com repercussões acadêmicas, econômicas e possivelmente ambientais. Excluir deliberadamente o Brasil de pesquisas com tamanho impacto seria um erro estratégico”, afirma Maurício Schneider, doutor em ecologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e consultor legislativo responsável pelo estudo. “Mesmo que o deputado tenha reservas, ou seja, contrário a esse tipo de tecnologia, os produtos da biologia sintética farão parte da realidade mundial no curto prazo, tendo em vista que a primeira patente já foi requerida. Somente o domínio de tais conhecimentos permitirá a qualquer nação responder com eficácia aos desafios que surgirão pelo bom uso da biologia sintética, como também pelos riscos inerentes”, completa Schneider. A expectativa agora é saber se a regulamentação da biologia sintética também se desenvolverá em curto prazo.