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Reportagem
Qualidade de vida na medida (in)certa
Por Márcio Derbli
10/06/2010

Quando assistimos TV, ouvimos rádio ou lemos um jornal, somos expostos constantemente a anúncios publicitários prometendo melhorar ou manter nossa qualidade de vida. É a margarina que torna sua vida mais saborosa, o carro que te dá mais sensação de conforto ou o condomínio residencial que garante um invejável estilo de vida para toda a sua família. Mas, afinal, que qualidade de vida é essa? Será que apenas a capacidade de consumo pode garanti-la? Como se constrói esse conceito e como medi-lo a contento?

Apesar de registros do termo, na literatura médica, desde a década de 1930, não existe ainda um consenso sobre seu significado, e pesquisadores de diversas áreas têm discutido como definir o conceito. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, definiu qualidade de vida, em 1990, como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Nessa definição, são incluídos seis domínios principais: saúde física, estado psicológico, níveis de independência, relacionamento social, características ambientais e padrão espiritual. Uma definição mais antiga, de 1974, feita por pesquisadores americanos, relacionando qualidade de vida à saúde, a define como “a extensão em que prazer e satisfação têm sido alcançados”.

Outra definição, mais recente e semelhante a essa última, sugere que qualidade de vida pode ser entendida em termos da distância entre as expectativas individuais e a realidade, considerando que quanto menor a distância, melhor a qualidade de vida. Segundo a pesquisadora Maria Inês Pedrosa Nahas, professora do Instituto de Desenvolvimento Humano Sustentável da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), qualidade de vida é um conceito que remete à subjetividade. “A melhor maneira de medir qualidade de vida é com pesquisa de percepção”, afirma Nahas.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) realizou uma pesquisa de percepção no Brasil chamada “Brasil Ponto a Ponto”. O objetivo do estudo foi descobrir qual a percepção do brasileiro sobre o que é importante mudar no país para melhorar a vida das pessoas. O resultado será utilizado na elaboração do próximo Relatório de Desenvolvimento Humano nacional, uma compilação dos indicadores sociais dos municípios brasileiros.

Os indicadores tiveram, por um bom tempo, um viés mais econômico do que social e começaram a ser usados em larga escala em 1947, após a elaboração da fórmula para medir o Produto Interno Bruto (PIB), criada pelo economista britânico Richard Stone, para auxiliar na aferição dos diversos setores econômicos dos países. Até a década de 1960, a maioria dos indicadores focava basicamente na atividade econômica de uma região, como o PIB per capita.

A partir da constatação de que progresso econômico não significa, necessariamente, melhoria no bem-estar social, e pressionado por movimentos sociais, o governo norte-americano passou a elaborar indicadores visando medir os impactos sociais do desenvolvimento econômico. Na década de 1970, a Europa e a América Latina também aderiram aos esforços para instituir indicadores sociais. Na mesma década, num contexto de preocupação com as questões ambientais, alimentado pelo crescimento das cidades e consequente piora das condições sociais, inicia-se a discussão do conceito de qualidade de vida urbana. Segundo Nahas, da PUC Minas, a qualidade de vida urbana depende do que a cidade pode oferecer ao cidadão: quanto mais oferece, em termos de equipamentos e serviços (de saúde, educação, transportes), melhor o indicador.

Em 1996, a prefeitura de Belo Horizonte desenvolveu, sob coordenação da pesquisadora da PUC Minas, o Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU). Esse indicador foi criado pela prefeitura da capital mineira como critério para distribuição de recursos e auxilia nas políticas públicas da gestão do município. Em 2004, o Ministério das Cidades solicitou a Nahas a construção de um índice para ser utilizado em todas as cidades do país, o IQVU-BR. Para a construção do novo indicador, Nahas partiu de um conceito, já utilizado no modelo mineiro: o índice mede o que a cidade oferece em termos de equipamentos, serviços, áreas verdes, ou seja, uma mensuração sob o ponto de vista físico, construído ou natural, relacionando essa oferta com a acessibilidade do ponto de vista espacial – como a distância entre moradias e postos de saúde ou escolas. A partir disso, ela consulta os usuários imediatos do índice (gestores municipais) sobre quais indicadores eles julgam ideais, embora alguns indicadores sejam sempre incluídos, como rede de saneamento básico, por exemplo.

Durante o trabalho com os dados colhidos, o refinamento dos indicadores eleitos continua através de métodos estatísticos, pois um indicador sugerido pelo gestor, ou mesmo um indicador padrão, pode se mostrar inadequado para o instrumento. Se, hipoteticamente, uma cidade tivesse dois nascimentos em um ano e, tragicamente, uma criança morresse, a taxa de mortalidade infantil seria de 50%. O número bruto seria real, mas causaria distorção no cálculo do índice. O índice precisou ser balanceado estatisticamente em função do número de cidades. “São 46 indicadores, ou seja, é um sistema”, explica Nahas. Segundo ela, o IQVU-BR foi construído para ser utilizado junto com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e não para concorrer com ele, mas nunca chegou a ser aproveitado pelo Ministério das Cidades, que continua usando o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M).

Em meados da década de 1980, o World Institute for Development Economics Research, da Organização das Nações Unidas (ONU), iniciou um debate sobre qualidade de vida e indicadores de sustentabilidade, por entender que não era adequado medir o avanço de uma população utilizando apenas dados econômicos. A partir de 1990, a ONU, através do PNUD, elabora e passa a usar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que consiste na medição de quatro indicadores: expectativa de vida, taxa de alfabetização, anos de escolaridade e PIB per capita. Criado pelos economistas Amartya Sem, da Índia, e Mahbub Ul Haq, do Paquistão, o IDH pretendia aprimorar a avaliação de indicadores mundiais de desenvolvimento, superando a ortodoxia econômica do PIB.

Atualmente, 182 países e territórios utilizam o IDH. No último cálculo do índice, divulgado no ano passado, Noruega, Austrália e Islândia foram os países com maior IDH. O Brasil manteve-se na 75ª posição, considerada como alto nível de desenvolvimento humano. A variação do índice brasileiro foi positiva, de 0,808 para 0,813. Por esse instrumento, quanto mais próximo de um, melhor o indicador.

A equipe brasileira do PNUD elabora o IDH-M (Municipal) e utiliza uma família de indicadores distribuídos por categorias como as características do município, saúde, educação, renda, moradia e população, totalizando 135 indicadores diferentes. Os cálculos são realizados a cada dez anos a partir de dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre os indicadores de saúde, por exemplo, é levado em consideração o número médio de anos que as pessoas viveriam a partir do nascimento e o número médio de médicos residentes no município por mil habitantes. Nos indicadores de educação, avalia-se, entre outros, o percentual de pessoas acima de 15 anos de idade que são alfabetizadas (que saibam ler e escrever um bilhete simples, segundo o critério aplicado).

O PNUD elaborou, em 2000, o Atlas do Desenvolvimento Humano, reunindo os cálculos de todos os indicadores para todos os municípios brasileiros. No Atlas, que está disponível para consulta no site do PNUD, São Caetano do Sul (SP) e Águas de São Pedro (SP) são as cidades com maior IDH-M do país, enquanto Jordão (AC) e Manari (PE) apresentam o pior índice.

Afinal, qual é a medida certa?

Talvez não seja possível definir exatamente o que é qualidade de vida. A discussão no meio acadêmico segue em dois polos: um vê as condições que o poder público (e a sociedade como um todo) oferece ao cidadão; o outro olha como o indivíduo percebe a satisfação de suas necessidades. No último caso, a medida poderia ser distorcida pela resignação (com posturas do tipo “não tenho muito e desejo pouco”) ou pela frustração (caracterizada pela atitude do tipo “tenho, mas desejo mais”).

Nas sociais-democracias, procurou-se definir um conjunto mínimo de indicadores sociais para estabelecer o estado de bem-estar social (welfare state). No modelo escandinavo, por exemplo, os indicadores se basearam em três verbos considerados básicos à vida humana: ter, ser e amar. O primeiro se refere às condições materiais suficientes para uma vida distante da miséria; o segundo refere-se à formação de laços sociais; e o último, à integração do cidadão à sociedade e à natureza e sua participação nas decisões coletivas.

O Butão, país na região do Himalaia, criou na década de 1970 o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB). Esse índice analisa 73 variáveis distribuídas em nove categorias: bom padrão de vida econômico, gestão equilibrada do tempo, bons critérios de governança, educação de qualidade, boa saúde, vitalidade comunitária, proteção ambiental, acesso à cultura e bem-estar psicológico. O índice varia de zero a dez, e o país, no último cálculo, atingiu 6,5 pontos. Pelo IDH, o Butão fica na 132ª posição, com 0,619 pontos, ou seja, de médio desenvolvimento humano. Após a implantação do FIB, entretanto, as políticas públicas balizadas pelo novo índice conseguiram avanços como diminuição da taxa de mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida.

O conceito de qualidade de vida ainda não obteve consenso entre os pesquisadores, mas talvez os dinamarqueses, com seus verbos fundamentais (ter, ser e amar) tenham conseguido chegar mais próximo, pelo menos no que diz respeito à satisfação de seus habitantes. Em estudo realizado em 2006 pela Universidade de Leicester, do Reino Unido, reunindo diversos indicadores econômicos e percepções das pessoas sobre a satisfação com suas vidas, o país escandinavo (16º pelo IDH) obteve o primeiro lugar no ranking. O Mapa da Felicidade, como foi chamada a pesquisa, utilizou cerca de 100 diferentes estudos e analisou respostas de 80 mil pessoas de 178 países. Nações com bons serviços de saúde, eficientes sistemas de educação e alta renda per capita, como era de se esperar, obtiveram índices de felicidade melhores, o que, no entanto, não é propriamente uma regra. O Butão, que já se preocupava com sua Felicidade Interna Bruta (e não é um país exatamente rico), ficou num honroso 8º lugar no mapa. O Brasil ficou em 81º, embora o Rio de Janeiro tenha aparecido em 2009 no topo da lista da revista Forbes com as dez cidades mais felizes do mundo. Mas quem disse que há consenso sobre o que é felicidade?