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Resenhas
Sinapses em sinfonia
Livro de estreia de Daniel Levitin usa as neurociências para explicar como nossos cérebros reagem à música
Por Danilo Albergaria
09/03/2010

O maestro e compositor estadunidense Leonard Bernstein, que tinha um profundo interesse nas relações entre música e linguagem, gostava de reafirmar o poder metafórico da música, um instrumento para a tentativa humana de nomear o que não pode ter nome e conhecer o insondável. Numa de suas famosas palestras nos anos 1970, em Harvard, disse que “a música tem o poder da expressividade e o ser humano tem a capacidade inata de responder a ela”. Quase quatro décadas depois, a ânsia por entender nossa relação com a música se mantém intacta, mas incorpora agora os avanços das neurociências, que criaram ainda mais questões: como funciona o nosso cérebro quando estimulado pela música? Como se dá nossa compreensão dos estímulos musicais? Como nosso cérebro desenvolve a música? Por que nós, humanos, a criamos? Essas e outras perguntas são o assunto do livro This is your brain on music: the science of a human obsession, do músico e neurocientista Daniel Levitin.

Antes de tornar-se pesquisador e professor da Universidade McGill de Montreal, Levitin teve uma vida voltada para a música. Quando a carreira profissional de guitarrista de uma banda de rock não decolou, Levitin foi trabalhar em estúdios de música e acabou passando uma década de sua vida como produtor de discos na Califórnia. O contato com músicos talentosos e o conhecimento adquirido nesse relacionamento levaram Levitin a se questionar sobre a origem da criatividade e da percepção musical. A curiosidade levou-o a frequentar aulas de psicologia cognitiva e a eleger o estudo do cérebro humano como o campo mais fértil para encontrar suas respostas. Hoje, conduz pesquisas em neurociência da música num laboratório que leva seu nome.

This is your brain on music é a primeira incursão de Levitin na literatura de divulgação científica. Voltado para o público leigo, o livro prima por uma linguagem muito acessível, bem-humorada e recheada de analogias que facilitam a compreensão. Ao mesmo tempo em que o livro é direcionado para a popularização da ciência, há também uma preocupação (que corresponde a boa parte do livro) em descomplicar conceitos da teoria musical. O resultado é uma obra fácil, que consegue capturar o leitor mesmo tratando de assuntos complicados de áreas tão aparentemente distantes como neurologia cognitiva e música.

Os primeiros capítulos, especialmente o primeiro, contêm um pequeno curso de teoria musical. Conceitos como nota, timbre, harmonia, melodia, tempo e ritmo, são apresentados com muita clareza para quem não possui qualquer educação formal sobre música (caso deste resenhista). Como Levitin aponta, as sociedades ocidentais inauguraram a tendência, hoje bastante acentuada, em separar de maneira bastante clara aqueles que fazem música daqueles que pagam para desfrutá-la. Essa é uma situação muito diferente da maioria das sociedades humanas que já existiram: a música é parte integrante das relações sociais e todos dela participam ativamente. Levitin vai mais longe e afirma que nenhuma cultura humana deixou de ter música: ela é uma capacidade universal entre os seres humanos.  

O livro fica realmente interessante quando começa a entrar no assunto prometido: a relação entre a mente humana, a fisiologia do cérebro e a música. Esta, aliás, não existe no mundo, mas nos nossos cérebros. Da mesma forma que toda a nossa percepção da realidade é guiada por representações (ou seja, ela não é uma expressão fiel, exata e cristalina do mundo exterior), a música é uma representação mental da captação, pelo tímpano, de estímulos das perturbações acústicas na atmosfera. Levitin se refere, em determinado momento, à noção de ilusão da estrutura musical. Não há nada, ele argumenta, em notas, acordes ou escalas que carreguem intrinsecamente algum significado ou sentimento.  

Isso não quer dizer que tudo seja arbitrariedade na música, na relação entre o cérebro humano e as diferentes vibrações sonoras que perfazem as notas e escalas musicais. A música, lembra Levitin, é algo relacional. O que faz a música é a relação entre os tons estabelecidos. O que é arbitrário é a definição de uma determinada nota, mas não de todas elas num sistema. Não existe lógica que justifique, digamos, Ré ser este som com esta determinada frequência que reconhecemos. Ré (ou B, ou qualquer outra representação) poderia estar em qualquer lugar no intervalo entre ele e o próximo tom. Mas, uma vez fixado o tom, o estabelecimento de outros tons (outras frequências sonoras) deve estar relacionado à frequência daquele primeiro tom, aumentando ou diminuindo sua frequência de acordo com uma relação proporcional.  

Dito isso, ao longo do livro Levitin faz algumas considerações no mínimo intrigantes. Por exemplo, a de que há evidências de que o cérebro reage a harmonias com disparos neurológicos sincronizados. Os neurônios respondem a cada elemento da harmonia sincronizando seus disparos elétricos, criando uma coerência neurológica para esses sons combinados. Outro: intervalos sonoros consonantes e dissonantes são reconhecidos pelas estruturas mais primitivas do cérebro (que compartilhamos com todos os outros vertebrados), sem que tal sensação sequer passe pelo córtex. 

De qualquer maneira, This is your brain on music mostra um maior interesse no conhecimento da relação da música com o fenômeno da mente e com o processo cognitivo do que com o cérebro em si mesmo. A estrutura fisiológica do cérebro só é realmente relevante, para Levitin, quando permite iluminar alguns dos problemas relacionados ao funcionamento da psiquê humana imersa em música.

A fisiologia do cérebro explicaria, por exemplo, como chegamos à ilusão que ordena e estrutura uma sequência de sons. Para explicar a correspondência entre estrutura cerebral e estrutura musical, Levitin traça uma analogia interessante com as ideias do linguista Noam Chomsky, que apontam para nossa capacidade cerebral inata de entender qualquer língua, pois cérebro e linguagem evoluíram lado a lado. Levitin argumenta que, do mesmo modo, nosso cérebro tem a capacidade inata de compreender qualquer tipo de música. A exposição a determinada música (ou linguagem) nos primeiros anos de vida forma uma rede de circuitos neurais, correspondente à nossa mais profunda formação musical. Esta, de certa maneira, seria responsável pela formação de nossa expectativa com relação a determinados padrões e escalas – e um resultado melhor ou pior de expressividade musical seria determinado pelo quão habilmente um compositor atende e frustra essas expectativas.

Uma ressalva desse pensamento é que o cérebro continua a desenvolver novas redes neurais (mesmo na fase adulta, só que em muito menor escala), de acordo com a experiência do indivíduo. Outra ressalva por parte de Levitin é a de que música e linguagem são faculdades cerebrais independentes. O autor cita exemplos de pessoas que, tendo sofrido algum tipo de dano cerebral, perderam a capacidade de operar com a música, enquanto a linguagem se manteve intacta, e vice-versa. Levitin aponta para a hipótese de que ambas dividam os mesmos recursos cerebrais, mas utilizem caminhos diversos na rede neural.

Por fim, o último capítulo do livro é o mais especulativo de todos. É uma resposta do autor para estudiosos da psicologia cognitiva, como Steven Pinker, que desconsideram a música como elemento central na evolução humana, tratando-a como um acidente entre outros elementos evolutivamente mais importantes, como a linguagem. Levitin levanta algumas hipóteses para a importância evolutiva da música, desde seu valor como amostra da criatividade (e melhores genes) na seleção sexual, até um possível papel como facilitadora do surgimento da própria linguagem. Apesar de Levitin não concluir com nenhum argumento forte contra as objeções de pensadores como Pinker, ninguém disputa o efeito de imenso prazer que o sentido estético de uma boa música desperta na mente de todos os seres humanos.

This is your brain on music: the science of a human obsession

Daniel Levitin

Penguim Books, 2006, 316 páginas