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Artigo
Construindo um projeto com as crianças
Por Dirce Maria F. Pranzetti, Maria Cecília Toloza e Beatriz Magon P. de Cerqueira
10/12/2005

Crianças que moram nas ruas, freqüentam museus de ciência?
Crianças que não freqüentam escolas freqüentam, museus de ciência?
Crianças que moram em bairros com maior índice de exclusão social, freqüentam museus de ciência?
Escutando crianças e jovens , em sua maioria moradores de rua, sobre quais eram seus interesses em um centro de ciências, chegou-se a respostas inusitadas e que demonstraram potencial para a construção de um projeto educacional que reforçasse e motivasse sua freqüência e permanência.

Contexto

Em 1995, a Estação Ciência da Universidade de São Paulo, situada no bairro da Lapa em São Paulo, já detectava a presença de crianças e jovens, aparentemente moradores de rua, mexendo em experimentos e observando de perto a fala dos monitores. Alguns inclusive, bem conhecidos dos seguranças e monitores, apareciam todos os dias, contavam suas histórias e até intervinham nas explicações que a monitoria dava aos escolares.

Esse contexto criou a oportunidade de se procurar compreender o que buscavam no espaço do centro de ciências e em como ampliar esse interesse por aprender.

A proposta então foi a de criar um diálogo com esse público a partir da experiência de duas educadoras sociais, convidadas a atuar diretamente com as crianças e jovens, iniciando-se um processo de escuta da real motivação da vinda e permanência.

Andando pela Estação Ciência e conversando com as crianças, detectou-se que, para elas, o espaço significava: espaço de proteção – dos perigos e conflitos da rua –, espaço de acolhida – alguns monitores eram considerados amigos que ouviam suas histórias de vida –, espaço de aprendizado e curiosidade – “venho aqui para conhecer as novidades científicas, para mexer em computadores, para levar choque e arrepiar o cabelo, para saber como as coisas funcionam”.

As crianças e jovens que conversaram nesses primeiros dias com as educadoras, moravam nas ruas, perambulavam pelas imediações e encontravam-se, em sua maioria, fora do sistema formal de ensino.

Construção

Uma mesa redonda, lápis de cor, canetas coloridas, papel para desenhar e alguns livros infantis, colocada estrategicamente junto à Plataforma Informática criou um espaço de referência. E eles vinham, contavam para outros e traziam amigos, irmãos de rua, amigos de brincadeiras, aventuras e malandragens nas ruas.

Fotos: Divulgação / Projeto Clicar

Em 1995, havia apenas três computadores à disposição de todo o público visitante da Estação Ciência. A internet estava dando seus primeiros passos fora do âmbito da universidade. Poucas escolas e apenas as particulares tinham computadores para uso dos alunos. A mesa servia como espaço de conversa e espera pela vez nos computadores. Sempre que chegavam crianças de escola, eles tinham que "dar a vez", e assim iam se formando grupos de crianças que, na espera e, acompanhados pelas educadoras e com apoio de alguns monitores, preenchiam o tempo produzindo lindos desenhos, conversando sobre a vida das ruas, trocando informações sobre os abrigos e lugares para comer, indo à área de física e matemática, voltando com idéias de construir pipa, balão, pedindo para fazer contas ("vamos brincar de escola"), emprestando livros na livraria da lanchonete.

Isso foi só o começo. Depois vieram mais computadores, a possibilidade de acesso sem fila de espera com as escolas, o aprendizado com jogos e o uso do computador como espaço de guarda da memória. Sempre que vinham deixavam registrada sua passagem, seu olhar das coisas do mundo da rua, das problemáticas com familiares, o desejo de voltar a estudar e o entendimento das coisas que viam pela Estação.

Assim, o Projeto Clicar foi construído tendo como foco a criação de um espaço educativo integrado à proposta da Estação Ciência, atendendo aos interesses dessas crianças e jovens. Incentivando a participação espontânea, não exigindo matrícula prévia e freqüência, privilegiando um atendimento individual realizado por educadores e estudantes universitários e estimulando o acesso a novos conhecimentos de forma lúdica e interativa.

Atualmente o Clicar é um programa de ações de educação e cultura digital voltado para a inclusão social de crianças e adolescentes com idades entre 6 e 17 anos que moram ou permanecem a maior parte do dia nas ruas e que freqüentam a Estação Ciência.

Tem como princípio o desafio de resgatar o direito à educação e de propor acesso a computadores e internet a um público totalmente excluído dessas possibilidades, oferecendo atividades de arte, leitura e escrita, jogos, teatro, animação digital, fotografia e vídeo digital. Em um espaço especialmente organizado para esse público, contendo computadores, impressoras, webcam, biblioteca, mesas e materiais para jogar, desenhar, pintar, brincar... aprender, estudar, realizar tarefas escolares, ou somente conversar.

Já participaram das atividades mais de 2.500 crianças e jovens em situação de risco social e pessoal desde janeiro de 1996.

Reconstruindo os caminhos até o centro de ciências

Os dados pessoais são obtidos a partir de conversas cotidianas com as crianças e jovens, sem intenção de questionar ou desenvolver uma entrevista formal, e que funcionam como meio de contato inicial para um aprofundamento na relação educador-criança, com o sentido de criar condições de desenvolvimento de atividades educativas dirigidas e significativas.

Além dos dados que englobam idade, sexo, escolaridade, situação de moradia, relação com família e parentes, situação de trabalho, busca-se conhecer a origem das crianças e jovens. Origem entendida como local de onde eles vêm, de onde partem para vir à Estação Ciência.

Ao analisar anualmente os dados gerais pretende-se, além de descrever o perfil dos participantes do Clicar e, portanto, de um segmento expressivo de visitantes da Estação Ciência, compreender a vinda cotidiana e o retorno constante das crianças e jovens.

Além de indicar que há um engajamento das crianças e jovens às atividades ofertadas pelo Clicar, esse levantamento permite justificar novas ações e mesmo contribuir para o planejamento e oferta de atividades voltadas para segmentos populacionais em situações sociais desfavoráveis.

Uma das questões que se colocam e surpreendem é que essas crianças vêm de bairros longínquos e de cidades circunvizinhas até o centro de ciências. Na maioria das vezes são crianças em situação social desfavorável, morando em locais sem oferta de atividades culturais e de lazer e que, ao circular pela cidade, buscam, além de elementos que vão contribuir para a sobrevivência (espaços de trabalho, "bicos", mendicância), espaços para brincar, de lazer, só para passar o tempo fora de casa, da escola, para construir amizades, vínculos.

Nesse sentido, o centro de ciências pode estar diretamente relacionado à integração desse espaço no circuito cotidiano de circulação pela cidade, criando-se assim uma perspectiva abrangente e significativa quando se tem como meta desenvolver ações e processos educacionais de inserção social e de popularização da ciência.
Em 2002, refizemos, tendo como referência o Mapa de Exclusão/Inclusão Social construído por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o caminho pela cidade que fazem algumas das crianças, adolescentes e jovens adultos, que freqüentam espontaneamente o Projeto Clicar. Esse recurso possibilitou indicar a situação social dos distritos de origem dessas crianças e jovens.

O Mapa é elaborado por um grupo de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, desde 1998 e procura interpretar a cidade de São Paulo utilizando 47 indicadores sociais. Dentre os indicadores encontram-se: distribuição de renda, mortalidade infantil, mortalidade de jovens com idade entre 15 e 24 anos, oferta de serviços públicos como creche e educação infantil, serviços de saúde, água encanada, transporte, escolas.

Ao transpormos e incluirmos os dados de origem das crianças e jovens participantes do Clicar e, portanto, freqüentadores assíduos da Estação Ciência, no Mapa de Exclusão/Inclusão Social da cidade de São Paulo, constatamos que a maioria deles advêm das regiões de maior exclusão social, dos distritos mais miseráveis da cidade.

Uma hipótese é que o centro de ciências, por sua localização, entrada gratuita (até janeiro de 2005) e oferta de atividades significativas, pode estar inserido no contexto de circulação de crianças e jovens que vêm de distritos da zona Norte e Oeste da cidade, e de cidades circunvizinhas ou que compõem a Grande São Paulo (Carapicuíba, Osasco, Itapevi, Barueri, entre outras).

O fato de crianças e jovens atravessarem grandes distâncias, da periferia absoluta da cidade, dos bolsões de miséria até um centro de ciências, cria a oportunidade de potencializar esse espaço para que funcione como uma ponte real entre eqüidade e educação, oportunidade e aprendizado significativos, desejo e concretização de desejos, atenção, respeito e escuta na relação com um público que demonstra ter descoberto o prazer de aprender e de descobrir suas potencialidades pessoais e seu direito à cidadania.

Leia também artigo de Ernst Hamburger sobre a Estação Ciência.

Dirce Maria F. Pranzetti, Maria Cecília Toloza e Beatriz Magon P. de Cerqueira são pesquisadoras ligadas ao Projeto Clicar.

Referências Bibliográficas

1.Huergo, José A. La popularización de la Ciencia y la Tecnología: Interpelaciones desde la comunicación, palestra proferida in Seminario Latinoamericano Estrategias para la Formación de Popularizadores en Ciencia y Tecnología, RED-POP Cono Sur La Plata, maio de 2001

2.Spozati, Aldaíza (coord.) Mapa da exclusão/inclusão social da cidade de São Paulo. São Paulo, Editora da PUC-SP, 1996.

3. Massarani, L, Castro Moreira, I. de, Brito, F. (org.) Ciência e público caminhos da divulgação científica no Brasil. Casa da Ciência, Editora da UFRJ, 2002,
Rio de Janeiro

4. Santos, Boaventura de Souza. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Palestra proferida no VII Congresso Brasileiro de Sociologia, Rio de Janeiro, 1995

5. Relatório Anual Projeto Clicar/ Estação Ciência USP, São Paulo, 2000/ 2001/2003/2004.

6. Santos, Milton. O espaço do cidadão. Editora Nobel, São Paulo, 1996.

7. Oliveira, Claudia M. A. S. O ambiente urbano e a formação da criança , tese de doutorado a faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, volume 1 e 2, São Paulo, 2002.

8. Cerqueira, Beatriz Magon P. O lúdico e o inesperado para as crianças do Projeto Clicar, trabalho de conclusão de curso (bacharelado em Geografia), FFLCH-USP, São Paulo, dezembro 2003.