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Artigo
Tortura, impunidade e o investimento numa cultura de direitos
Por Edson Luis de Almeida Teles
10/03/2009

A questão sobre a tortura pode simbolizar as lutas em favor dos direitos humanos no mundo atual. Vimos nas últimas semanas o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarar que seu país não irá mais usar o recurso da tortura na guerra contra seus inimigos. Entre suas primeiras ações deve estar o fechamento da prisão de Guantánamo, onde são mantidos mais de duzentos presos acusados de “terrorismo”. Nesse local, o Estado norte-americano utilizou abertamente, com respaldo em normas e leis aprovadas pelo legislativo, a prática da tortura.

Diante de quadro tão dramático para os direitos humanos, a grande mídia mundial exalta as medidas contra as violências de Guantánamo, sem lembrar que as mesmas instituições que hoje encerram esse período dolorido, ontem estavam normatizando a violação à dignidade humana como tratamento adequado a suspeitos. Devido a essa ambiguidade do Estado norte-americano, é preciso questionar se tais medidas são suficientes para termos relações respeitosas entre as pessoas e, especialmente, entre os Estados nacionais e com todos os indivíduos que se encontram em seu território.

Colocar em dúvida as políticas institucionais para os direitos humanos é uma das principais ações necessárias para um maior investimento no respeito à vida. E não nos referimos somente aos Estados Unidos, mas a maioria das democracias contemporâneas. No Brasil, nos últimos anos o tema da tortura tem ensejado intenso debate. Parte da sociedade brasileira tem refletido sobre se é possível punir os torturadores da ditadura ou se devemos perdoar os seus crimes. Ora, assim como o novo presidente norte-americano é ovacionado por sua proposta, apesar de não relacionar Guantánamo com uma política global do Estado, também no Brasil parece que discutimos o tema da tortura do regime militar sem aprofundar a discussão sobre como tal prática criminosa mantém-se como herança autoritária na democracia.

Recentemente, a organização não-governamental Human Rights Watch relacionou o Estado brasileiro, juntamente com outros tantos mundo afora, como um dos países que apresenta a tortura como um problema crônico. Aqui, a cultura nacional assimilou de tal maneira a permissividade à violação do direito à vida e à dignidade que, atualmente, mesmo os grupos criminosos torturam suas vítimas, em uma perversa repetição da prática das instituições de segurança.

Nós, brasileiros, vimos nos últimos anos ser implantada uma política de fechamento dos grandes centros de detenção de adolescentes autores de ato infracional (as dependências da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem)). A medida, tal como a proposta de fechamento de Guantánamo, visava encerrar as constantes violações aos direitos humanos, nesse caso, os direitos de pessoas ainda em desenvolvimento e sem a plena cidadania. Entretanto, várias entidades de direitos humanos, observadoras das mudanças no atendimento ao adolescente infrator, denunciaram que a prática de tortura e violência se mantém.

Porém, por que falar sobre adolescentes infratores diante de outros temas sociais com maior projeção social? O adolescente que se envolve na prática infracional está ligado às difíceis condições sociais. Por um lado, a pobreza e a situação em que vivem com precariedade levam os adolescentes a se envolverem com o crime. Sem o acesso universal à escola, ou com um sistema de educação sem as mínimas condições materiais, sem um atendimento digno à saúde e diante da ausência de políticas mais eficientes de inserção social o adolescente se vê diante da sedução exercida pelo crime e pela expectativa de acesso a uma melhor condição de vida. Por outro lado, acompanhando a precariedade social, as famílias, que poderiam ser um meio de sustentação, também se encontram esgarçadas e sem estrutura para lidar com o problema.

A criminalidade de meninos e meninas tem recebido destaque nos últimos anos, no Brasil e no mundo, como um problema social que desafia o esforço de compreensão e de renovadas políticas de enfrentamento do problema. A questão do adolescente infrator simboliza a luta pelo acesso digno a direitos, de modo semelhante a tantas outras demandas sociais, projetando-a como uma síntese dos desafios éticos e políticos do mundo contemporâneo. O crime praticado pelo adolescente sinaliza com certo fracasso do mundo capitalista e globalizado na função de possibilitar as relações sociais democráticas e de respeito à vida, desvendando contradições e desigualdades que têm clara influência no fenômeno da delinquência.

Como resposta ao problema, o Estado tem a incumbência de aplicar a legislação específica às crianças e adolescentes – no caso brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente. São medidas que variam entre o encaminhamento do adolescente a atendimento psicológico, educativo e de assistência social, até a privação de liberdade em centros de detenção específicos, popularmente conhecidos como Febem. O problema é que, no momento em que o adolescente entra na instituição de educação para novas relações sociais – do Estado ou privada –, ele se vê diante de espaços despreparados para aplicar a legislação. Mais do isso: é comum se ver denúncias de violência e tortura contra os adolescentes praticados por agentes da instituição que deveria lhes prestar o serviço educativo.

O sistema democrático, sabemos, é constituído por inúmeros discursos e pelas instituições e acrescido, nos dias atuais, por uma novidade importante: os direitos humanos. A questão crucial dos direitos humanos é limitar o poder do Estado, garantindo a proteção de qualquer indivíduo. Sua importância está em considerar a questão do poder político da perspectiva dos que estão fora das instituições, protegendo, inclusive, aqueles que de alguma forma não usufruem da plena cidadania – como no caso dos adolescentes e dos excluídos socialmente, de modo geral.

Os direitos humanos surgiram, por meio dos direitos individuais, como valores impeditivos do poder do governante e, posteriormente, para controlar os abusos dos regimes autoritários e totalitários. O avanço da democracia ou do caráter de respeito à vida na sociedade contemporânea é provocado pelos direitos humanos. É com essa perspectiva que os movimentos sociais e das minorias têm se mobilizado.

No caso da impunidade sobre os crimes da ditadura militar brasileira, o país, por iniciativa da sociedade civil, realizou uma série de debates nos quais se defendeu a idéia de que os crimes de tortura durante a ditadura não teriam sido contemplados pela Lei de Anistia. O fato é que, independentemente da Lei brasileira de anistia de 1979, o Brasil tem assinado, desde 1946, acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, entre a data do crime e a abertura de investigações, o Brasil é obrigado a tomar providências em favor da punição dos responsáveis.

Contra a punição aos torturadores do passado há o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas. No entanto, de acordo com pesquisa realizada em vinte países – incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil –, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica em incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Este é um dos mais fortes motivos pelo qual assistimos, frequentemente, às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de instituições de segurança do Estado.

Entretanto, qual a relação entre o torturador da ditadura, a prisão de Guantánamo, os adolescentes infratores e os dilemas dos direitos humanos? É a constatação de que para sonharmos, desejarmos, construirmos um mundo sem tortura é necessário atacar de frente e sem medo a impunidade de tais crimes. Sem a punição aos torturadores de ontem, não há como pensar em acabar com a tortura de hoje; o simples fechamento de um notório centro de violações à humanidade será insuficiente se não houver a punição dos responsáveis (em geral, nos EUA, na Febem, no Estado brasileiro, os violadores permanecem em postos públicos).

A tortura simboliza uma série de desrespeitos do direito à vida, como o direito digno à alimentação, ao transporte, à educação, à saúde, a uma vida sem violência. É necessário determinar as responsabilidades e criar uma cultura de direitos. O fim da impunidade é a garantia para construirmos uma democracia respeitosa do direito à vida e à dignidade humana.

Edson Teles é doutor em filosofia política pela Universidade de São Paulo e professor de ética e direitos humanos na Universidade Bandeirante de São Paulo. Email: edsonteles@gmail.com.

Notas

Este artigo tem por base as discussões do Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2009, na cidade de Belém do Pará, do qual participei como analista de direitos humanos pela Agência Carta Maior.