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Artigo
O direito à educação e o pleno exercício da cidadania
Por Nina Beatriz Stocco Ranieri
10/09/2009

Tanto no direito internacional quanto no brasileiro, o direito à educação apresenta algumas características jurídicas que o distinguem de outros direitos fundamentais.

Uma delas se encontra no plano individual, ao se traduzir em realização pessoal e corolário da dignidade humana e dos princípios de liberdade e igualdade. Outra, no plano coletivo, isto é, tem a ver com o ser humano inserido num determinado contexto social e político. Note-se que a capacidade da pessoa de participar da vida política e profissional, por sua vez, é um elemento comum aos dois planos em que se expressa.

Por isso é que, diferente dos demais direitos sociais, o direito à educação é compulsório (pelo menos nos primeiros níveis de ensino). Não se pergunta às pessoas, nessa fase, se desejam exercê-lo ou não; por isso, é gratuito e deve ser universalizado. E, por tal razão, estabelecem-se as obrigações correlatas dos demais sujeitos passivos do direito à educação – o Estado (que deve promovê-lo, protegê-lo e garanti-lo), a família (que deve oferecer o acesso à educação), e a sociedade (que o financia) –, traduzidas em deveres, também, fundamentais. No direito brasileiro, a educação fundamental é direito subjetivo público, assegurado, inclusive, a todos que a ele não tiveram acesso na idade própria (CF, Art. 208, I e § 1º).

Em verdade, o direito à educação propicia a adultos e crianças marginalizados a integração na comunidade, a emancipação feminina e a proteção contra a exploração sexual e do trabalho das crianças. Permite, ainda, a propagação da democracia, dos direitos humanos e da defesa do meio ambiente, valores centrais no mundo contemporâneo. Por isso, o pleno exercício do direito à educação e suas repercussões beneficiam, reciprocamente, o indivíduo e a coletividade, promovendo tanto o interesse particular quanto o público, que assim se fundem. Como, também, os interesses locais, regionais e nacionais.

O Estado, no entanto, como sociedade política, tem expectativas em relação aos titulares de tais direitos, que, nesse sentido, são também sujeitos passivos do direito à educação. Tem, para com eles, exigências com vistas ao exercício da cidadania, traduzidas em participação política e contribuição individual e coletiva para a construção dos objetivos nacionais. Assim, o direito à educação, corolário da liberdade assegurada pelos Estados constitucionais democráticos, se expressa como autonomia moral, mas também como autorresponsabilidade na atuação social e política, já que os indivíduos não podem se considerar desligados ou displicentes em relação aos valores que fundamentam o regime jurídico que lhes assegura os próprios direitos.

Além do direito à educação – que consiste, sobretudo, em direito a prestações positivas materiais, de custo social –, identifica-se no direito internacional e no brasileiro os chamados “direitos na educação”, ramificações ou desdobramentos daquele primeiro. Tais direitos buscam, prioritariamente, defender as liberdades no campo da educação, como a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; a gestão democrática do ensino público; o ensino religioso facultativo; a autonomia universitária etc. São direitos de natureza adjetiva, que se realizam graças a abstenções, e que são submetidos ao regime das liberdades e garantias, de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Incluem-se, ainda, as exigências de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; o ensino fundamental na língua materna das diversas comunidades indígenas; atendimento educacional especializado para portadores de deficiências; oferta de ensino noturno; atendimento ao educando no ensino fundamental, dentre outros previstos na legislação brasileira. São essencialmente direitos de promoção e proteção, realizados mediante ações positivas. Em resumo, podemos considerar o direito à educação como o gênero do qual os demais direitos educacionais são ramificações.

A perspectiva da dignidade humana

É importante lembrar que, até o final do séc. XVIII, ainda que a educação fosse valorizada como meio de formação do cidadão, ela não foi considerada um direito. Data de então, sem dúvida, uma modulação no desenvolvimento da educação, que alterou o curso da sua trajetória histórica em benefício da participação política. No entanto, até o final do século XIX, embora o exercício dos direitos de primeira geração tivesse se ampliado, a educação produziu pouco ou nenhum impacto na diminuição da desigualdade social.

Os direitos civis davam poderes legais cujo exercício era prejudicado por preconceitos de classe e exclusão social. Ao mesmo tempo, os direitos políticos ofereciam poderes teóricos, para os quais – além de determinados requisitos de gênero, escolaridade e renda – seu exercício exigia organização e conhecimento das funções de governo. Os direitos sociais, por sua vez, além de muito reduzidos, não serviam à afirmação da cidadania. T. H. Marshall, aliás, lembra que “o objetivo comum do esforço institucional e voluntário era mitigar o incômodo da pobreza, sem alterar o padrão de desigualdade, do qual a pobreza era a consequência mais, obviamente, desagradável”.

O mesmo aconteceu no Brasil. O ensino público, aqui, não foi entendido como algo benéfico para o indivíduo ou a coletividade, além do seu caráter utilitário imediato, marcado pelas conveniências de momento de nossa cultura católica, agrícola e escravocrata. Nos tempos coloniais, a educação foi oferecida sem plano de conjunto ou articulação, por iniciativa da Companhia de Jesus (até sua expulsão, em 1759), que atuou como colaboradora do poder régio para a obra da catequese e da instrução. A primeira escola oficial do Brasil, aliás, foi o Colégio da Bahia, criado em 1564 pela Companhia de Jesus. A instituição era mantida, como os demais colégios que ela dirigia, por um sistema de taxas estipulado pela corte, que incidia sobre todas as utilidades taxáveis da colônia. De modo geral, os jesuítas preocuparam-se com um projeto humanista, que pouco tinha de prático ou tecnológico, mas que manteve uma rede de colégios dotada de docentes bem preparados e de boas bibliotecas.

Quando o país se tornou independente, praticamente toda a sua população era analfabeta. Foi Pedro I quem introduziu o tema da instrução pública na Assembléia Constituinte de 1823, destacando a necessidade de criação de uma legislação especial, editada em 1827, sob inspiração da lei votada pelas Cortes Constituintes de Portugal, para diminuir o controle da coroa sobre o ensino privado.

Se a república, por sua própria natureza, pregava o reconhecimento ampliado da cidadania – pela abolição da escravatura ou pela extensão do direito de voto (ainda não extensivo às mulheres, aos religiosos, aos analfabetos e aos conscritos) –, pouco ou quase nada fez pela educação pública. Manteve a descentralização do ensino primário para os estados, inclusive, em relação à sua obrigatoriedade.

Foi apenas com a Constituição Federal de 1934 que a educação adquiriu a natureza de direito social e dever do Estado, garantido a todos, sob a influência da ampliação dos direitos sociais e dos debates e iniciativas educacionais promovidos nos anos anteriores pelos estados. Tais iniciativas tiveram como patronos homens como Sampaio Dória, em São Paulo, Lourenço Filho no Ceará, Anísio Teixeira na Bahia e Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, entre outros.

No âmbito internacional, destaque especial deve ser dada à influência da Constituição de Weimar (1919), cujo regime de direitos fundamentais – reconhecendo, ao lado das liberdades públicas tradicionais, os direitos sociais de proteção à família, à educação e ao trabalho – assinala a passagem do Estado liberal para o Estado social de direito. A identificação do direito à educação gratuita (primária, pelos menos), como direito individual e social, será mantida pelas constituições posteriores, a despeito dos retrocessos em sua proteção na vigência da Constituição de 1937, na qual a gratuidade não foi universalizada, mas condicionada ao dever de solidariedade, que os mais abastados tinham em relação aos economicamente menos contemplados.

No entanto, o grande ponto de inflexão no acatamento aos direitos humanos e, com esses, ao direito à educação, acontece logo após o final da Segunda Guerra Mundial, contemporaneamente à criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1947, e à aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948.

Como consequência, ainda que a Constituição Federal do Brasil, de 1946, tenha mantido a natureza jurídica individual e social do direito à educação, e adotado inúmeras medidas para ampliação do acesso ao ensino primário, o fato é que os direitos sociais, e em particular a educação pública, pouco avançaram em benefício da cidadania; apesar da ampliação dos direitos políticos, em ambiente democrático, e a retomada de diversos preceitos da Constituição de 1934.

Ao longo de décadas, entre 1940 a 1980, a frequência escolar da população em idade escolar aumentou de 15,1% para cerca de 47%. Sendo que, após a Segunda Guerra Mundial, o ritmo de crescimento da educação ficou acima do da Argentina, Chile e Uruguai, embora não tenha alcançado resultados quantitativos favoráveis.

Hoje, a ampliação da natureza e do conteúdo do direito à educação no direito internacional torna-se clara, em primeiro lugar, devido à sua vinculação aos objetivos das Nações Unidas, sob triplo fundamento: o da promoção dos direitos humanos, o da promoção da paz e o da afirmação de sociedades livres e democráticas. Em segundo lugar, a educação é vinculada à dignidade humana, dado o seu caráter emancipador, voltado ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento dos direitos e das liberdades fundamentais, ficando evidente que promover um é beneficiar o outro, e vice-versa, como já indiretamente enunciado no Art. 1º da DUDH:

“Art. I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. 

O valor da educação, no contexto das Nações Unidas, não é neutro: volta-se à promoção dos direitos e das liberdades próprias do Estado democrático, em cuja base se encontra a dignidade humana.

Nina Beatriz Stocco Ranieri é professora doutora do Departamento de Direito do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação, da mesma faculdade. Autora de diversas obras relativas ao direito à educação e ao direito educacional, é membro do Conselho Estadual de Educação. Atualmente é secretária adjunta da Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo.