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Reportagem
À espera do ser sintético
Por Hércules Menezes
10/10/2008

Biologia sintética, vida artificial, engenharia metabólica e química biológica são termos que, nos últimos anos, vêm sendo utilizados com mais freqüência nas manchetes da literatura científica e de divulgação científica. O destaque dado a esses temas sugere que, após os transgênicos e a genômica, começa a se formar uma nova onda no agitado mar das ciências neste início de século.

Encabeçando uma legião de químicos, engenheiros, físicos e biólogos, envolvidos nesse movimento, destaca-se o já renomado empresário John Craig Venter. Antigo surfista californiano, que ao retornar da Guerra do Vietnã, tornou-se um apaixonado por bioquímica e um visionário da biologia, Venter reforçou sua posição de destaque com sua presença na lista “Time 100” (revista Time) das pessoas que mais influenciaram o mundo em 2007 e 2008.

Craig Venter é considerado um dos pais do genoma humano. Na presidência da empresa Celera Genomics, apresentou em 2001, com o Projeto Genoma Humano, os resultados do genoma da espécie humana. No caso, o DNA utilizado para o sequenciamento era o dele. Atualmente dirige uma instituição em San Diego, que tenta criar vida em laboratório. No início deste ano, sua equipe conseguiu, a partir pedaços de DNA da bactéria do gênero Mycoplasma, reconstruir seu genoma, através de um “transplante genômico”. Inoculou-se mini-cromossomos (cassetes) no fungo Saccharomyces cerevisiae, contendo de quatro a cinco genes de um outro microorganismo o M. genitallium. Essas peças foram “coladas” e intercaladas com marcadores para diferenciá-las de seqüências naturais similares, uma espécie de “made by man”. No interior do fungo, as enzimas do sistema de reparo foram capazes de unir esses cassetes, formando um cromossomo sintético final.

“O último passo é demonstrar que o quê eles sintetizaram é biologicamente ativo”, relata à revista Scientific American Eckard Wimmer, um biólogo molecular da Stony Brook University (EUA), que possui renomada experiência na construção do vírus sintético da poliomielite, o primeiro vírus sintético construído. Embora o desenvolvimento do vírus sintético, ocorrido em 2002, tenha provocado a paralisia e morte de camundongos quando estes eram inoculados, muitos especialistas não consideram a pesquisa como “criação de uma vida sintética”, já que não vêem os vírus como organismos vivos. De qualquer forma, parece uma questão de tempo o surgimento de resultados semelhantes em outros organismos. No entanto, Wimmer enfatiza: “infelizmente, esse passo, que ainda falta ao grupo , é muito crítico”.

Venter fala em reconstruir o ser vivo, a partir da reordenação de suas peças básicas, uma espécie de “legos biológicos” ou biobricks. Essa reconstrução de sistemas análogos aos sistemas vivos está sendo chamada de “vida sintética” (leia reportagem sobre pesquisas na área).

Para que a biologia chegasse a esse ponto é importante um retorno a 1828, quando houve o primeiro indicativo de que a matéria orgânica poderia ser reconstruída em laboratório. Friedrich Wöhler, químico alemão, conseguiu desmembrar e fragmentar a uréia em elementos inorgânicos (carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio). O feito permitiu que a química experimentasse combinações novas com elementos inorgânicos básicos e que resultaram, no início do século XX, na criação de moléculas novas, revolucionando a indústria farmacêutica, bélica e alimentícia. Nascia a química sintética.

Em 1906, sob o efeito da maré da química sintética, Jacques Loeb publicou The dynamic of live matter (A dinâmica da matéria viva), onde estabeleceu a pedra fundamental para o desenvolvimento da bioquímica que conhecemos atualmente. Esse eminente fisiologista germano-americano, indicado diversas vezes para receber o Prêmio Nobel, formulou a idéia de que: “nos seres vivos, embora os processos fisiológicos estejam concatenados, eles são metabolicamente independentes”. Esta concepção de “vias metabólicas integradas” passou a nortear diversos biofísicos e bioquímicos no início do século XX, quando surgiu, pela primeira vez, o termo biologia sintética. Essa concepção permite vislumbrar o ser vivo como um grande sistema, composto por engrenagens moleculares que, à semelhança de um quebra-cabeças, pode ser decomposto em peças unitárias.

Uma estratégia científica para abordar e estudar o fenômeno da vida foi proposta, em 1912, pelo francês Stèphane Leduc no livro La biologie synthétique. Études de biophysique (A biologia sintética. Estudos de biofísica). “Além de descritiva e analítica, a biologia deve ser sintética: a reprodução dos fenômenos biológicos através de forças físicas (biologia sintética) é um método científico novo e legítimo”. Em seu capítulo inicial, certamente já antevendo a polêmica sobre o tema, Leduc finaliza com uma questão: “Em que é menos admissível procurar construir uma célula que procurar construir uma molécula?”. Pode-se enxergar aqui o início da idéia de biologia sintética que vemos hoje florescer.

As manipulações moleculares permitem que a biotecnologia saia do campo da teoria para as bancadas dos laboratórios. O marco foi a descrição da estrutura da molécula de DNA (1953) que passa a impulsionar e nortear as pesquisas biológicas que utilizam a tecnologia. Entre elas, a fertilização in vitro (1978), o nascimento da ovelha Dolly (1992), a abertura do mercado para a produção e consumo de organismos geneticamente modificados sinalizam que a manipulação molecular dos seres vivos conquista, cada vez mais, terreno.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/vida_sintetica/rp_hercules/1.jpg
Para a biologia sintética, o sistema hierárquico utilizado na engenharia computacional,
serve como um modelo análogo para a construção de células.
Esquema retirado de E., Basu S.; Karig D.K.; Weir R. “ Synthetic biology: new engineering
rules for an emerging discipline. Andrianantoandro”. Molecular Systems Biology p. 2:2006.

Próximo ao início do novo século, pesquisadores de diferentes regiões do planeta exercitavam a biotecnologia, principalmente a utilização de enzimas de restrição (responsáveis por cortar o DNA em determinados trechos). Através deste refinadíssimo processo de cirurgia molecular, passa a ser possível remover genes, inseri-los em outros fragmentos de DNA e finalmente inoculá-los em diversos outros organismos. Forma-se assim uma massa crítica de biólogos moleculares que torna viável a realização do grande projeto de decifração do genoma humano, concluído em 2003. Entender como apenas 25 mil genes humanos, aproximadamente, são capazes de produzir tamanha complexidade orgânica é o maior desafio da genética e da biologia sintética.

Produção em série

A meta é entender e reproduzir os modelos de vida naturais, nos quais os sistemas biológicos executam funções extremamente complexas, em uma vasta gama de ambientes. Com isso a biologia sintética quer sintetizar sistemas complexos, inspirados ou baseados nos sistemas vivos, cuja função final não existe na natureza. Por exemplo, através do desenvolvimento de sistemas moleculares orgânicos artificiais que são inseridos em células naturais ou em sistemas in vitro.

Com a intenção de formar uma massa crítica de biólogos sintéticos, um grupo de pesquisadores renomados do Massachusetts Institute of Technology (MIT) criou um projeto pedagógico, o iGEM (a competição internacional de máquinas de engenharia genética, em português). A partir de uma crescente biblioteca de biobricks, equipes de alunos de diversos países, podem exercitar a construção de máquinas genéticas, sob a supervisão e orientação de tutores qualificados. Um exemplo do potencial dessas experiências é o resultado do esforço de uma das 37 equipes de estudantes espalhadas pelo mundo que desenvolveu uma bactéria que cheira banana. Eles utilizaram a bactéria Escherichia coli (quem já cheirou uma cultura desta bactéria, reconhece o cheiro podre característico) e buscaram diferentes genes que convertem produtos químicos, feitos naturalmente por bactérias, em precursores químicos de compostos aromáticos, bem como genes que convertem aqueles precursores nos aromáticos finais, como o isoamil acetato (um componente do aroma de banana madura). Esses genes foram então ligados a promotores (seqüências de DNA que determinam quando e onde o gene deve ser ativado). Esses genes e seus promotores foram obtidos de vários geneticistas e do repositório do MIT, incorporados em uma molécula de DNA circular e inseridos na E. coli. O gene responsável pelo mau cheiro natural foi previamente eliminado por um processo de biotecnológico de knockout (eliminação de gene de interesse). Embora complexa, a biologia sintética vai ganhando a simplicidade de um jogo – desmonta, liga, adiciona – passível de ser praticado por muitos.

Segundo Tom Knight (o engenheiro do MIT co-responsável pelo programa, juntamente com Drew Endy, outro bioengenheiro do Instituto), em uma entrevista à revista Technology Review, “a idéia-chave é desenvolver uma biblioteca de peças combináveis e utilizá-las da mesma forma que os blocos de Lego. Estas peças podem ser montadas em peças mais complexas que, em muitos casos, são funcionais quando inseridas em células vivas”.

Estimulado pela competição, criou-se o Registry of Standard Biological Parts (o Registro Padrão de Partes Biológicas), um depositório de pedaços gênicos alojado no MIT. Esta loja de hardware biológico, que já está com um estoque razoável, vem sendo didaticamente utilizada e reposta por diversas comunidades de biologia sintética espalhadas pelo mundo.

O potencial da biologia sintética e seus produtos em gerar lucros substanciais já atraem polpudos investimentos (veja reportagem sobre o mercado da biologia sintética). Um exemplo é o montante de US$ 42,6 milhões, fornecidos pela Fundação Bill & Melinda Gates, para um grupo de pesquisadores do Departamento de Biologia Sintética, do Laboratório Nacional Lawrence Berkely, Califórnia (EUA). Em 2003, eles desenvolveram uma nova linhagem de E. coli capaz de sintetizar uma substância precursora da artemisina, uma droga antimalárica. A objetivo é que a verba leve ao aperfeiçoamento do processo de produção em massa da artemisina, tornando-a uma droga de baixo custo.

Esse processo é um exemplo de engenharia metabólica, no qual circuitos metabólicos são desenhados, suas dimensões e materiais básicos são calculados, suas peças básicas são encaixadas e postas a funcionar em uma bactéria, que passa a ser denominada de fábrica biológica.

Para Jonas Contiero, do Departamento de Bioquímica e Microbiologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Rio Claro, a biologia sintética é uma boa oportunidade para países emergentes, como o Brasil, investirem na formação de pessoal capacitado nesta nova área tecnológica. “Corremos o risco de, em futuro próximo, termos que recorrer e pagar por uma tecnologia que poderíamos ter desenvolvido aqui no Brasil”, afirma. O pesquisador enfatiza ainda que nessa capacitação deve ser incluído também pessoal especializado em avaliação de riscos e legislações pertinentes às novas biotecnologias (leia reportagem sobre tema legislação).

No editorial “Sintetizando o futuro” do periódico Chemical Biology, o pesquisador Paul McEuen do Laboratório de Física Atômica e do Estado Sólido, da Universidade de Cornell, e Cees Dekker, pesquisador do Instituto Kavli de Nanociência, da Universidade de Delft profetizam: “provavelmente o ano 2050 será tão diferente como hoje é o de 1950: organismos biologicamente sintéticos serão tão onipresentes quanto a computação eletrônica é hoje. A forma do futuro será determinada pelas decisões políticas que fizermos nos próximos anos. As escolhas não são fáceis. Será que estamos tentando regular excessivamente a biologia sintética, ou será que vamos deixá-la evoluir? A resposta é sem dúvida um pouco de ambos. Mas, além dos meios, o fundamental é se concentrar nas extremidades. Podemos investir os nossos recursos para construir organismos que comem carne ou que comem lixo e fazem combustível. Devemos, em primeiro lugar decidir o futuro que queremos. Então, poderemos utilizar a biologia sintética para nos ajudar a sintetizar aquele futuro que almejarmos”.

Enquanto aguardamos o nascimento da primeira criatura sintética, faz-se necessário lidar com o incerto e agitado mar da regulamentação e ética na pesquisa de modo a não haver um grande descompasso em relação ao desenvolvimento da ciência, a exemplo do que ocorreu com os transgênicos e, mais recentemente, com as células-tronco embrionárias.