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Entre o universal e o relativo
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Os desafios de (d)escrever povos
Alessandra Pancetti
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A lição de sabedoria das vacas loucas
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Entre o claro e o escuro: Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss1
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O estruturalismo de Lévi-Strauss e o sistema de castas indiano
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Reportagem
Os desafios de (d)escrever povos
Por Alessandra Pancetti
e Leonor Assad
10/12/2009

Em março passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu acatar a criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, garantindo a manutenção de uma área contínua de 1,7 milhão de hectares em benefício dos habitantes Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona que nela habitam. Ações como esta buscam resgatar os direitos das nações indígenas e são cada vez mais frequentes no Brasil contemporâneo. Elas se apóiam em estudos etnográficos, e a etnografia brasileira tem em Claude Lévi-Strauss um de seus precursores.

Olhares etnográficos

A etnografia é uma especialidade da antropologia que tem por finalidade a descrição sistemática de uma cultura do ponto de vista de uma etnia, de um povo específico. Lévi-Strauss, no livro Antropologia estrutural considera que etnografia, etnologia e antropologia não constituem três disciplinas ou três concepções diferentes dos mesmos estudos. São, antes, três etapas de uma mesma pesquisa e a preferência por este ou aquele termo exprime somente uma atenção predominante voltada para um tipo de pesquisa, que não poderia nunca ser exclusivo dos dois outros.

Antes dos anos de 1920, os estudos etnográficos se limitavam a coletar sistematicamente os dados das populações nativas, e não se preocupavam com a observação de sua cultura e de seus costumes. Apenas mais tarde a chamada “observação participante” foi legitimada por William Halse Rivers Rivers (1864-1922) e, posteriormente, Bronislaw Malinowski (1888-1942). Esses pesquisadores mostraram, pela primeira vez, a importância da empatia e do tato no contato com o povo estudado, na observação e registro dos relatos, no aprendizado de sua linguagem e na preocupação com expressar os diversos pontos de vista.

Segundo Priscila Faulhaber, antropóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi, é a visão do pesquisador, com toda a sua bagagem cultural e pessoal, sobre o povo estudado, que determina a concepção do material etnográfico. A ideia é que a relação totalmente imparcial com o objeto de estudos não é possível. O observador interage, interfere com o observado, de maneira que “a coleta de informações antropológica só faz sentido quando o antropólogo reconhece que, de alguma maneira, interpreta a cultura observada”, completa Faulhaber.

Como aponta a antropóloga Fernanda Peixoto no artigo “Lévi-Strauss no Brasil: a formação do etnólogo”, até 1930 a pesquisa de campo ocupou “lugar secundário” na sociologia francesa, por sua conexão a “certa tradição filosófica” e por “escassez de recursos”. A própria disciplina de antropologia só passou a fazer parte do programa universitário francês em 1925. Na França, os primeiros etnólogos de campo denominavam-se africanistas e, mais tarde, americanistas, conforme seus interesses fossem pelas civilizações nativas do continente africano ou americano. Os antropólogos europeus consideravam então que o contato com as pesquisas etnográficas era fundamental, uma vez que daí é que surgia todo o material a ser elaborado e digerido pelas teorias etnográficas e antropológicas.

No Brasil, as pesquisas etnográficas eram feitas, na maioria, por missionários religiosos, como o bretão Constant Tastevin (1880-1962), e por viajantes, como o alemão Curt Nimuendaju (1883-1945). Sem formação na área de antropologia, ambos buscavam reconhecimento científico pelos seus trabalhos de campo, Tastevin por meio de sua interação com os antropólogos americanistas franceses, e Nimuendaju com o antropólogo americano Robert Lowie (1883-1957) e na interação com diversos museus, no Brasil e na Europa, para os quais providenciava amplo material de artesanato indígena por ele coletado.

A etnografia de Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss tinha grande interesse pela arte, pela música e por antiguidade. Guiou seus estudos para a área de filosofia, menos por uma verdadeira vocação do que pela repugnância que ele sentia no contato com outras disciplinas que então conhecia. A filosofia, segundo ele, parecia-lhe um ramo do conhecimento que o permitia perseguir seus outros interesses sem que precisasse compartimentalizar suas atividades. Mas foi com a etnografia que vislumbrou uma grande oportunidade para entrar no círculo acadêmico da época, o que de fato ocorreu, após a publicação das suas pesquisas etnográficas realizadas no Brasil em matérias de jornais, livros e artigos.

Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935, como professor visitante na recém fundada Universidade de São Paulo (USP), e viu a oportunidade de realizar os trabalhos de campo que lhe ofereceriam a “graduação” em etnografia, pois era no campo que a formação do etnógrafo se dava. Além disso, a etnografia era uma área em desenvolvimento na França da época, sendo considerada uma área de atuação promissora.

As primeiras expedições etnográficas de Lévi-Strauss foram a Mato Grosso, onde ele entrou em contato com os índios Bororo e, posteriormente, na Serra do Norte, com os índios Nambikwara. Segundo o jornalista Luiz Zanin, em áudio para o jornal O Estado de S. Paulo, nessas viagens, ele registrou as sociedades indígenas que, apesar de não dominarem a escrita, se expressam culturalmente por meio de seus objetos artesanais, trajes, objetos artísticos e utensílios, por meio de seus mitos contados oralmente e passados através de gerações, e pelas pinturas de rostos e corpos. A observação da cultura indígena, as regras de matrimônio entre as pessoas da tribo, quais casamentos eram permitidos, quais eram proibidos, levou ao reconhecimento de uma “forma de organização social sofisticada” e não primitiva, como era a visão da época. As observações de Lévi-Strauss renderam duas publicações para a etnografia, o livro As estruturas elementares do parentesco (1949) e o artigo “Raça e história” (1952), publicado pela United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (Unesco) como parte de uma coleção intitulada La question raciale devant la science moderne.

Alguns anos mais tarde, sua experiência entre os índios no Brasil foi descrita no livro Tristes trópicos, publicado pela primeira vez em 1955 e voltado para o público não especializado. Esse livro tornou-se um grande sucesso mundial, extrapolou o meio acadêmico e fez de Lévi-Strauss o antropólogo mais conhecido de nosso tempo. Nele, o filósofo francês afirma que “os zelosos partidários do progresso expõem-se ao desconhecer, pelo seu pouco-caso, as imensas riquezas acumuladas pela humanidade de um lado e outro da estreita linha em que mantêm os olhos fitos; ao subestimar a importância dos esforços passados, depreciam todos os que nos faltam realizar”.

Outras obras posteriores de suma importância do ponto de vista etnográfico, para Priscila Faulhaber, são: “O pensamento selvagem (1962) que sistematiza a teoria antropológica no tratamento do pensamento indígena enquanto pensamento mítico e O cru e o cozido (1964), que tratou das mitologias sul-americanas a partir do estudo de materiais coletados com etnógrafos que viveram muitos anos com os povos indígenas”.

Para Luiz Zanin, em seu trabalho Lévi-Strauss mostra que, na pesquisa antropológica, não é possível o pesquisador ter um “distanciamento do objeto”, como ocorre nas ciências naturais; ou seja, o “observador interfere naquele que é observado”. Portanto, o distanciamento etnógrafo-objeto de estudo não é desejado, pois ele sabe que aqueles que ele está observando fazem parte da “natureza humana comum”, fazem parte dele mesmo. Desta forma, Lévi-Strauss “centra o seu estudo nessa interferência” causada pela interação dele, com sua bagagem cultural ocidental e europeia, entrando em contato com os povos ditos primitivos. Seu enfoque é nos aspectos comuns entre eles e é exatamente esse enfoque que vai conferir grande diferença ao seu trabalho. Assim, conforme Zanin, os seus estudos concederam às populações indígenas uma “dignidade humana” e uma “dignidade de cultura” que elas antes não possuíam frente à sociedade ocidental pois implica que “nós fazemos parte de uma humanidade comum que se expressa de maneiras diferentes”, celebrando essa diversidade através da perspectiva comum existente entre todas as sociedades humanas.

Etnografias e preservação de culturas

Na época em que Lévi-Strauss saiu da França para o Brasil existia uma grande preocupação dos antropólogos em registrar, o mais rápido possível, todas as populações nativas, pois se acreditava que esses povos desapareceriam em breve, inevitavelmente. As pesquisas de campo feitas no Brasil forneceram a Lévi-Strauss o material que formou a base de trabalho de sua carreira científica. Mais tarde, por meio da análise dos seus dados etnográficos e de analogias com diferentes linhas de pensamento (linguística, música, matemática, entre outras), a sua teoria da antropologia estrutural tomou forma. (leia mais na reportagem Entre o universal e o relativo)

O contato de populações indígenas do Brasil, e da América como um todo, com etnólogos, em particular após os estudos etnográficos de Lévi-Strauss, trouxe algumas contribuições positivas para essas populações. Heloisa Bertol Domingues, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Ministério de Ciência e Tecnologia, considera que, atualmente, existe uma preocupação crescente com a preservação das culturas indígenas. Segundo ela, principalmente no século XIX, e também, mas um pouco menos, no século XX, quase tudo o que foi coletado no Brasil em comunidades indígenas saiu para o exterior, para compor coleções de artigos indígenas. Essa retirada de objetos compromete a preservação da cultura indígena e os benefícios da prática de coleta foram muito questionados. Por outro lado, ela pondera que é preciso considerar que os etnógrafos estavam entrando em contato com outros grupos, outras culturas, alguns pela primeira vez. Neste sentido, a coleta fazia parte de um trabalho de integração. Hoje em dia, segundo Bertol, alguns grupos indígenas vão aos museus para resgatar sua própria cultura, o que é um movimento contrário ao que foi feito antes.

Mais do que isso, observa-se um amadurecimento progressivo do movimento indígena e um crescimento no número e na diversidade de organizações nativas, dirigidas pelos próprios índios, que buscam cada vez mais participar na formulação e execução das políticas para os povos indígenas. Além disso, organizações não-governamentais (ONGs) têm aumentado sua participação na formulação e execução de políticas indigenistas, antes atribuídas exclusivamente ao Estado brasileiro.

Entre os organismos e associações lideradas por índios brasileiros incluem-se o Warã Instituto Indígena Brasileiro, o Grumin e a Índios online. O Instituto Socioambiental (ISA), que incorporou o patrimônio material e imaterial de quinze anos de experiência do Programa Povos Indígenas no Brasil do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (PIB/Cedi) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) de Brasília, também tem desenvolvido um trabalho importante na divulgação e preservação da cultura indígena. Atualmente, a política indigenista oficial, com ações que tentam assegurar principalmente saúde, educação e demarcação e posse de terras aos povos indígenas, tem sido formulada e implementada por meio de parcerias entre setores governamentais, organizações indígenas, organização não-governamentais, missões religiosas e cientistas. A etnografia aparece, muitas vezes, como forma de participação da comunidade científica nesses processos e tem como função, muitas vezes, explicitar, explicar, documentar e garantir a autenticidade das culturas dos povos, bem como a necessidade de sua preservação por meio de políticas específicas. Os pesquisadores enfrentam o desafio de descrever o outro, assunto que na antropologia – e também em outras áreas do conhecimento – rende bons e calorosos debates, expondo os problemas da etnografia moderna na invenção de povos pela escrita e pelas imagens. Ao invés de descrever povos, escrever povos, e assumir a escrita como espaço de invenção de povos, de culturas, espaço de luta política contra as oposições clássicas – escrita e mundo, subjetividade e objetividade, real e ficção – tem sido o caminho encontrado por muitos dos que se aventuram pela etnografia.

O Instituto Socioambiental (ISA) indica que, atualmente, os Bororo detêm seis Terras Indígenas demarcadas no estado do Mato Grosso, num território descontínuo e descaracterizado, que corresponde a uma área trezentas vezes menor do que o território tradicional. A despeito disso, o ISA aponta que o vigor de cultura Bororo e sua autonomia política são importantes armas contra os efeitos predatórios do contato com o "homem branco". O censo da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), de 2006, indicava a existência de uma população de 1.392 Bororo. Conforme o ISA, o termo Bororo significa, na língua nativa, "pátio da aldeia" e, não por acaso, a tradicional disposição circular das casas faz do pátio o centro da aldeia e espaço ritual desse povo, caracterizado por uma complexa organização social e pela riqueza de sua vida cerimonial.

Fonte: ISA


Segundo o Instituto Socioambiental Ambiental (ISA), os Nambikquara são famosos na história da etnologia brasileira por terem sido contatados “oficialmente” pelo Marechal Rondon e por terem sido estudados por Claude Lévi-Strauss. Atualmente, vivem em pequenas aldeias, nas altas cabeceiras dos rios Juruena, Guaporé e (antigamente) do Madeira. E, no último censo realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2002, os Nambikquara somavam cerca de 1.331 indivíduos. Ainda conforme o ISA, no passado ocuparam uma extensa região e se caracterizaram pela mobilidade espacial, mas atualmente habitam tanto o Cerrado, quanto a Floresta Amazônica e as áreas de transição entre esses dois ecossistemas. Dotados de uma cultura material aparentemente simples e de uma cosmologia e um universo cultural extremamente complexos, a cultura dos Nambikwara resiste, ao mesmo tempo em que se abre ao mundo.

Fonte: ISA