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Reportagem
Megadiversidade corroída em ritmo acelerado
Por Germana Barata
10/02/2009

Trinta e quatro regiões no mundo inteiro são consideradas áreas prioritárias de conservação (hotspots), por abrigarem verdadeiros tesouros biológicos; duas dessas regiões estão no Brasil e uma delas é a do Cerrado (e a outra, por incrível que pareça, não é a Amazônia, mas a Mata Atlântica). O desmatamento no Cerrado anda a passos largos anualmente e as propriedades agrícolas podem, apoiadas pelo Código Florestal vigente, preservar apenas 20% da área nativa, bem diferente do que ocorre em florestas tropicais, como a Amazônia, nas quais esse percentual corresponde ao máximo que se permite desmatar. São 12.356 espécies da flora e mais de 2.546 animais catalogados, meros 10% do que existia originalmente nesse bioma. É também o berço de três das maiores bacias da América Latina (Amazônica, Paraná-Paraguai e São Francisco). Tantas riquezas ainda não foram suficientes para acender um alerta para garantir a sobrevivência, manutenção e conservação do Cerrado, segundo maior bioma nacional. Outra riqueza, essa produzida em seus mais de 70% de território degradado, tem sido a prioridade nacional: a agropecuária e o carvão vegetal.

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O Cerrado possui vegetações ou fitofisionomias bastante variadas, por conta dos diferentes tipos de solo. Fotos: Rafael Oliveira/Daniel De Granville/Carlos Terrana.

Enquanto o Congresso Nacional tenta aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 115/1995) para reconhecer o Cerrado como patrimônio nacional, a megabiodiversidade, mais rica em áreas abertas – justamente aquelas que são mais visadas pela agropecuária –, vai sendo consumida. “Mesmo considerando o número de pesquisas existentes no Cerrado, o conhecimento científico é bastante precário, pois novas espécies estão sendo descobertas a cada levantamento faunístico e florístico realizado”, apontam os autores do estudo de perda de espécies do Cerrado, apresentado durante o IX Simpósio Nacional do Cerrado, ocorrido em outubro do ano passado. Ricardo Machado, diretor do programa Cerrado-Pantanal da ONG Conservação Internacional e um dos autores do trabalho, conta que e m expedição realizada por sua equipe durante três semanas, foram identificadas 14 novas espécies de répteis, peixes, mamíferos e aves – grupos de animais de maior porte e, portanto, mais conhecidos.

Não é difícil prever o nível de desconhecimento de grupos menores, como fungos, embora sejam fundamentais para a ciclagem de nutrientes do meio ambiente. “Praticamente tudo é o primeiro registro”, lamenta Solange Xavier dos Santos, especialista em micologia (estudo de fungos) da Universidade Estadual de Goiás. O que se conhece equivale a menos de 5% do total existente. O mesmo vale para representantes de outros grupos, como os numerosos insetos. “O nível de desconhecimento é diretamente proporcional ao número de profissionais envolvidos nas pesquisas”, estima a pesquisadora.

Dentre os fatores responsáveis pelo desconhecimento do bioma estão a falta de especialistas, centros de pesquisa e coleções científicas, além de dificuldades de acesso às áreas para coleta de material biológico. Muitos grupos de pesquisadores do bioma estão localizados em algumas poucas instituições, como é o caso da Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal de Goiás (UFG), além da Embrapa. Mas o problema reside também nos baixos gastos governamentais no bioma e em políticas ambientais que garantam rapidamente a proteção de áreas maiores. A Conservação Internacional demonstra, através de análise dos recursos aplicados pelo Ibama em 2007, que o Cerrado recebeu apenas 8% do montante reservado para unidades de conservação, ou R$ 107 milhões, enquanto o valor mínimo necessário seria de R$ 5.638 por hectare, ou seja, R$ 227 milhões. Recurso que desaparece perto do gigantesco investimento na produção agrícola na região do Cerrado no mesmo ano, de R$ 41 bilhões.

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Segundo estimativas, o Cerrado abriga cerca de 5% de toda fauna e flora mundial, com altas taxas de endemismo, que pode chegar a 45% em lagartos. Fotos : Carlos Terrana

Soluções em vista

Com mais de 70% do Cerrado degradado, multiplicam-se projetos persistentes e apaixonados, que tentam recuperar terrenos batidos, nus. Um deles é a Rede de Sementes do Cerrado, que atua desde 2005, como uma proposta do Ministério do Meio Ambiente, no desenvolvimento de métodos de germinação de sementes e mudas nativas do bioma. A idéia não é nova e parece bastante simples, porém enfrenta dois grandes desafios: a) desvendar o funcionamento de cada espécie para que possa ser reproduzida em quantidades suficientes – em condições não naturais – para reflorestar vastas áreas, podendo se desenvolver com sucesso para gerar descendentes que continuem sua tarefa; b) conseguir autorização para a coleta de sementes e mudas nativas para fomentar o projeto, atualmente um processo considerado fora da lei.

“Temos receitas próximas da realidade para cada tipo de região, já que o Cerrado varia de acordo com o tipo de solo”, afirma Manoel Cláudio da Silva Jr, do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB) e membro da rede. Uma estimativa feita pelos especialistas da Rede de Sementes constatou que seriam necessárias 50 bilhões de mudas para recuperar apenas áreas de reserva legal (os 20% de vegetação nativa que devem ser mantidos numa área), além da Área de Proteção Permanente (APP) – como terrenos inclinados, frágeis, erodidos ou com nascentes de rios. “A proposta da rede é legalizar o Cerrado”, defende o especialista.

Até agora, o projeto conseguiu, em parceria com a Embrapa, determinar as técnicas de germinação para cerca de 200 espécies de ampla ocorrência no Cerrado. “Há um pequeno número de espécies que domina a paisagem e um gigantesco número que ocorre em menor quantidade”, explica Silva Jr.

A rede aguarda o lançamento, em breve, do “Clique Cerrado”, projeto em parceria com o Banco do Brasil que visa o plantio de 3 milhões de mudas através da participação de internautas, seguindo o exemplo da bem sucedida iniciativa “Clickarvore” da ONG SOS Mata Atlântica, que já conseguiu a doação de quase 19 milhões de mudas nativas.

O plantio de árvores em tempos de mudanças climáticas pode ser também uma forma de gerar créditos de carbono. É o que aposta Ricardo Machado, da Conservação Internacional. Ele esclarece que o valor gerado com os créditos de carbono daria para cobrir o custo de manutenção da recuperação de áreas degradadas, mas não cobre o lucro gerado pela agropecuária. O objetivo é promover o casamento entre empresas que querem compensar a emissão de gás carbônico (um dos causadores do efeito estufa) com fazendeiros locais ansiosos para resolver seu passivo ambiental, regularizando sua situação, por meio de viveiros gerenciados por comunidades locais. “Do ponto de vista dos fazendeiros com áreas degradadas, que foram estimulados pelo governo para ocupá-las e para produzir, eles acreditam que também devem ser estimulados a recuperar suas áreas”, afirma Machado.

Pouca proteção garantida

Enquanto os Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento negociam as políticas públicas de suas agendas, especialistas e conservacionistas se esforçam para conhecer os organismos e a dinâmica do Cerrado, protegido por meio de unidades de conservação em, aproximadamente, 2,2% de sua área total, entre as quais estão o Parque Nacional das Emas (131.832 ha), o Parque Nacional Grande Sertão Veredas (84 mil ha), o Parque Nacional da Serra da Canastra (71.525 ha, área demarcada), o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (60 mil ha), o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (33 mil ha) e o Parque Nacional de Brasília (28 mil ha). Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o Cerrado responde por 9% das unidades de conservação existentes no país, enquanto a Amazônia abriga 88% delas e o restante se divide nos demais biomas.

O status de Unidade de Conservação não garante a conservação do bioma. Há problemas de falta de profissionais para fazer a manutenção, controle e vigilância da área e a demarcação das terras é precária. Não bastassem esses obstáculos, algumas unidades de conservação correm o risco de serem reduzidas, a exemplo do que vem ocorrendo com a Serra da Canastra. Criada em 1972, sua área total de 197.797 ha foi reduzida, no ano passado, para 150.168 ha (embora a diferença tenha sido transformada em APP, garantindo maior proteção do bioma) e ainda está no alvo de exploradores de diamantes. Em 2001, a empresa De Beers anunciou a venda do maior quimberlito mineralizado (fonte primária do diamante) em uma área de um hectare, com potencial estimado em um milhão de quilates de diamantes, valendo em torno de US$ 150 milhões; e hoje, há um potencial de extração que varia de 550 mil a 2 milhões de quilates.

Estimativas realizadas por Machado e colegas, em 2008, sobre as perdas de espécies em relação à redução do bioma, concluem que o Cerrado já deve ter perdido 13% de sua biodiversidade, considerando a situação de ocupação atual e o que é exigido pelo Código Florestal Brasileiro, podendo chegar a 24% de perda com uma ocupação do bioma equivalente a 75%. “Os números sugerem que é preciso fazer mais do que a legislação ambiental exige, caso a sustentabilidade ambiental seja realmente considerada no desenvolvimento econômico do Cerrado”, alertam os autores.