REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
A longa marcha para a imobilidade - Carlos Vogt
Reportagens
A trajetória da solidez de uma ideia em transformação
Rodrigo Cunha
Os caminhos atuais do evolucionismo
Ana Paula Morales
Humano, demasiadamente orgânico?
Danilo Albergaria
A corrente econômica que veio da biologia evolutiva
Fábio Reynol
Alessandro Piolli
Um Darwin “humanizado” circula pelo mundo
Enio Rodrigo
Artigos
Ao redor de Charles Robert Darwin
Dalton de Souza Amorim
O ensino da evolução biológica: um desafio para o século XXI
Rosana Tidon
Eli Vieira
Afinidades entre Karl Marx e Charles Darwin
Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
Porque somos como somos? A psicologia evolucionista e a natureza humana*
Maria Emília Yamamoto
A evolução da teoria darwiniana*
Charbel Niño El-Hani
Diogo Meyer
Resenha
Navegar é preciso
Por Vera N. Solferini
Entrevista
Eduardo Rodrigues Cruz
Entrevistado por Por Flavia Natércia
Poema
Roda da fortuna
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
A evolução da teoria darwiniana*
Por Charbel Niño El-Hani
Diogo Meyer
10/04/2009

Muito do que sabíamos sobre a biologia dos organismos mudou nos últimos anos. Isso sugere que o que saberemos amanhã também será diferente do que sabemos hoje. Por exemplo, há alguns anos, acreditávamos que a informação hereditária se encontrava exclusivamente na sequência de nucleotídeos que compõe o genoma. Hoje já pensamos de modo diverso: há também informação hereditária na forma como o material genético está empacotado nos cromossomos ou é “marcado” quimicamente por certas moléculas ligadas ao DNA. Isso implica uma mudança dramática no pensamento biológico: até pouco tempo, a herança era entendida como um processo apenas genético e, hoje, está bem estabelecida a existência de mecanismos epigenéticos de herança, situados acima do nível das sequências nucleotídicas no DNA. Outro exemplo ilustrativo é que, até o começo da década de 1970, imaginávamos que o fluxo de informação genética se dava numa única direção: o DNA produz moléculas de RNA, que produz proteínas. Porém, a descoberta do fenômeno da transcrição reversa mostrou que o DNA pode ser produzido a partir de moléculas de RNA (o que ocorre nos retrovírus, como o HIV).

Tais mudanças no modo como os cientistas explicam fenômenos naturais não devem causar surpresa. Um dos mais importantes legados da filosofia dos últimos 150 anos foi a demonstração de que seres humanos não podem construir mais do que modelos para a compreensão do mundo. Esses modelos se mantêm e são úteis por um período, mas podem sempre ser superados. E a ciência construiu procedimentos sem precedentes na história da humanidade tanto para propor modelos eficazes quanto para superar os próprios modelos.

O conhecimento sobre evolução também foi e vem sendo construído desse modo característico da ciência, sendo constantemente debatido e colocado à prova. Diferente do que argumentam muitos criacionistas, a evolução não é uma teoria “imposta” à comunidade científica sem debates ou desafios. Muito pelo contrário, ela vem sendo examinada cuidadosamente por cientistas, tendo sido e ainda sendo questionada e desafiada. Como consequência, parte do que os cientistas pensam sobre evolução hoje é diferente do modo como pensavam há algumas décadas, enquanto muitas outras ideias básicas permaneceram virtualmente inalteradas por muito tempo. O trabalho de Darwin nos deixou dois legados fundamentais. Em primeiro lugar, apresentou convincentes argumentos sobre a realidade da transformação das espécies ao longo do tempo, algo que chamaremos de “a ideia de evolução”. Em segundo lugar, propôs a seleção natural como mecanismo de mudança evolutiva. Neste artigo, examinaremos alguns dos desafios e as modificações que vêm ocorrendo nessas duas ideias.

Árvore da vida

Em A origem das espécies, Darwin buscou documentar a ideia de que todos os seres vivos são aparentados uns aos outros e de que novas formas vivas se originam a partir das pré-existentes. Ele chamou esse processo de “descendência com modificação” e propôs que todos os seres vivos estariam conectados uns aos outros através de uma “árvore da vida”.

Darwin defendeu a ideia da evolução com base em observações vindas das mais diversas áreas: o estudo da distribuição dos organismos (biogeografia), o estudo das semelhanças e diferenças morfológicas entre espécies (anatomia comparada), o estudo do desenvolvimento embrionário (embriologia) e o estudo dos fósseis (paleontologia). Hoje, quase 150 anos depois, as evidências de que a evolução ocorre são mais fortes do que nunca. Novas descobertas em todos esses campos apoiam a ideia de que todos os seres vivos são aparentados entre si e descendem de ancestrais comuns. Além disso, novos campos do conhecimento, inexistentes na época de Darwin, vieram reforçar as evidências de que a evolução ocorre. A comparação dos genomas de organismos tão diversos quanto humanos, chimpanzés, camundongos, galinhas, moscas e leveduras (todos completamente sequenciados) vem sendo particularmente informativa. Essas análises revelaram um grande número de genes conservados – isto é, praticamente inalterados – em todas essas espécies. Além disso, há também conservação em outro nível: o ordenamento de genes nos cromossomos de organismos tão diferentes quanto humanos e camundongos apresenta extensas semelhanças. Como explicar isso? A teoria evolutiva dá sentido a essa observação: tais semelhanças são consequências do parentesco entre seres vivos. O ordenamento dos genes, por exemplo, foi herdado de um ancestral comum a humanos e camundongos: a evolução envolve o processo de transmissão de tais características ao longo de milhares de gerações e de diferentes linhagens. Todas as semelhanças genômicas que encontramos são testemunhos desse processo.

Porém, uma outra ideia fundamental de Darwin, a de que essas relações de parentesco podem ser expressas por uma árvore, não vem tendo vida tão fácil. Os mesmo estudos genômicos que revelam os elos de parentesco entre os seres vivos trouxeram surpresas: as árvores de parentesco obtidas através de diferentes genes muitas vezes contam histórias evolutivas diferentes. Como isso seria possível, se todos os seres vivos são aparentados uns aos outros, compondo uma única árvore da vida? A resposta é que talvez não haja uma única árvore. Isso ocorre-ria caso os organismos evoluíssem através de dois processos: descendência com modificação (representado pela árvore) e um segundo processo, transferência gênica horizontal (que transforma a árvore numa rede ou teia e é particularmente comum em bactérias, que incluem a maioria das formas vivas). Este último processo corresponde à transferência de material genético entre espécies diferentes, resultando em organismos que são “mosaicos” de genes de espécies pré-existentes.

Assim, vemos que o sequenciamento de genomas está contribuindo para a biologia evolutiva de duas formas. Por um lado, reforça a ideia de que todos os seres vivos são aparentados e de que as espécies evoluem. Por outro, indica que esse processo inclui também a mistura de genomas de diferentes espécies. Longe de ser estático, nosso conhecimento biológico evolui. Podemos esperar nos próximos anos novas descobertas sobre as complicadas relações de parentesco entre os organismos.

Seleção natural e restrições

A segunda grande ideia de Darwin (cuja autoria ele partilha com o naturalista Alfred Wallace) foi a da seleção natural. Para a teoria sintética – a teoria darwinista que se consolidou a partir dos anos 30, unificando evolução e genética —, a explicação do processo evolutivo não precisaria de qualquer outro mecanismo além da seleção natural e, no caso da origem de novas espécies, de mecanismos de isolamento reprodutivo. Hoje, temos uma nova forma de entender a evolução, baseada em parte numa síntese entre biologia evolutiva e biologia do desenvolvimento. A biologia evolutiva do desenvolvimento, ou evo-devo, vem contribuindo para um pluralismo de processos, a ideia de que a compreensão da evolução requer uma série de mecanismos operando de modo complementar. Entre eles, temos as restrições ao processo evolutivo.

Para abordá-las, precisamos primeiro tratar da relação entre evolução e desenvolvimento. Enquanto a evolução modifica o desenvolvimento (o desenvolvimento também evolui!), o desenvolvimento restringe as possibilidades da evolução. Afinal, o desenvolvimento não é um processo infinitamente plástico, mas um processo muito complexo de produção de forma (morfogênese) a partir de um sistema intricado de interações celulares e moleculares. A complexidade do sistema de desenvolvimento e a concatenação de suas etapas fazem com que certas inovações morfológicas se tornem impossíveis para determinados organismos. Assim, as mudanças evolutivas são restritas às que “podem ocorrer” como consequência de mudanças no desenvolvimento. Isso pode explicar por que certas variedades de formas vivas não são encontradas, como, por exemplo, mamíferos com seis patas, em vez de quatro: o padrão tetrápode evoluiu há muito tempo na linhagem dos vertebrados e o modo como esses animais se desenvolvem dificulta inovações nesse padrão, cuja via de desenvolvimento foi herdada de ancestrais remotos.

Entretanto, as restrições podem também cumprir um papel positivo na evolução, não apenas impedindo a produção de inovações, mas também alterando a direção e velocidade da evolução. Para explicar isso, introduziremos uma analogia. Imaginem uma torneira ligada a um reservatório de esferas de metal, da qual jorram esferas de diferentes diâmetros. Sob a torneira, colocamos peneiras de diferentes malhas, que deixam passar amostras variadas de esferas. Sob a peneira, temos um recipiente no qual recolhemos as esferas resultantes. Eis os análogos biológicos de nossa curiosa montagem: a torneira representa a fonte da variação; as esferas, formas variantes que constituem uma população; a peneira, a seleção natural.

Consideremos inicialmente uma situação na qual a torneira está totalmente aberta, ou seja, nenhuma esfera é impedida de sair pela torneira. Peneiramos as esferas e examinamos o resultado. Quem é responsável pela distribuição das esferas no recipiente: a torneira, a peneira, ou ambas? Como a torneira não teve qualquer papel no fluxo ou não das esferas até

o recipiente, é evidente que a peneira foi responsável pela distribuição. Esta é a situação enfatizada pela teoria sintética: se não há qualquer restrição à variação, então, a seleção natural é o mecanismo que explica a distribuição de características numa população e a direção de sua mudança ao longo do tempo.

Suponhamos, contudo, outra situação, na qual a torneira não está totalmente aberta. Neste caso, algumas esferas não poderão sair do reservatório. Peneiramos as esferas e perguntamos quem responde por sua distribuição. É evidente que, nesse caso, tanto a torneira quanto a peneira explicam a distribuição. Nessa situação, há restrições ao processo evolutivo e a distribuição das características variantes na população é enviesada por elas. Então, a direção da mudança na distribuição de características da população, por exemplo, de sua evolução, é influenciada tanto pela seleção quanto pelas características dos processos de desenvolvimento, que resultam em restrições.

A origem dos mais aptos

As explicações evolutivas sobre como surgiu a diversidade no mundo natural tiveram durante muito tempo um calcanhar-de-aquiles. A teoria da seleção natural é capaz de explicar por que uma população muda de composição, mas até recentemente sabíamos muito pouco sobre como surgiam as novas características de uma espécie, inclusive aquelas sobre as quais a seleção natural atua. Em particular, o surgimento de organismos com grandes modificações em relação aos seus ancestrais representava um imenso desafio aos evolucionistas. Nas últimas décadas, entretanto, a compreensão do processo de desenvolvimento e de sua regulação está mudando esse quadro.

Os organismos multicelulares são formados por grande número de tipos celulares especializados. Diferenças entre tipos celulares resultam de diferentes conjuntos de proteínas, codificadas por genes. Todas as células de um mesmo organismo contêm os mesmos genes, de modo que as diferenças entre tipos celulares resultam de diferenças na expressão desses genes: diferentes conjuntos de genes estão ligados em diferentes tipos celulares, levando à produção de diferentes proteínas e à diferenciação celular. Mas como a expressão dos genes é regulada? Isso ocorre através da ligação de certas proteínas a regiões regulatórias no DNA, tipicamente próximas dos genes. Essas regiões funcionam como “interruptores” e as proteínas que a elas se ligam podem ativar ou reprimir a expressão dos genes. A compreensão do desenvolvimento e de como ele evolui depende do entendimento da regulação gênica, que participa não apenas da diferenciação celular, mas também da morfogênese.

Sabemos hoje que um mesmo conjunto de genes, praticamente inalterado, está envolvido no desenvolvimento dos mais diversos animais, de moscas a humanos, de polvos a mariposas. O biólogo evolutivo do desenvolvimento Sean Carroll propôs uma metáfora interessante para tais genes: eles comporiam a “caixa de ferramentas genéticas” para o desenvolvimento. Como é possível fazer animais muito diferentes com base nas mesmas ferramentas? O segredo está na maneira como os genes são usados, na regulação da expressão gênica. Diferentes animais usam os mesmos genes em tempos e lugares diferentes no desenvolvimento, resultando em formas corporais também distintas. Isso é possível porque cada um dos genes envolvidos no processo de desenvolvimento pode ter vários interruptores diferentes. Isso permite que um mesmo gene seja usado em tempos e lugares distintos, porque conjuntos diferentes de proteínas capazes de acionar ou desligar os genes do desenvolvimento estão presentes em diferentes momentos e em diferentes tecidos em formação.

Um exemplo ajudará a entender esse mecanismo. Vertebrados diferem entre si na composição de sua coluna vertebral: alguns têm pescoços longos (o ganso, por exemplo), outros possuem pescoços curtos (o camundongo), enquanto outros nem possuem pescoço (as cobras, por exemplo, possuem muitas vértebras, mas elas são torácicas – com costelas – e não cervicais, características do pescoço). Estudos do desenvolvimento dos vertebrados revelaram que há um gene (chamado de Hoxc6), que é expresso na coluna vertebral. A fronteira de sua expressão na coluna sinaliza onde deverá ocorrer a transição entre vértebras cervicais e torácicas. Portanto, a origem de um plano corporal com um pescoço mais longo ou curto pode ser produzida pelo deslocamento da região em que o gene Hoxc6 é expresso. As cobras representam um caso extremo: a região de expressão do Hoxc6 foi tão deslocada anteriormente (em direção à cabeça) que nem há formação de vértebras cervicais: seu corpo longo resulta de perda do pescoço e aumento do tórax. É importante notar que o gene Hoxc6 é muito semelhante em cobras e gansos. O que muda é a região em que ele é expresso e isso ocorreu porque os interruptores que o regulam mudaram ao longo da evolução. Em cobras, o interruptor só é acionado nas vértebras perto da cabeça. Já em gansos, ele é expresso longe da cabeça e o pescoço se estende até a 22ª vértebra.

Esse exemplo ilustra o poder da evo-devo. Antes, a teoria sintética podia oferecer explicações para a evolução de novos planos corporais com base nas vantagens que eles traziam. Com a evo-devo, passamos a ter como explicar a origem das formas sobre as quais a seleção natural pode atuar. Dessa forma, fortalecemos a visão darwinista da evolução, ao construir uma teoria mais sólida sobre a origem de novas formas evolutivas. É imensamente satisfatório saber que temos modelos cada vez melhores para explicar como, a partir de um vertebrado ancestral, planos corporais tão diferentes quanto os de camundongos, gansos e cobras foram gerados. Mas, para alguns evolucionistas, a evo-devo também representa um desafio à visão tradicional da teoria sintética. Suas explicações sobre como são geradas as novidades evolutivas ajudam a compreender os rumos da própria mudança evolutiva. É como se, com a evo-devo, pudéssemos enxergar o funcionamento da torneira que usamos como exemplo, revelando que tipo de esferas (representando formas biológicas) ela produz. A origem de organismos de corpo alongado, como as cobras, passa a ser explicada não apenas pelas vantagens que esse plano corporal representa, mas também pela viabilidade de produzi-lo. Mais ainda, um aparente “salto” evolutivo, no qual uma nova forma de corpo surge, passa a ser explicável com base em mudanças genéticas bastante limitadas (envolvendo os “interruptores” genéticos).

Quando buscamos explicar a evolução de um grupo de organismos, é frequentemente necessário combinar processos evolutivos graduais, nos quais características vão tendo suas distribuições modificadas ao longo das gerações de uma população por seleção natural, com saltos morfológicos produzidos por alterações no desenvolvimento, em particular, na sua regulação. Neste último caso, podemos ter grandes mudanças da morfologia dos organismos, nas quais estruturas não mudam gradualmente, mas, ao contrário, uma estrutura se origina de outra através de uma transformação discreta e completa. Na era da evo-devo, teremos a oportunidade de reunir esses dois tipos de mecanismo – a seleção natural atuando sobre pequenas variações e grandes mudanças causadas por alterações no desenvolvimento – para explicar a diversidade de formas vivas.

Charbel Niño El-Hani é professor do Instituto de Biologia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e bolsista de produtividade em pesquisa
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


Diogo Meyer é professor do Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo (USP).

* Artigo originalmente publicado na revista Scientific American do Brasil - série História da Evolução, p. 76 - 85, 14 jun. 2007.

Para saber mais:

- Infinitas formas de grande beleza. Sean Carroll. Jorge Zahar. 2006.
- Evolução: o sentido da biologia. Diogo Meyer & Charbel Nino El-Hani. Unesp, 2005.
- Evolução. Mark Ridley. Artmed, 2006.
- From DNA to diversity: molecular genetics and the evolution of animal design. Sean Carrol, Jennifer Grenier & Scott Weatherbee. Malden-MA; Blackwell, 2004.