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Reportagem
Muito além da tecnologia: os impactos da Revolução Verde
Por Carolina Octaviano
10/07/2010

Conceitualmente, a Revolução Verde é considerada como a difusão de tecnologias agrícolas que permitiram um aumento considerável na produção, sobretudo em países menos desenvolvidos, que ocorreu principalmente entre 1960 e 1970, a partir da modernização das técnicas utilizadas. Embora tenha surgido com a promessa de acabar com a fome mundial, não se pode negar que essa revolução trouxe inúmeros impactos sociais e ambientais negativos, conforme afirma José Maria Gusman Ferraz, pós-doutorando em agroecologia pela Universidade de Córdoba, na Espanha, e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

O caso brasileiro ilustra bem a situação definida pelo pesquisador: se de um lado está a melhoria econômica, do outro persistem os problemas sociais. “Para usarmos exemplos brasileiros, entre 1970 e 1985, o aumento na produção de alimentos básicos para a população foi de 20%, enquanto que a de produtos de exportação (cacau, soja etc) cresceu da ordem de 119 a 1.112%. O país ocupa hoje lugar de destaque entre os países exportadores de alimentos, contrastando com uma população de milhões de subnutridos”, destaca.

Além de não ter resolvido os problemas nutricional e da fome, a Revolução Verde também é reconhecida por aumentar a concentração fundiária e a dependência de sementes, alterando a cultura dos pequenos proprietários que encontraram dificuldades para se inserir nos novos moldes. “A concentração da posse da terra e o decorrente êxodo rural causaram um inchaço das cidades, levando a uma favelização nunca vista. Houve uma transferência do lucro decorrente da atividade agrícola para a agroindústria, deixando o produtor rural com uma estreita margem, levando ao seu endividamento”, avalia Ferraz.

Pedro Abel Vieira Júnior, dourando do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e também pesquisador da Embrapa, aponta para o contraponto gerado por essa revolução. “De uma forma crítica, a Revolução Verde proporcionou ganhos consideráveis para a produção agrícola. Por outro lado, é inegável que esses ganhos foram associados a alguma degradação ambiental e que os lucros extraordinários gerados pelos ganhos de produtividade da terra, da mão de obra e do capital não foram apropriados pelos produtores rurais”, afirma.

Para Vieira Júnior, entretanto, atualmente, esses danos ao meio ambiente são quase inexistentes, pois a agricultura evoluiu no sentido da sustentabilidade. Ele cita como exemplo que “em várias regiões do planeta, os sistemas agrícolas são entendidos como produtores de água. Culturas não destinadas ao consumo humano ou animal são irrigadas com efluentes industriais e domésticos. Desse modo, o sistema agrícola filtra os efluentes, devolvendo ao meio ambiente a água pura”, ilustra.

Já Ferraz defende a criação de um novo modelo que contemple a ecologia e o sustentável. “Temos que ter um pensamento sistêmico para repensar um novo sistema produtivo, o que é possível. As propostas de mudança elaboradas pela agroecologia apontam um caminho que pode nos levar a uma nova forma de produção sustentável. A valorização e incentivo para a agricultura familiar, que de fato produz os alimentos que consumimos no dia a dia, dentro dos conceitos agroecológicos, é uma proposta que pode mudar o rumo de nossa agricultura numa direção realmente sustentável”, acredita.

Como a Revolução Verde chegou ao Brasil

Essa revolução foi introduzida no país na época da ditadura militar, nos anos 60 e 70, com as mesmas características do restante do mundo, uma vez que o modelo sustenta a premissa de que a agricultura pode ser industrializada. Um dos impactos marcantes dessa modernização do setor está na incidência de monoculturas com plantas híbridas, além de ser fortemente apoiada em energias não renováveis como os agrotóxicos, os adubos e na intensa mecanização e na alteração genética dos alimentos, o que é bastante questionado em debates sobre segurança alimentar. “Essa necessidade de insumos é decorrente da não valorização da biodiversidade funcional nos agroecossistemas, caracterizando-se por ser um pacote tecnológico desenvolvido para a produção em larga escala, em grandes monoculturas”, explica Ferraz.

Na época em que foi introduzida, foram criadas políticas públicas para adoção do novo modelo por parte dos agricultores. Entre elas, pode-se citar o crédito subsidiado atrelado à compra de insumos como agrotóxicos e adubos. A criação de órgãos de pesquisas nacionais e estaduais para dar suporte ao modelo também é considerada como um incentivo, junto ao treinamento, no exterior, dos professores das faculdades de agronomia e a criação de um serviço de extensão rural para levar a tecnologia até o agricultor.

Vieira Júnior afirma que o Brasil e a Índia foram grandes beneficiados economicamente pelo novo sistema e pela modernização da cultura agrícola. Para ele, parte disso se deve ao fato de, no Brasil, ter sido desenvolvida uma tecnologia própria para a chamada agricultura tropical, o que culminou, atualmente, na liderança do país em tecnologia para a produção agrícola nos trópicos. “A partir da década de 1990, a disseminação dessas tecnologias em todo o território nacional permitiu que o Brasil vivesse um grande desenvolvimento agrícola, com aumento das fronteiras de produção e disseminação de culturas em que o país é recordista de produtividade, como a soja, o milho e o algodão, entre outros. Há quem denomine esse período da história brasileira de a Era do Agronegócio”, sustenta.

A discussão sobre os alimentos geneticamente modificados

Sem dúvida, uma das mais acaloradas discussões sobre as consequências da Revolução Verde reside nos alimentos transgênicos ou geneticamente modificados. Ainda não se chegou a um consenso sobre o assunto, que divide a opinião de especialistas e da sociedade civil. Há quem defenda que os transgênicos possam acabar com a fome no mundo. Contudo, há quem afirme que eles podem acarretar inúmeros danos à saúde humana e animal e também ao meio ambiente.

Em artigo publicado na ComCiência, Lavína Pessanha aponta que Estados Unidos e União Europeia representam visões distintas sobre o tema e que se contrapõem: os primeiros são a favor da liberação, alegando não haver nenhuma comprovação científica dos malefícios dos alimentos geneticamente modificados; já os europeus defendem que é preciso pesquisar melhor antes de disponibilizar os transgênicos para consumo.

Ferraz alerta para um dos problemas ambientais e de saúde que podem resultar da implementação das sementes transgênicas, seguida da utilização de agrotóxicos. “O uso de um produto seguidamente leva à seleção das plantas resistentes, que passam a competir com a cultura. Num primeiro momento, aumenta-se o uso do herbicida, aumentando o impacto ambiental pelo aumento dos resíduos. Como isso não tem resolvido o problema, agora aparecem plantas transgênicas chamadas de ´piramidadas’, que são resistentes a mais de um herbicida, ou plantas transgênicas que usam herbicidas com maior toxicidade, e em alguns casos sob suspeição de causarem graves danos à saúde e ao meio ambiente”, explica.

De acordo com Antonio Márcio Buainain, professor do Instituto de Economia da Unicamp, existe uma mistificação sobre o uso e consumo de alimentos geneticamente modificados. “O último relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e da OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico) sobre perspectivas para a agricultura até 2020 indica a necessidade de expansão da produção em torno de 30% para dar conta do aumento populacional e de renda. E, para isso, não podemos nos dar ao luxo de negar alternativas com base apenas em hipóteses, às vezes, mal fundamentadas e em fantasmas ideológicos sem nenhuma base objetiva”, afirma. Para ele, a proibição dos transgênicos seria o equivalente a negar os medicamentos. “Só podemos negar alternativas que não atendam às restrições institucionais, que são cada vez mais duras e envolvem o meio ambiente, as relações trabalhistas, entre outros. Portanto, não se trata de negar os transgênicos em geral. Isso equivaleria a negar os remédios. O que temos que recusar é produto transgênico que fuja dessa conformidade, da mesma maneira que negamos remédios que não atendam ao conjunto de condicionalidades impostas pelos órgãos reguladores”, defende.

Ferraz, por sua vez, lembra que o problema da alimentação mundial não está na quantidade de alimento disponível, mas sim no poder aquisitivo das populações, caracterizando-se num problema socioeconômico resultante da má distribuição de renda. “A ONU e várias instituições não governamentais têm disponibilizado informações de que os alimentos disponíveis dariam de sobra para alimentar a população humana. Cada pessoa no mundo poderia comer aproximadamente todos os dias: 1,7 kg de cereais, feijões e nozes; 200 g de carne, leite e ovos; e 0,5 kg de frutas e vegetais. Isso é mais que suficiente para uma boa nutrição”, observa Ferraz. Para ele, o discurso de que os alimentos geneticamente modificados podem acabar com a fome no planeta é a mesma falácia utilizada por aqueles que defendiam a implementação da Revolução Verde, que, além de não acabar com a fome, ainda agravou os problemas sociais e ambientais. “Como esse modelo está se esgotando, o novo rearranjo para mantê-lo por mais tempo é a introdução de plantas transgênicas com o uso casado do agrotóxico”, conclui. Resta saber se os órgãos reguladores irão de fato avaliar as relações trabalhistas, os impactos ao meio ambiente e à saúde humana e animal dessa faceta mais contemporânea da revolução. E se essa nova fase vai proporcionar não apenas um aumento da produção, mas do acesso aos alimentos.