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Entre o universal e o relativo
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A lição de sabedoria das vacas loucas
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Entre o claro e o escuro: Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss1
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O estruturalismo de Lévi-Strauss e o sistema de castas indiano
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Claude Lévi-Strauss, Michel Pêcheux e o estruturalismo
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Reportagem
Entre o universal e o relativo
Por Danilo Albergaria
10/12/2009

(Este texto foi originalmente publicado em maio deste ano, antes de Lévi-Strauss falecer)

Claude Lévi-Strauss está vivo? A resposta ao lado concreto desta pergunta é óbvia e simples: sim, Lévi-Strauss está vivo, prestes a completar 101 anos de vida, isolado do mundo, em Paris, por opção própria. O lado metafórico, ou seja, se as ideias, conceitos e teorias criados ao longo de décadas de pesquisa do célebre antropólogo francês estão ainda em jogo, se são válidas e se fazem ouvir ou ajudam a moldar o pensamento de outros pesquisadores, isto é um pouco mais complicado. Talvez fosse melhor indagar se o pensamento de Lévi-Strauss está ou não superado, mas isso também não ajuda muito. Se levarmos em consideração a analogia do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a de que o termo superado só tem sentido ao orientar desfiles de moda, por exemplo, e não o mundo das ideias, então Lévi-Strauss está longe de ser considerado morto, ou melhor, superado. Se, por outro lado, quisermos saber se seu estruturalismo ainda é um modelo que orienta pesquisas, então deve-se dizer: Lévi-Strauss está superado. Porém, se a resposta varia de acordo com o sentido atribuído à palavra, é fato que o estruturalismo de Lévi-Strauss marcou profundamente o pensamento do século XX e – o que é do interesse desta reportagem – influenciou decisivamente o debate sobre a ciência e o seu valor nas sociedades modernas.

Para entender o estruturalismo de Lévi-Strauss, primeiro, cabe uma breve olhada na história da antropologia. Embora o pensamento antropológico possa ser vagamente caracterizado como uma maneira de o ser humano pensar sobre si mesmo e sobre o outro – cujos exemplos, portanto, podem remontar, pelo menos, à antiguidade clássica – é apenas no século XIX que a antropologia surge e se institucionaliza como disciplina científica. Nesse período de afirmação acadêmica, a Europa já havia acumulado uma enorme quantidade de literatura etnográfica. Desde o século XVI, cartas e relatos de exploradores e conquistadores, missionários e viajantes, especialmente consagradas à terra e aos habitantes do Novo Mundo, fermentaram a imaginação erudita sobre aqueles outros homens e suas sociedades tão diferentes e estranhas ao mundo europeu.

Até o século XIX, o debate europeu sobre os ameríndios, sua constituição física, suas instituições, hábitos e crenças, foi moldado fundamentalmente a partir desses relatos inevitavelmente eurocêntricos. As descrições dos chamados selvagens suscitaram toda sorte de opiniões, frequentemente negativas que, quando muito, inspiravam a complacência do “homem civilizado” perante a “inocência” e “ingenuidade” dos indígenas. Surgia uma ideologia da conquista, em que o esforço ocidental para submeter as populações ameríndias era justificado pelas acusações de incipiência de suas organizações sociais, de primitivismo de suas religiões, leis e técnicas, de inferioridade física e mental.

A antropologia acadêmica surge como forma de sistematização científica do conhecimento sobre os seres humanos que se desenvolveram fora da sociedade ocidental. Suas primeiras produções sofreram grande influência do evolucionismo que permeava o pensamento ocidental desde os ilustrados do século XVIII. A ideia de que as sociedades humanas passam por estágios evolutivos alinhavava o sentido das observações antropológicas. Se as civilizações se desenvolvem de acordo com um mesmo princípio evolutivo, se devem trilhar um mesmo caminho na escala evolutiva, então o ápice dessa evolução era, pois, a civilização ocidental, que apontava o caminho correto para melhor – pensavam os ocidentais. Os ameríndios, os polinésios e os aborígenes australianos, como descritos na etnografia, estariam em estágios anteriores de civilização. O diálogo dessas concepções com várias formas de darwinismo social deu continuidade à tendência ideológica da justificativa da conquista e da submissão dos chamados povos primitivos ao projeto civilizador europeu.

Essa tendência passou a se desmantelar no meio antropológico, no final do século XIX e começo do XX, com trabalhos como os de Bronislaw Malinowski e Franz Boas. A noção linear, ou unilinear, do desenvolvimento humano passou a ser substituída por uma concepção de relativismo cultural que guiaria o olhar antropológico. Suas bases são o trabalho de campo e a noção de que nenhuma cultura pode ser compreendida senão dentro de sua própria lógica, conceitos e símbolos. Neste contexto, torna-se cada vez mais necessário que o antropólogo vá até o outro – uma determinada sociedade ou cultura humana, seu objeto de estudo – e aprenda sua linguagem, seus valores, ou seja, que enxergue o mundo com os olhos do outro, ao mesmo tempo em que deve se distanciar de seus próprios valores e crenças. Este passa a ser o trabalho empírico do antropólogo: não mais ver de fora, mas captar e conhecer seu objeto por dentro, pois seria o único meio de apreendê-lo.

As novas abordagens antropológicas levaram o conhecimento científico do outro a conclusões diametralmente opostas à glorificação das realizações da civilização ocidental. Como a antropologia é, também, em última instância, uma maneira de enxergarmos a nós mesmos, ela proporcionou uma visão profundamente questionadora dos mais altos e incensados valores ocidentais. Se não há referências absolutas para enxergar e experimentar o mundo, apenas referências relativas a cada cultura, então não há possibilidade de se acessar a realidade de acordo com parâmetros seguros, neutros, objetivos. A realidade passa a ser descartada como algo dado, garantido. A consequência mais radical do relativismo cultural antropológico é a de que nem mesmo é possível, realizável, a tradução entre uma realidade e outra, ou melhor, entre uma construção cultural da realidade e outra. Ora, o que está no âmago da ciência moderna é a busca por conhecer a realidade de acordo com métodos rigorosos e experiências controladas. A ciência pressupõe o avanço do saber, a capacidade de conhecermos cada vez melhor e mais profundamente a realidade exterior, o mundo em que vivemos. Se toda ciência, e toda a ciência, é redutível a uma construção cultural da realidade, relativa e intraduzível, então não há sentido na busca objetiva por uma realidade exterior. É neste ponto que entra em cena uma grande implicação da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss.

Para Lévi-Strauss, em entrevista a Eduardo Viveiros de Castro, a antropologia surgiu da consciência de que aquelas sociedades com que os europeus se depararam estavam fadadas ao desaparecimento e à assimilação, causados exatamente pela “superioridade técnica esmagadora” da civilização ocidental. A antropologia tem a tarefa, portanto, de registrar tudo o que poderia ser registrado sobre essas sociedades que "não nos devem nada", pois representam “experiências humanas completamente independentes da nossa”. Como isso se conecta ao problema epistemológico levantado pelo relativismo cultural? A resposta dada por Lévi-Strauss, em toda a sua obra, é: existem estruturas do pensamento humano, universais, que transcendem a pluralidade das culturas humanas. Como afirma o historiador José Carlos Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais, "Lévi-Strauss acredita na perenidade da ‘natureza humana', que se revela na ordem mental, intelectual". Para o antropólogo francês, a ciência moderna é produto da estrutura do intelecto humano tanto quanto o são os pensamentos mágicos e míticos. Ciências, magia e mitos compartilham uma mesma lógica interna profunda, determinada pela natureza humana, ou seja, pelas características orgânicas dos seres humanos e, fundamentalmente, pelo cérebro humano. E se há características estruturais de pensamento, patrimônio de todos os seres humanos, então podemos analisar como elas se manifestam justamente naquelas experiências humanas independentes da nossa, a dos "selvagens".

É isso o que Lévi-Strauss procura demonstrar em O pensamento selvagem, publicado em 1962. Apoiado muito mais numa erudição espetacular do que em pesquisa de campo, Lévi-Strauss cruza estudos e dados etnológicos e antropológicos para encontrar, neles, expressões das mesmas “exigências intelectuais”, da mesma “ânsia por conhecimento objetivo” que caracteriza todos os seres humanos. Como afirma o antropólogo Mauro Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, “as ideias formuladas por Lévi-Strauss em O pensamento selvagem serviram como programa de pesquisa para pesquisadores que trataram da hipótese de que certos esquemas classificatórios são universais na espécie humana”. Por exemplo: a distinção entre a classificação de plantas e animais de uma determinada cultura ameríndia e a taxonomia científica moderna existiria apenas superficialmente, pois compartilhariam de uma mesma lógica interna expressa pela mente humana.

Há um esforço claro, por parte de Lévi-Strauss, em desautorizar explicações ocidentais que vêem as classificações do mundo natural expressas pelas culturas "selvagens" como meros frutos de suas necessidades mais imediatas, como a alimentação. As classificações se tornam úteis para o sustento alimentar de uma determinada comunidade, mas não são determinadas pela necessidade de se alimentar; são produtos de uma necessidade intelectual e não apenas de subsistência. O pensamento selvagem não é meramente utilitário, no sentido de que facilitaria a subsistência e só, mas é também uma manifestação da necessidade do intelecto humano por tornar a natureza – a realidade exterior – em algo inteligível, tal como ocorre na ciência moderna. "O homem do neolítico ou da proto-história foi o herdeiro de uma longa tradição científica", afirma Lévi-Strauss, em O pensamento selvagem, sobre o chamado homem pré-histórico, cujas conquistas fundamentais (como a agricultura) se devem a “uma atitude de espírito verdadeiramente científico, uma curiosidade assídua e sempre alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer”.

A valorização do “científico”, por Lévi-Strauss, é ambígua, ou pelo menos abre um leque interpretativo bastante amplo sobre o valor da ciência. Por um lado, sua própria abordagem, em si mesma, pressupõe um forte modelo científico. José Carlos Reis afirma que “o estruturalismo impõe às ciências humanas a hegemonia das matemáticas e da lógica das ciências naturais”, tese que coincide com a de Mauro Almeida, para quem “o estruturalismo de Lévi-Strauss contribuiu para trazer às ciências humanas de maneira mais sistemática e autoconsciente o uso de modelos para representar fenômenos. O que Lévi-Strauss ensinou é que discernimos regularidades, leis, padrões, enfim ‘estruturas' construindo tais modelos. Esse modo de fazer ciência era bem conhecido na física, e mesmo na biologia”. Por outro lado, o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss dá uma tremenda ferroada na ciência. Um dos pressupostos fundamentais da ciência moderna é o da possibilidade do avanço do saber. Desde seus pais fundadores do século XVII, a ciência moderna joga com a necessidade de avançar o conhecimento humano progressivamente além, mais profundamente, mais detalhadamente, com maior potencial de alteração da realidade e de controle da natureza para a felicidade humana. Por isso, de maneira geral, a ciência lida com a ideia de mudança histórica, de superação e abandono de teorias e modelos por outros que expliquem melhor e mais detalhadamente a realidade, num processo impulsionado pelos seres humanos como agentes da história. Lévi-Strauss faz um ataque claro à história e ao homem do sonho iluminista como o agente da mudança social e da sua própria liberdade. Como afirma Reis, do ponto de vista de Lévi-Strauss, “o intelecto humano é permanente e se impõe sobre a mudança histórica. As normas sociais têm uma estrutura lógica, que as mudanças históricas não abolem. A busca da inteligibilidade parte da história para aboli-la em ordens naturais permanentes, profundas. O espírito humano é sempre idêntico a si mesmo e predomina sobre o social e o histórico. Por isso, a antropologia não diferencia o ‘selvagem' e o ‘civilizado', pois têm a mesma estrutura lógico-intelectual, que torna irrelevante a sua aparente diferença histórica”. A conclusão seria, portanto, que a ciência moderna, fenômeno histórico característico a um determinado tempo e espaço, não difere fundamentalmente de outros saberes, mitológicos ou mágicos, todos estruturados de acordo com uma lógica universal do intelecto humano. As conquistas científicas do nosso tempo não significariam, pois, conhecimento melhor ou mais profundo: não haveria avanço do saber.

O estruturalismo de Lévi-Strauss experimentou seu auge de aceitação acadêmica nos anos 1950 e 60. Nas duas décadas posteriores, as críticas à antropologia estrutural deram origem a um movimento que procurou superá-la: o pós-estruturalismo. Vagamente identificados como pós-modernos, os pensadores pós-estruturalistas, em diversas áreas, tendem a recusar justamente as mais ambiciosas ideias de Lévi-Strauss: as estruturas universais, imutáveis, do pensamento humano. Se o estruturalismo de Lévi-Strauss recusava a racionalidade iluminista para encontrar uma outra onde menos se esperava, o pós-estruturalismo recusa qualquer racionalidade que governe o mundo. Os pós-estruturalistas “não buscam mais verdades históricas nem aparentes e nem essenciais, nem manifestas e nem ocultas. Eles recusam essências originais e fundamentais que se deveria reencontrar e coincidir.”, diz José Carlos Reis. Conclusão implícita em Lévi-Strauss, a recusa do acúmulo progressivo do saber, do avanço da ciência, torna-se explícita e radical no pós-estruturalismo. Nega-se qualquer acúmulo e qualquer avanço científico gerados racionalmente pela consciência do ser humano.

Hoje, no meio intelectual, há uma guerra aberta acerca da ciência, sobre como ela funciona, qual o valor que damos a ela, o quê lhe devemos e o quê ela nos deve. De forma simplificada, pode-se dizer que há duas grandes tendências. De um lado, pós-modernos e pós-estruturalistas se aproximam de um relativismo epistêmico radical, hostil à ciência moderna, negando mérito à racionalidade ao mesmo tempo em que anulam o ser humano como sujeito consciente de poder mudar a história. De outro, os mais diversos e díspares herdeiros do Iluminismo procuram desafiar as correntes céticas, denunciando suas conclusões relativistas como reflexos de uma opção política de aceitação e assimilação do mundo pós-1989, o de um único sistema socioeconômico – que apareceria então como estrutura naturalizada e inquestionável: daí a recusa da mudança histórica que a ciência e a racionalidade podem proporcionar.

Dentro desse contexto, se Lévi-Strauss pode ser acusado de dar as bases para as conclusões mais céticas e relativistas do pós-estruturalismo, por outro é necessário dizer que ele tem a ciência moderna em alta conta – o que fica claro em entrevistas e em sua obra. E se seu estruturalismo não mais orienta a pesquisa antropológica, não deveria deixar de ser levado em consideração tão cedo, especialmente quando se trata de suas mais elevadas ambições científicas.

Leia mais

"Claude Lévi-Strauss, aos 90". Entrevista a Beatriz Perrone Moisés. Revista de Antropologia. Vol.42, n.1-2. São Paulo, 1999.

"Lévi-Strauss: razão e sensibilidade", por Sylvia Caiuby Novaes. Revista de Antropologia. Vol.42, n.1-2. São Paulo, 1999.

"História da história (1950/60) - história e estruturalismo: Braudel versus Lévi-Strauss", por José Carlos Reis. História da Historiografia, v. 01, p. 08-18, 2008.

"História e etnologia. Lévi-Strauss e os embates em região de fronteira", por Lilia Moritz Schwarcz. Revista de Antropologia. Vol.42, n.1-2. São Paulo, 1999.

"O olhar distanciado: Lévi-Strauss e a história", por François Hartog. TOPOI, v. 7, n. 12, jan.-jun. 2006, pp. 9-24.

"Relativismo epistêmico, relativismo antropológico: reflexões sobre a produção do pensamento no âmbito das contribuições da antropologia", por Eliane Sebeika Rapchan. Maringá, v. 24, n. 1, p. 261-270, 2002.

"O relativismo como niilismo, ou os sem teto da metafísica" de Silvia Pimenta Velloso Rocha, publicado na Revista Trágica, 2008.