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Artigo
Isquemia e hemorragia cerebral na infância
Por Maria Augusta Montenegro
e Carlos Eduardo Baccin
10/06/2009

Acidente cérebro vascular (AVC) na infância é uma entidade relativamente pouco frequente, contudo, suas consequências podem ser devastadoras. Ao contrário do que ocorre na população adulta, em que, frequentemente, AVC isquêmico está associado a diabetes, hipercolesterolemia, sedentarismo e hipertensão, na infância as etiologias do AVC são muito mais abrangentes. Neste artigo, abordaremos as peculiaridades do AVC na infância, considerando a sua epidemiologia, etiologia, apresentação clínica, diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Epidemiologia

Apesar de não haver estudos epidemiológicos sobre o assunto em nosso meio, estudos realizados ns América do Norte estimam que a incidência de AVC isquêmico e trombose de seio venoso na infância é de 3,3 para cada 100 mil pessoas. Desse número, o AVC isquêmico representa 75% dos casos e a trombose de seio venoso 25%. Na infância, o AVC isquêmico é mais frequente do que o AVC hemorrágico, mas a proporção de hemorragias é maior do que nos adultos.

Etiologia

As causas de AVC na infância são diversas (veja tabela abaixo). As causas mais comuns de AVC isquêmico são cardiopatia congênita, distúrbios hematológicos (estados pró-trombóticos e anemia falciforme) e infecção do sistema nervoso central (meningoencefalite). Ao contrário do que se observa na população adulta, a causa mais frequente de AVC hemorrágico na infância não é hipertensão. Anomalias estruturais vasculares são a causa mais comum de AVC hemorrágico na infância, sendo a mais frequente as malformações arteriovenosas. Sua ruptura pode causar hematoma intraparenquimatoso. A ruptura de aneurismas cerebrais é pouco frequente na infância. Além das etiologias vasculares, tumores cerebrais podem apresentar sangramento, o que também pode causar hematoma intraparenquimatoso. Crianças com disfunção hematológica (principalmente hemofilia ou em uso de anticoagulantes) podem apresentar sangramento intracraniano decorrentes de traumas leves.

Tabela 1 – Causas mais freqüentes de AVC na infância

AVC isquêmico

Cardiopatia congênita (principalmente as cianóticas)
Doenças reumáticas (lupus eritematoso sistêmico, poliarterite nodosa, etc)
Leucemia
Estados pró-trombóticos (deficiência de antitrombina III, mutação do fator V de Leiden, déficit de proteína C, déficit de proteína S, síndrome antifosfolipide, etc)
Síndromes genéticas (Williams, doença de Fabry, homocistinúria, etc)
Meningoencefalite
Angiopatia pós-varicela
Dissecção arterial
Moya-moya
Drogas ilícitas (cocaína, anfetaminas)
Anemia falciforme
Policitemia
Complicações perinatais

AVC hemorrágico

Malformação arteriovenosa
Fístula arteriovenosa
Aneurisma
Disfunção hematológica (hemofilia, plaquetopenia, uso de anticoagulante oral, etc)

Apresentação clínica

A apresentação clínica clássica do AVC na infância é similar à do adulto, ou seja, instalação aguda ou subaguda de déficit neurológico irreversível por mais de 24 horas. Entretanto, em algumas patologias (anemia falciforme, doença de moya-moya, vasculites associadas ao lupus eritematoso sistêmico, etc), não é incomum que o exame de ressonância magnética de crânio revele pequenas isquemias assintomáticas.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/avc/ar_montenegro/img1.jpg
A., 14 anos, sexo feminino. Múltiplos AVCs isquêmicos por lupus eritamatoso sistêmico.

Apesar de muitas isquemias assintomáticas não serem identificadas na fase aguda, provavelmente elas contribuem para a instalação de comprometimento cognitivo em casos onde essas lesões são múltiplas.

Outra característica particular da infância é a pobreza de sintomas clínicos no primeiro ano de vida. Pacientes com AVC perinatal extenso podem ser considerados como assintomáticos por vários meses, até que seja observado o estabelecimento de dominância manual antes de um ano de idade. Isso ocorre porque o padrão de movimentação voluntária normal só vai ser estabelecido após o desaparecimento da movimentação automática associada aos reflexos primitivos. Todo paciente com preferência por uma das mãos durante os primeiros meses de vida deve ser cuidadosamente avaliado por um neuropediatra.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/avc/ar_montenegro/img2.jpg
M., sexo feminino. Essa paciente apresentou como sintoma inicial o desenvolvimento de dominância manual à esquerda, desde seis meses de vida. O exame neurológico, aos dois anos de idade, mostrava hemipareia direita discretíssima e atraso de fala.

Ao contrário do que se observa no adulto com AVC, as crises epilépticas são achados frequentes em crianças com AVC. A experiência do nosso serviço mostra que 61,5% dos pacientes com AVC na infância apresentam pelo menos uma crise epiléptica, sendo que a grande maioria (91,7%) das crises se inicia na fase aguda, durante a instalação do quadro. É interessante ressaltar que, no grupo de pacientes estudados, não houve diferença da frequência de manifestação epiléptica conforme o tipo de AVC: isquêmico ou hemorrágico. Apesar do AVC ser uma entidade grave, na maioria das vezes, as crianças encontram-se estáveis; portanto, não se pode atribuir a maior ocorrência de manifestações epilépticas na infância à instabilidade clínica ou metabólica.

O diagnóstico de AVC em bebês é um desafio, pois nessa faixa etária, a semiologia pode ser pouco expressiva. Esse dado ressalta a importância das manifestações epilépticas no reconhecimento precoce do AVC na infância. Apesar da alta frequência de crises epilépticas durante a fase aguda do AVC na infância, apenas a minoria (12,5%) apresenta epilepsia subsequente.

Diagnóstico

O AVC deve ser incluído na lista de diagnóstico diferencial de todo paciente que apresente déficit neurológico agudo ou subagudo. Isso é relativamente simples após o primeiro ano de vida. Entretanto, um dos maiores desafios da neuropediatria é a identificação de déficit neurológico durante os primeiros meses de vida. Ou seja, durante o primeiro ano de vida, qualquer assimetria evidenciada no exame neurológico (mesmo que sutil) deve ser valorizada e investigada adequadamente.

O diagnóstico do AVC é feito através de exames de neuroimagem. Na fase aguda do AVC isquêmico, o exame de escolha é a ressonância magnética de crânio (principalmente a sequência difusão). Após 24 horas da instalação dos sintomas, a tomografia computadorizada de crânio já pode evidenciar a área de isquemia. No AVC hemorrágico, a tomografia computadorizada de crânio já pode evidenciar a área de sangramento imediatamente após a instalação dos sintomas.

Tratamento

A terapêutica do AVC na infância depende principalmente de sua etiologia. Patologias específicas devem ser abordadas individualmente: meningoencefalite (antibioticoterapia), anemia falciforme (transfusão sanguínea, hidroxiurea), doenças reumatológicas (imunossupressão), leucemia (quimioterapia), moya-moya (cirurgia), doença de Fabry (reposição enzimática), etc.

Nos casos de AVC hemorrágico, a necessidade de drenagem cirúrgica deve sempre ser avaliada, principalmente quando a hemorragia for em fossa posterior. A angiografia cerebral deve ser realizada caso outras modalidades de investigação menos invasivas não sejam suficientes para determinar a etiologia do quadro. Sempre que possível, o fator de risco para hemorragia deve ser corrigido (reposição de fatores de coagulação, cirurgia, embolização, etc). Apesar dos resultados promissores apresentados por diversos estudos sobre o uso de medicação fibrinolítica (tPA) em adultos com AVC isquêmico, ainda não há informação suficiente para que essas medicações sejam utilizadas na infância.

Prognóstico

O prognóstico do AVC é melhor em crianças do que em adultos. Isso se deve à maior capacidade de recuperação funcional, devido à plasticidade neuronal. Crianças abaixo de seis anos que sofreram um AVC acometendo a área da linguagem em hemisfério cerebral dominante provavelmente não apresentarão afasia (alteração na fala). A recuperação do déficit motor também é muito mais satisfatória na infância. Cerca de 50% dos pacientes com diagnóstico de paralisia cerebral durante o primeiro ano de vida evoluem com normalização do exame neurológico aos sete anos de idade.

Maria Augusta Montenegro (guga@fcm.unicamp.br) é neuropediatra, professora do Departamento de Neurologia, da Faculdade de Ciências Médicas, da Unicamp. Carlos Eduardo Baccin é médico radiologista do Clinical Fellow de Interventional Neuroradiology, do Massachusetts General Hospital, da Harvard Medical School, em Boston, nos Estados Unidos.