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Reportagem
Direito à educação: quebrando o isolamento
Por Alessandra Pancetti e Leonor Assad
10/09/2009

Na sociedade brasileira atual, o tema do direito à educação é de grande interesse. As constantes reivindicações pela necessidade de mais escolas, de condições de estudo, de melhor formação dos professores, entre outras, principalmente nas regiões menos favorecidas, nos bairros pobres das cidades e mais afastados dos grandes centros, refletem o amadurecimento da população com relação à formação educacional. Mesmo quando essas metas não parecem ser o ponto forte das políticas públicas, percebe-se que a sociedade começa, lentamente, a considerar educação um direito fundamental de todos. Mais do que o simples acesso à educação de qualidade, intensifica-se a exigência de uma educação diferenciada, que atenda às peculiaridades dos diversos grupos sociais.

Em um estudo feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2001 mostram que, na faixa de 10 a 14 anos, 95% das crianças da área rural e 97% da área urbana encontram-se na escola. Por outro lado, o estudo assinala que, enquanto na área urbana 50% das crianças que frequentam a escola estão com atraso escolar, na área rural esse contingente atinge 72% dos alunos, revelando que o atraso escolar é cruel e discriminador. O Brasil é um país de grandes desigualdades sociais e o direito à educação, infelizmente, não é assegurado de forma igualitária a todos os cidadãos. Se nos preocupamos com as regiões menos favorecidas de nossas cidades, o que dizer então das populações que se localizam nas regiões mais isoladas do imenso território nacional? Como fazer para que essas pessoas também tenham garantido o seu direito constitucional à educação?

Distribuídos em sítios, fazendas, acampamentos, assentamentos, cooperativas, quilombolas, aldeias indígenas e pequenos vilarejos, grande parte da população das áreas rurais brasileiras não tem por perto nenhuma escola do bairro. Por outro lado, segundo a pesquisadora Mônica Castagna Molina, professora da Universidade de Brasília (UnB), práticas e pesquisas no meio rural revelam que “as comunidades camponesas creditam imenso valor à educação escolar”. Ela destaca uma pesquisa recente, coordenada pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), que aponta que “84% das escolas existentes nesses territórios rurais pesquisados foram criadas após a implantação dos assentamentos, como resultante da luta e das reivindicações das famílias para garantir escolarização de seus filhos”. Para Molina, a reivindicação do direito à educação resulta da conscientização dessas populações, através da mobilização de organizações sociais e sindicais dos trabalhadores do campo, iniciada pelo Movimento Nacional de Educação do Campo. Esse movimento foi precursor na disputa, junto ao governo, pelo direito à educação no campo, e gerou programas como: o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera/Incra); o Saberes da Terra; ou ainda o Residência Agrária (PRAg/Incra).

Apesar de toda articulação atual, a educação das populações camponesas ainda é avaliada como extremamente precária. Para Mônica Molina, o maior desafio a ser enfrentado é a ausência histórica do Estado na oferta do direito à educação no meio rural. Dessa forma, existe “um abismo entre a situação educacional do campo e da cidade”. E acrescenta, “a realidade do ensino na escola rural brasileira é a de escolas que não possuem biblioteca (75%), laboratório de ciências (98%), acesso à internet (92%), laboratório de informática (90%) e nem energia elétrica (23%)”. Essa ausência reflete na qualidade da oferta desses serviços e dificulta o acesso à educação escolar no campo. Segundo pesquisadora da UnB, de 2,3 vagas existentes nos anos iniciais do ensino fundamental, apenas uma é oferecida para os anos finais. Ela aponta que “esse mesmo raciocínio pode ser feito com relação ao ensino médio, quando a situação é mais grave, com seis vagas nos anos finais do ensino fundamental para uma vaga no ensino médio”. Como resultado, temos uma taxa de analfabetismo de 23,3% no campo, três vezes maior do que o das áreas urbanas, de 7,6%. Paralelamente, a escolaridade média das pessoas com mais de 15 anos é de 4,5 anos, comparados aos 7,8 anos no meio urbano. Nas palavras de Mônica Molina, “a efetiva promoção da equidade educacional com garantia de acesso e permanência com sucesso e qualidade, em todos os níveis de ensino, para as populações do campo, requer a adoção de políticas e programas que sejam capazes de traduzir, na prática da ação do Estado, os princípios da igualdade formal e material presentes na Constituição Federal Brasileira de 1988”. Dessa forma, é possível diminuir a grande diferença entre a abrangência do sistema de ensino rural e urbano e proporcionar a todos direito igualitário à educação.

E o que dizer dos cidadãos brasileiros mais distantes das escolas urbanas não apenas geograficamente? O que dizer da educação para populações que, muitas vezes, permanecem isoladas por fatores culturais e históricos, que datam da ocupação das terras brasileiras pelo colonizador europeu? Segundo Iara Tatiana Bonin, pesquisadora e professora da Universidade Luterana do Brasil, existem hoje no Brasil duzentos e quarenta povos indígenas diferentes, falando aproximadamente 180 línguas. Esses indígenas, pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, somavam 730 mil pessoas, e devem ter chegado a um milhão este ano. Para Iara Bonin, educação de qualidade “ para alguns povos isolados é aquela que se pratica em suas culturas e tradições”. A escola, para esses grupos, pode oferecer formas de acesso a alguns conhecimentos necessários, de modo que essas populações se relacionem com grupos de seu interesse, como comerciantes, instituições civis ou até mesmo órgãos governamentais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai). Iara Bonin enfatiza que a população indígena brasileira vive em contextos sociais e culturais bastante distintos. Alguns grupos tiveram contato permanente com os conquistadores europeus desde o início da colonização, enquanto que outros grupos permanecem praticamente isolados até os dias de hoje. Segundo Bonin, para que a educação indígena seja específica e de qualidade, as escolas indígenas devem ter seu próprio sistema de regras e ordenamento jurídico, além de autonomia administrativa e financeira. Assim, os povos poderiam organizar um sistema de educação compatível com suas tradições e costumes, como previsto na Constituição Federal Brasileira. Ela considera que uma dotação orçamentária específica seja necessária para o funcionamento dessas escolas, que garanta formação e capacitação dos professores indígenas.

Embora a Constituição de 1988 tenha garantido o direito à educação para as populações indígenas, durante nossa história o respeito às diferenças e tradições culturais dos povos indígenas nem sempre foram levados em consideração. Na avaliação de Gersem Baniwa, coordenador geral de educação escolar indígena, “historicamente, o governo não teve a preocupação de respeitar as culturas locais, mas essa postura vem sendo modificada nos últimos vinte anos”. Por conta desse atraso, parcerias de responsabilidade partilhada entre governo e comunidades indígenas demoram um pouco para se desenvolver plenamente. Baniwa acredita que o Estado brasileiro tem que estar mais presente, pois “muitas políticas são pensadas para cidadãos com perfil diferente dos indígenas, não são pensadas para a sua realidade”. Para ele, o programa Territórios Etnoculturais, da Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) tem procurado olhar para essas realidades, mas é um processo a médio prazo. Ele enfatiza, ainda, que hoje, por exemplo, 95% dos professores nas escolas indígenas são indígenas, ou seja, os professores não-indígenas, aos poucos, vão sendo substituídos por professores indígenas. O que explicita que existe um esforço do Estado, ao longo dos últimos governos, em consolidar as políticas e ações criadas.

Iara Bonin também concorda que a legislação existente hoje no Brasil, que visa garantir o respeito às formas de educação, tradição, crenças, línguas e costumes indígenas, é bastante avançada. Entretanto, ela enfatiza que há “ desrespeito a esses princípios legais. No cotidiano da maioria das escolas indígenas, constata-se o descaso, o abandono e falta de investimentos governamentais”. Bonin responsabiliza parte do problema à falta de preparo profissional nas administrações locais e regionais dos sistemas públicos, e à atitude autoritária de secretarias de educação municipais e estaduais nas relações com as escolas indígenas.

Os esforços para o estabelecimento de políticas educacionais, que levem em conta as diferentes culturas, como as indígenas, por exemplo, têm se mostrado um exercício lento e, por vezes, frustrante para as populações que esperam ser atendidas. Iara Bonin acredita que “os povos indígenas têm o direito de participar não apenas exercendo o controle social, como também na definição, organização e estruturação das políticas educacionais”, para que essas reflitam os seus “interesses, necessidades e projetos de futuro”. Esse deveria ser, na opinião de Bonin, o caráter da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, que será realizada em outubro deste ano. “Espera-se que seja um amplo fórum de discussões, avaliações e deliberações sobre as políticas públicas de atenção diferenciada à educação”, que possibilitem “aos povos indígenas o direito de serem protagonistas na formulação de novas propostas”.

Segundo os entrevistados, o problema educacional para as comunidades das zonas rurais, seja para filhos de agricultores, de assentados da reforma agrária ou de indígenas, persiste e está longe de se extinguir. Com efeito, um estudo elaborado para o Inep/MEC, e coordenado por Alvana Maria Bof, aponta que “a maior parte dos municípios brasileiros não desenvolve ações específicas em relação à provisão educacional nas zonas rurais”, seja para filhos de agricultores, de assentados da reforma agrária ou de indígenas. Destaca-se no estudo que, para além das cidades, persiste a estratégia da nucleação, que consiste na desativação de escolas rurais menores e na criação de escolas-polo, com o transporte das crianças para essa escola, ou, simplesmente, o transporte das crianças que residem nas áreas rurais para escolas existentes no núcleo urbano. Além de problemas de ordem logística e financeira, essa estratégia parece gerar também problemas pedagógicos, particularmente no que concerne à qualidade da escola e do ensino e às relações do currículo com valores culturais das comunidades envolvidas.

Há consenso, entre os entrevistados, de que é necessário conjugar esforços dos governos federal, estaduais e municipais e da sociedade para desenvolver estratégias educacionais adequadas, para reverter a situação de carência e iniquidade existente em relação à educação de crianças e jovens que residem em áreas isoladas do Brasil.