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Artigo
Genética e doença cerebrovascular
Por Marcondes C. França Jr.
10/06/2009

As doenças cerebrovasculares (DCV) contribuem de forma decisiva para a morbi-mortalidade em diversos países. No Brasil, representam a 3ª causa de morte e a principal fonte de incapacidade permanente em indivíduos adultos. As DCV podem ser classificadas em isquêmicas (DCVi) e hemorrágicas (DCVh). No primeiro grupo, incluímos os pacientes que apresentam sintomas neurológicos causados por falta de irrigação sanguínea, levando à destruição de determinada região do sistema nervoso central (SNC). Isso ocorre quando há obstrução de artérias do SNC devido à formação de um coágulo. As DCVh, por outro lado, ocorrem quando uma das artérias cerebrais rompe, causando extravasamento do sangue em determinada região. A hipertensão arterial mal controlada é a causa mais comum, mas também pode existir uma “fragilidade” anormal desses vasos, como por exemplo, nos aneurismas.

De modo geral, associamos a ideia de DCV a pessoas idosas portadoras dos clássicos fatores de risco cardiovascular. De fato, hipertensão arterial, diabetes mellitus, obesidade, tabagismo e dislipidemia elevam bastante o risco de DCV, sobretudo nas pessoas acima dos 60 anos. Entretanto, não é raro encontrarmos indivíduos vitimados por DCV nos quais não encontramos nenhum desses elementos. E, em alguns casos, observamos a recorrência da doença em diversos membros da mesma família.

Esses são indícios de que devem existir fatores de risco ainda não identificados, possivelmente de natureza genética, para DCV. Tal questionamento foi o ponto de partida para os estudos genéticos em DCV, que se avolumaram na última década, e trouxeram vários resultados interessantes.

Doenças genéticas como causa de DCV

As DCV podem afetar tanto indivíduos jovens quanto idosos. Os pacientes idosos representam a grande maioria dos casos (90%). Nessa população, foram identificados numerosos fatores de risco, alguns podendo ser modificados, enquanto outros, não. Obesidade, hipertensão arterial e tabagismo, por exemplo, aumentam muito o risco de DCV, mas podem ser modificados. Por outro lado, ser do sexo masculino não é passível de modificação. O risco elevado se deve ao comprometimento dos vasos cerebrais pela aterosclerose – uma doença crônica que leva à deposição de colesterol e ao comprometimento das artérias, culminando com o seu “entupimento”.

Os pacientes jovens, com idades entre 15 e 45 anos, correspondem a 10% de todos os casos de DCV. Nesse grupo etário, os fatores de risco cardiovasculares costumam estar ausentes e, na verdade, os mecanismos responsáveis pela DCV são heterogêneos. Algumas doenças genéticas são especialmente relevantes como causa de DCV entre adultos jovens. São doenças pouco frequentes, transmitidas ao longo das gerações dentro de uma mesma família, cuja manifestação pode ser exclusivamente a DCV. Essas doenças são causadas por anormalidades no material genético, o DNA, que repercutem, por exemplo, sobre a estrutura dos vasos sanguíneos ou na facilidade de coagulação do sangue dentro desses vasos. Em outras palavras, as pessoas portadoras desse tipo de anormalidade genética, ou mutação, têm seus vasos e/ou seu sangue mais propensos à formação de coágulos, ocasionando o desenvolvimento de DCV.

A anemia falciforme é uma boa ilustração do que expusemos acima. Trata-se de uma doença hereditária, característica de populações afro-descendentes e relativamente comum em determinadas regiões brasileiras. Ela é causada por uma mutação na hemoglobina, que é a molécula responsável pelo transporte do oxigênio nos glóbulos vermelhos do sangue (hemácias). Em virtude da mutação, as hemácias assumem uma forma aberrante, e vão se agregando dentro dos vasos, culminando com a oclusão destes e, consequentemente, a falta de irrigação sanguínea. Qualquer região do corpo pode ser afetada, mas os vasos cerebrais são tipicamente comprometidos e podem originar graves sequelas neurológicas. Embora não exista ainda tratamento curativo para essa doença, o uso de algumas medicações e transfusões sanguíneas regulares previne o surgimento de DCV, justificando a importância do diagnóstico precoce.

Outro exemplo de doença genética relacionada às DCVs em jovens é a síndrome de Marfan. Os pacientes afetados habitualmente têm alta estatura, com dedos das mãos e pés finos e alongados. Problemas cardíacos associados são comuns. A doença deve-se a mutações em uma proteína que compõe o revestimento externo dos vasos e do coração. Dessa forma, os portadores têm vasos frágeis, que podem romper ou ocluir após mínimos traumas, levando à DCV. Novamente, o reconhecimento rápido pode permitir algumas medidas de prevenção, inclusive com orientação para outros membros da mesma família.

A lista com outras doenças genéticas causadoras de DCV inclui pelo menos mais 10 enfermidades. Individualmente raras, constituem um grupo relevante, pois podem ser alvo de medidas preventivas e orientação familiar. Além disso, a descoberta dos genes e das mutações responsáveis por essas doenças avança nosso conhecimento acerca dos mecanismos por trás das DCVs e abre perspectivas para novas formas de tratamento.

DCV como doença genética

Ao contrário da população jovem, a contribuição da genética para as DCV nos pacientes idosos com fatores de risco cardiovascular parecia, até pouco tempo, irrelevante. Entretanto, pesquisas recentes têm mostrado exatamente o oposto.

Em medicina, uma boa maneira de investigar a contribuição genética na origem de determinada doença é o chamado estudo de pares de gêmeos. Nesse tipo de estudo, são selecionados pares de gêmeos idênticos (monozigóticos, com o mesmo material genético) e pares de gêmeos fraternos (dizigóticos, com material genético diferente). Todos os indivíduos são acompanhados ao longo de vários anos e, ao final de determinado período, comparamos a ocorrência da doença dentro de cada grupo. Se a doença em questão tiver forte componente genético, a ocorrência dela em um gêmeo idêntico implicará em alta chance de aparecimento também no outro irmão. Ao contrário, essa ocorrência pareada, ou concordância, deverá existir em proporção bem menor entre os pares de gêmeos fraternos.

Esse tipo de estudo realizado em pacientes idosos com DCV mostrou uma concordância de cinco a seis vezes maior entre os gêmeos idênticos na comparação com os gêmeos fraternos. Esse resultado é corroborado por outras pesquisas que mostram um risco 75% maior para DCV em pessoas com história familiar (em pacientes de 1º grau) de DCV. Comprovado o papel da genética na DCV do idoso, restava ainda esclarecer os mecanismos.

O material genético (DNA) de duas pessoas não-relacionadas é 99,5% idêntico. A diferença aparentemente pequena (0,5%), entretanto, é responsável pelas características físicas que nos tornam únicos. As diferentes variações do DNA que ocorrem nesse 0,5% são os chamados polimorfismos. Eles são diferentes das mutações que discutimos na seção anterior. A diferença fundamental é que mutações são anormalidades no DNA que levam à perda completa de função da proteína codificada, enquanto que os polimorfismos apenas mudam parcialmente a estrutura das proteínas. Na prática, a mutação causa sozinha o aparecimento de uma doença. O polimorfismo, por sua vez, pode aumentar o risco de aparecimento de determinada doença, mas ele isoladamente não a causa. É preciso que coexistam outros fatores, genéticos ou não, para que a doença se manifeste. Além disso, mutações são bem menos freqüentes que os polimorfismos em termos populacionais.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/avc/ar_marcondes/img1.jpg
Ilustração do processo normal de transcrição da informação genética contida no DNA em proteínas (A).
As alterações provocadas por mutações e polimorfismos estão representadas em (B) e (C), respectivamente.

Esses conceitos têm mudado o enfoque que dávamos a doenças classicamente consideradas não-genéticas, como a hipertensão arterial. Hoje, admite-se que essas enfermidades têm origem em maus hábitos de vida (dieta, sedentarismo, etc), mas determinados polimorfismos, quando presentes, também contribuem. Possivelmente vários polimorfismos atuam para uma mesma doença, mas a contribuição individual de cada um deles é baixa, da ordem de 1 a 5% do efeito final. Essas doenças são designadas como doenças poligênicas ou complexas.

Como exemplo, descobriu-se que um determinado polimorfismo no gene da enzima conversora da angiotensina aumenta em três vezes o risco de desenvolvimento de hipertensão arterial. Essa enzima é responsável pela produção de uma substância que contrai fortemente os vasos sanguíneos, elevando os níveis de pressão. Quando o polimorfismo está presente, a enzima passa a trabalhar “melhor” e isso ocasiona a produção de uma maior quantidade da substância vasoconstrictora, com tendência à hipertensão. De forma semelhante, tem-se descrito polimorfismos associados a doenças como diabetes mellitus e hipercolesterolemia.

A DCV comporta-se como uma doença poligênica. Identificaram-se polimorfismos em genes envolvidos com o controle da pressão arterial e da coagulação do sangue que ocasionavam aumento de 1,5 vezes no risco de DCV. Embora importantes, esses resultados apenas confirmam a importância da hipertensão arterial e das alterações de coagulação do sangue na origem das DCV. Ainda mais interessante foi a descoberta de genes envolvidos no processo inflamatório, cujos polimorfismos também elevam o risco de DCV. Até então, não considerávamos as DCVs como doenças de natureza inflamatória, mas diante desses resultados, abre-se, por exemplo, a perspectiva de terapia futura com medicações antiinflamatórias.

Como vimos, o risco individual associado a cada uma dessas variações genéticas é baixo. Entretanto, polimorfismos são comuns na população em geral, de modo que o impacto é significativo em termos coletivos. Isso justifica o esforço e custo de novos estudos com milhares de pacientes para descobrir outros genes e polimorfismos relacionados às DCVs. Em um futuro próximo, talvez possamos identificar cedo, através de exames de DNA, pessoas com alto risco para DCV, permitindo o uso de medidas agressivas de prevenção em tempo hábil.

Genética e o tratamento das DCV

Outro aspecto relevante da genética das DCVs é a escolha do tratamento. Polimorfismos em determinados genes podem interferir no efeito de certos medicamentos sobre o corpo humano. Isso explica, por exemplo, a eficácia diferente de uma mesma medicação em pessoas distintas. Esse é o objeto de estudo de uma nova área na genética chamada de farmacogenômica.

As drogas anticoagulantes são medicamentos que tornam o sangue menos viscoso, diminuindo a sua capacidade de coagulação. São um importante recurso para o tratamento de determinadas formas de DCV. Após serem ingeridas, essas drogas são metabolizadas e eliminadas do corpo, após algumas horas, por enzimas localizadas no fígado. Estudos recentes mostraram que pacientes portadores de certos polimorfismos nessas enzimas não respondem a esse tipo de terapia, pois a droga é eliminada muito rapidamente do organismo. Nesses indivíduos, o tratamento precisa ser feito com outro tipo de medicamento. Diante disso, a identificação precoce dos portadores do referido polimorfismo pode evitar retardo desnecessário e perigoso no início da terapia mais adequada.

A farmacogenômica aplicada ao tratamento das DCV está em fase inicial, mas já se pode vislumbrar a relevância de futuras descobertas. Exames de DNA poderão futuramente ajudar o neurologista a escolher a melhor forma de tratamento para cada perfil de paciente, aumentando a eficácia das medicações e diminuindo riscos de efeitos adversos.

Marcondes C. França Jr. é neurologista e doutor em neurogenética. Trabalha no Departamento de Neurologia, da Faculdade de Ciências Médicas, da Unicamp. E-mail: mcfrancajr@uol.com.br