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Reportagem
Do ouro à soja: riquezas do Brasil Central
Por Rodrigo Cunha
10/02/2009

A região do Cerrado brasileiro, localizada na porção central do país, teve uma participação preponderante no desenvolvimento do agronegócio brasileiro nos últimos quarenta anos. Um dos carros-chefe desse grande impulso tem sido a soja, cujo maior produtor individual do mundo é o Grupo Maggi, da família do governador de Mato Grosso. Desde as primeiras descobertas de ouro no Brasil Central, no período colonial, a região nunca esteve tão próxima de um protagonismo mais vigoroso na economia do país. Mas os desafios para o futuro não são poucos: o capital agropecuário, por si só, ainda não foi suficiente para alavancar uma industrialização mais robusta e diversificada; as terras e riquezas nelas produzidas sempre foram muito concentradas; e o bioma do Cerrado tem sofrido uma retração cada vez mais preocupante. Quando já tiver passado o tormento da atual crise financeira mundial, no entanto, a região central do país tem a faca e o queijo nas mãos: infra-estrutura e demanda interna propícias para a industrialização, por um lado; e por outro, vê ganhar força o manejo de produtos como o pequi e a castanha-do-cerrado para geração de renda entre assentados rurais aliada à preservação do bioma.

A migração para o interior do país, hoje mais intensa, começou a dar os seus primeiros passos com os bandeirantes paulistas, já no século XVI. Esse movimento foi estimulado pela coroa portuguesa para fixar seus limites geográficos em relação aos domínios espanhóis no continente. Mas foi apenas em 1719 que a expedição comandada por Pascoal Moreira Cabral encontrou ouro em Mato Grosso. Três anos depois, foi a vez de Bartolomeu Bueno da Silva Filho retomar o caminho já desbravado por seu pai, o Anhanguera, e encontrar ouro em Goiás. Com a exploração do ouro, começam a se formar as primeiras vilas e povoados não indígenas no centro do país. Até 1748, quando foi criada a capitania de Mato Grosso, as minas de lá eram subordinadas à capitania de São Paulo. Já a capitania de Goiás foi criada em 1744, mas só se instalou em 1749. “Em função da descoberta e da exploração do ouro, estabeleceram-se dois caminhos entre essas minas e São Paulo. Um, por barco: pelos rios Tietê, Paraná e Paraguai. Outro, por terra, passando pelo triângulo mineiro, Vila Boa de Goiás (atual Goiás Velho, primeira capital goiana) e de lá até Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (atual Cuiabá)”, conta o geógrafo Bernando Campolina Diniz, da Universidade Federal de Tocantins, que estudou a economia do Cerrado em seu doutorado.

Segundo ele, o apogeu da exploração do ouro foi logo após a criação das capitanias, entre 1750 e 1754, quando foram extraídos 35 mil quilos de ouro em Goiás e Mato Grosso, cerca de 7 mil quilos por ano. Juntas, essas capitanias não conseguiam alcançar a produção já enfraquecida de Minas Gerais, de 8.789 quilos por ano, e também começaram a entrar em declínio. As economias da região começam a migrar gradativamente para a pecuária, já expressiva na porção mineira do Cerrado, entre Uberaba e Uberlândia, e para a agricultura, nas poucas regiões férteis do bioma. A abertura para navegação do rio Araguaia, no século XIX, gera novas possibilidades de ligação comercial, unindo Goiás e Mato Grosso ao Norte do país, ampliadas ainda mais a partir da ligação por estrada de ferro entre São Paulo e Campo Grande, em 1911, e Minas e Goiás, em 1913. A população e a economia no Brasil Central, no entanto, ainda cresciam lentamente. “Embora a região dos cerrados tenha sido objeto de variados esforços de ocupação ao longo da história, ela se manteve relativamente vazia, dos pontos de vista econômico e populacional, até meados do século XX”, afirma Diniz.

Dois grandes fatores foram cruciais para acelerar esse processo, de acordo com o geógrafo. O primeiro, uma idéia antiga, de José Bonifácio, do período do Império, prevista no texto da primeira constituição republicana do país, de 1891: a transferência da capital para o Planalto Central. Concretizada no governo de Juscelino Kubitcsheck, em 1960, Brasília proporcionou a ligação do centro com o restante do país através de rodovias, além de atrair a criação de infra-estrutura em energia e em telecomunicações para a região central. O segundo fator, essencial para o agronegócio, foi o avanço da pesquisa científica e tecnológica, particularmente a partir dos anos 1970, envolvendo universidades e empresas e capitaneado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Esse avanço, aliado à impossibilidade de ampliação das áreas produtoras de grãos no Sul e em São Paulo, onde o preço da terra encareceu, possibilitou a expansão da produção nos cerrados.

“A topografia da região apresenta boas possibilidades para o emprego de práticas agrícolas mecanizadas, visto que o relevo é em geral plano ou de ondulações suaves”, explica Diniz. “O principal obstáculo à agricultura nos cerrados diz respeito à baixa fertilidade natural, limitada devido à sua acidez (baixo pH) e baixo teor de cálcio. Essas características, no entanto, foram superadas com a correção do solo, superando os problemas de fertilidade mediante adição dos componentes químicos em que os cerrados eram deficientes”, completa.

Para se ter uma idéia, de acordo com o IBGE, a área de cultivo de soja no Cerrado saltou de 571 mil hectares, em 1975, para 10.092 mil hectares, em 2003, aumentando a representação de 10% para 54% do total do país. Nesse período, a produção do grão passou de 853 mil toneladas para 27.986 mil toneladas nos cerrados. O gado bovino saltou de 33.960 mil cabeças, ou 34% do total, em 1975, para 85.057 mil cabeças ou 43% do total, em 2003. A produção de gado e soja trouxeram na esteira a indústria processadora de matéria-prima de origem animal e vegetal. De 1970 a 2004, a indústria frigorífica bovina do Centro-Oeste saltou de 25% do total de abates no país para 40%, passando de 10,7 milhões de cabeças para 25,8 milhões de cabeças. Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul tinham em 2004 mais da metade dos 125 matadouros frigoríficos instalados na região do Cerrado. Já o abate de suínos e de aves, menos expressivo na região, subiu respectivamente de 5% para 12% do total, e de 3,6% para 10% do total. Na indústria esmagadora de soja, entre 1998 e 2004, Mato Grosso saltou de 8,8 mil para 20,6 mil toneladas/dia de produção, e Goiás, de 9,7 mil para 17 mil, e 45% da produção nacional do setor estava no Cerrado.

Outros dois produtos que têm se destacado recentemente na região são o algodão e a cana-de-açúcar, que também podem atrair futuramente indústrias têxteis e de processamento de álcool. A partir da queda na produção nacional de algodão, nos anos 1990, ela começa uma recuperação em Mato Grosso, graças a pesquisas da Embrapa para adaptação das sementes, e se espalha pelas porções de Cerrado de Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia e Minas Gerais. Em 2003, os cerrados já respondiam por 88% da produção nacional com suas 1.944 mil toneladas de algodão. As pesquisas de adaptação de cultivares também possibilitaram que o plantio de cana se expandisse nas regiões de Cerrado, particularmente na porção paulista, no triângulo mineiro e nos estados do Centro-Oeste. As 183.072 mil toneladas de cana produzidas em áreas desse bioma representavam, em 2003, 43% do total produzido no país.

Potencial para industrialização

Apesar de ter uma forte participação no agronegócio, o Brasil Central ainda carece da agregação de renda proporcionada pelo setor industrial, mas tem todas as condições para atraí-la. “A região central desenvolveu o setor rural e o de serviços muito bem. Está agora em condições de desenvolver o setor industrial”, afirma o economista Célio Costa, consultor com expertise em mercado interno. Segundo ele, uma das bases para isso é o atual mosaico demográfico brasileiro, que mudou consideravelmente após os anos 1970. Agora, a população é majoritariamente urbana, e cresce significativamente no interior do país. “Há demanda nesse mercado de perfil de consumo urbano, e o tamanho da demanda não atendida pode dar margem ao crescimento da indústria. O Centro-Oeste precisa melhorar o perfil de seu mercado e aumentar sua participação no segmento industrial, que era só de 3,8% do total do país, pelos indicadores de 2006”, aponta Costa.

Além do mercado interno, outra condição favorável à industrialização é a oferta de infra-estrutura em energia, transportes e telecomunicações. Juntos, esses fatores superariam até mesmo os incentivos usados na guerra fiscal entre estados para atrair novas indústrias. “A guerra fiscal é espúria, tornou-se um balcão de oferta. Antes de decidir onde se instalar, a empresa não vai considerar apenas o incentivo fiscal, que todos oferecem. Elas sabem se existe mercado interno, suprimento de matéria-prima e de infra-estrutura”, diz o economista. Para ele, a região está bem servida nesse último quesito, mas o Mato Grosso ainda precisa melhorar o seu quadro de oferta de energia e o acesso à ferrovia. “A conclusão da hidrovia Araguaia e a ferrovia Norte-Sul vão melhorar muito o escoamento na região. O Centro-Oeste pode se tornar um grande entreposto da indústria de transformação nacional”, defende.

O passivo ambiental

Todo esse crescimento da agroindústria nas últimas décadas, que pode impulsionar a industrialização em um futuro recente, teve um preço alto para o Cerrado. Os mapas do IBGE sobre a retração da vegetação nativa mostram que o bioma encolheu consideravelmente nos últimos trinta anos. Mas esforços como o iniciado no assentamento rural Andalucia, em uma região do Mato Grosso do Sul, contribui na luta para reverter essa retração. Os próprios assentados criaram, em 1998, o Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação (Ceppec) para diversificar sua renda e preservar o Cerrado. Trata-se de uma iniciativa pioneira que envolve o manejo de plantas nativas e aplica nos cerrados o extrativismo sustentável, que já tem uma certa tradição em áreas de floresta tropical como a Amazônia e a Mata Atlântica. A idéia iniciada no Andalucia deu tão certo que hoje já atinge 50 assentamentos em 11 municípios, onde se realiza o manejo extrativista e o processamento de castanha-do-cerrado, pequi, bocaiúva e jatobá.

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O orgulho diante dos produtos do trabalho com os frutos do cerrado.
Foto: Rosane Bastos.

“Primeiro, é feito um levantamento do potencial botânico da região do assentamento, sobre a quantidade e a qualidade dos frutos nativos”, conta a bióloga Rosane Bastos, coordenadora do programa de capacitação do Ceppec. “Depois, há o trabalho para não se colher tudo, para que haja regeneração da área e repovoamento das plantas nativas”, completa. Ela afirma que no próprio Ceppec há uma mini-usina de processamento. Após a coleta dos frutos, eles são lavados, cortados e torrados. A farinha da castanha-do-cerrado, por exemplo, é vendida em padarias, mercados e sorveterias. Já o pequi é usado em pratos da alimentação da própria comunidade, além de também ser vendido para a indústria alimentícia. “No Ceppec, também tem uma oficina de tecelagem, onde se usam corantes naturais a partir de frutos, flores e cascas”, conclui. Tanto a tecelagem quanto os produtos alimentícios, além do trabalho com turismo ecológico também desenvolvido no Ceppec, estão gerando renda para dezenas de famílias da região. E a garantia dessa renda é justamente a manutenção das plantas nativas em pé. O Cerrado agradece.