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Artigo
As casas de fazendas paulistas
Por Vladimir Benincasa
10/10/2010

Ao longo dos três primeiros séculos de colonização, o que hoje chamamos estado de São Paulo teve uma produção agrícola não muito importante, se a compararmos com a de outras regiões do Brasil. No século XVI, próximo à cidade de São Paulo, houve certa importância na produção de trigo, que acabava abastecendo os próprios habitantes, mas foi um ciclo pequeno e de pouco vulto. Também havia numerosos engenhos de cana-de-açúcar, porém a concorrência com a produção das capitanias do Nordeste ou mesmo do Rio de Janeiro não era propícia a uma lavoura voltada à exportação para a Europa. Assim, até praticamente a metade do século XVIII, São Paulo teve uma economia rural acanhada, ligada à produção de gêneros alimentícios quase exclusivamente para o consumo local ou o comércio com outras regiões da colônia ou com o Paraguai. Plantava-se arroz, feijão, milho, hortaliças, legumes e algumas frutas. Havia criação de aves, bovinos e equinos. A grande atividade econômica era a captura de índios, que eram vendidos como escravos e, a partir do final do século XVII, a atividade mineradora – a descoberta de inúmeras minas de pedras e metais preciosos pelo interior da colônia (Minas Gerais, Bahia, Paraná, São Paulo, Goiás e Mato Grosso) foi obra de paulistas que se aventuravam pelo continente, alargando as fronteiras portuguesas na América do Sul, construindo caminhos e fundando cidades.

Desses 250 primeiros anos de colonização do europeu, quase nada sobrou de edificações rurais, a não ser as famosas “casas bandeiristas”, 38 no total. Sabe-se que essas casas foram sedes de propriedades agrícolas, sendo elas as suas construções mais importantes. Pouco se sabe sobre as outras edificações que compunham o conjunto rural paulista dos primeiros séculos.


Exemplar de arquitetura bandeirista tardia: Chácara do Rosário,
Itu (SP), século XVIII. Foto: Vladimir Benincasa.

Essas casas bandeiristas possuíam uma incrível semelhança entre si, tanto no aspecto formal externo, quanto em sua divisão interna e na técnica construtiva empregada. Quase todas elas situavam-se dentro de um círculo de cerca de 100km ao redor da cidade de São Paulo, ou seja, a área mais densamente ocupada da capitania paulista nesses primeiros dois séculos e meio. Atualmente, muitas encontram-se dentro da área urbana paulistana e, outras, nas cidades de Mauá, São Roque e, alguns exemplares mais recentes, nas cidades de Itu e de Sorocaba.

A tipologia é quase sempre a de um volume compacto, com poucas aberturas, paredes externas e as paredes mestras internas feitas com taipa de pilão1; outras paredes divisórias eram feitas de taipa de mão (o mesmo que pau-a-pique). Há duas características importantes: a primeira é a varanda fronteira, ou alpendre reentrante, entalado entre dois cômodos laterais; a segunda, o enorme e alto telhado em quatro águas. Uma curiosidade é que nessas habitações, além do banheiro (inexistente em qualquer habitação brasileira até o século XIX), também não havia a cozinha interna – os alimentos eram preparados em construções anexas muito precárias (situadas ao fundo das habitações), e compostas quase sempre apenas de uma cobertura de palha sob a qual havia um fogão rudimentar, forno, rodas de ralar mandioca, pilão, etc.

A escassa documentação primária que resta da época e a inexistência de relatos de viajantes tornam essas casas bandeiristas uma das grandes incógnitas da arquitetura brasileira. Pouco se sabe sobre o seu funcionamento ou sobre o modo de vida de seus habitantes. Há estudos consistentes sobre elas, como o de Ernani Silva Bruno2 ou, mais recentemente, há a interessante tese Maloqueiros e seus palácios de barro: o cotidiano doméstico na casa bandeirista3, de Paulo Eduardo Zanettini, que tem por base a análise arqueológica de alguns desses exemplares, e a tese sobre o restauro dessas casas, de Lia Mayumi, Taipa, canela preta e concreto: um estudo sobre a restauração de casas bandeiristas em São Paulo4, que lançam novas luzes sobre o entendimento desses exemplares tão belos e únicos na arquitetura.

Mas a grande produção arquitetônica na zona rural paulista começa de maneira mais efetiva a partir da segunda metade do século XVIII. A expulsão dos paulistas da região das Minas Gerais, após a Guerra dos Emboabas, na primeira década do século XVIII, vai ter um efeito benéfico à capitania de São Paulo. Muitos paulistas retornam e se fixam em sua terra natal, dando novos rumos à economia local. Ao mesmo tempo, uma nova diretriz da Coroa Portuguesa passa a incentivar, a partir da segunda metade daquele século, a criação de uma lavoura mais consistente em terras paulistas. Havia ao menos duas finalidades por trás desse fato: povoar o interior dessa região, criando uma rede de cidades que facilitassem a salvaguarda do território português contra um possível avanço espanhol, via Paraguai; e aumentar os ganhos com a lavoura comercial de produtos tropicais (entenda-se por isso a cana-de-açúcar, principalmente). Já se percebia que o ouro e as pedras preciosas de Minas Gerais estavam acabando e necessitava-se dar novo impulso à agricultura.

O certo é que, nesse período, muitas sesmarias foram doadas na capitania de São Paulo5, e, com o dinheiro obtido pelos paulistas com a captura de índios, com a mineração e com o comércio de burros, teve início uma lavoura agroexportadora de açúcar em duas regiões: a primeira, situada entre Sorocaba, Porto Feliz, Itu e Campinas – que ficaria conhecida como o quadrilátero do açúcar; e a segunda, localizada ao longo do caminho que ligava São Paulo ao Rio de Janeiro, no Vale do Paraíba. Outras sesmarias também foram sendo doadas por todo o interior, ao longo do Caminho de Goiás6, do Picadão de Cuiabá7: porém, a grande maioria delas só seria efetivamente ocupada e cultivada a partir do final do século XVIII e, mais ainda, durante a primeira metade do século XIX.

Tanto no quadrilátero do açúcar quanto no Vale do Paraíba as lavouras deram certo e, ao final do século XVIII, essas duas regiões já exibiam um vigor econômico ainda desconhecido em São Paulo. Pouco a pouco, começam a surgir grandes edificações nessas propriedades rurais, como os engenhos de cana, estábulos, moinhos de grãos, senzalas, enfermarias, oficinas etc, transformando a paisagem do interior paulista. Mas o interesse principal deste texto são os casarões dessas fazendas e, para tratar deles, é necessário que antes se toque num outro tema muito importante e que se relaciona com a arquitetura habitacional paulista.

Na segunda metade do século XVIII, o esgotamento do ouro das Minas Gerais provocou uma debandada de pessoas daquela região: muitos fazendeiros que abasteciam as cidades mineradoras de produtos agrícolas e pecuários se viram sem os seus habituais e ávidos fregueses. O comércio foi minguando por ali e, ao mesmo tempo, novas regiões despontavam economicamente, além do Rio de Janeiro: uma mineradora (Goiás e Cuiabá) e outra açucareira (São Paulo); uma estrada com um movimento intenso de tropas unia São Paulo às minas do centro-oeste, transformando a sua zona limítrofe em ponto estratégico para o estabelecimento de propriedades rurais produtoras de alimentos e animais de transporte.


Fazenda Nova, Mococa (SP), cerca de 1840. Construção feita
por mineiros da Comarca do Rio das Mortes.
Foto: Vladimir Benincasa.

A abertura de novas fazendas nas regiões do Vale do Paraíba paulista e do quadrilátero do açúcar também se mostrava atraente. Assim, a partir do final do século XVIII, São Paulo começa a receber um fluxo muito intenso de migração mineira, que se prolonga por todo o século XIX e avança pelas primeiras décadas do século XX. Em alguns censos de meados do século XIX, boa parte das cidades paulistas tinha um percentual altíssimo de população originária de Minas Gerais, principalmente aquelas do nordeste do estado, da região central e do Vale do Paraíba. Isso gerou uma mistura muito grande de costumes e tradições, as quais hoje fica difícil precisar se têm origem em São Paulo ou em Minas Gerais. No caso da arquitetura, isso fica mais claro, pois muito da arquitetura praticada em Minas acabou sendo disseminado em terras paulistas. Ambas as arquiteturas eram muito distintas entre si. Os mineiros, com uma tradição mais ligada à arquitetura do norte de Portugal, tinham por hábito o uso da estrutura autônoma de madeira, com vãos preenchidos com taipa de mão ou adobe; o embasamento (ou alicerces) podia ser de pedra ou simplesmente inexistir, fincando os grandes esteios de madeira diretamente no solo – tendo-se a precaução de impermeabilizar a parte a ser enterrada, queimando-a superficialmente.


Fazenda do Capão Seco, Lagoa Dourada (MG), meados do
século XVIII. Foto: Vladimir Benincasa.

Essa técnica da estrutura autônoma, também chamada de gaiola de madeira, dava maior liberdade formal à edificação, possibilitando acréscimos ou a junção de corpos. Também proporcionava um melhor assentamento da edificação ao terreno, não havendo a necessidade de terraplenagem como nas antigas casas bandeiristas. A facilidade em aumentar ou diminuir a altura dos esteios ou das paredes dos alicerces de pedra aumentava a adaptação da casa em terrenos inclinados. O espaço que sobrava sobre o piso da edificação era usado para guardar tralhas, como paiol ou mesmo como abrigo para animais. Assentando-se sobre o terreno, essas casas mineiras traziam algumas peculiaridades em relação à casa paulista: elas possuíam, na parte alta do terreno, o aspecto de edificação térrea e, na parte baixa, com o porão, eram assobradadas; a cozinha ficava junto ao corpo da casa e não separada desta. Eram forradas internamente; possuíam escadaria externa, tratada como elemento compositivo e ornamental das fachadas; algumas possuíam alpendres com guarda-corpo, com balaústres em madeira recortada, dando graça e leveza ao aspecto externo.

Enfim, tratava-se de uma arquitetura pouco conhecida em São Paulo. No entanto, entre o final do XVIII e meados do XIX, ambas (a mineira e a paulista) foram se mesclando, dando origem a uma nova arquitetura. Por exemplo: começaram a surgir em São Paulo casarões assobradados; a planta, com a junção da área de serviço ao corpo principal, começou a apresentar o formato de um “L”, e o porão passa a ser cada vez mais alto e aproveitável.


Fazenda Pinhal, São Carlos (SP), cerca de 1830.
Foto: Régis de Bel.

Aos poucos, a taipa de pilão foi cedendo lugar à taipa de mão. A antiga planta bandeirista foi se fundindo às inovações mineiras e o tradicional alpendre reentrante foi fechado, dando origem a uma nova sala de receber... Foram alterações que se deram ao longo de quase um século, de meados do XVIII a meados do XIX e que caracterizariam não só os casarões do ciclo do açúcar paulista, mas também os do início do ciclo seguinte, aquele que alavancaria definitivamente a economia de São Paulo: o ciclo do café!

Dentre as novas medidas tomadas pela Corte Portuguesa em relação à sua colônia americana, após o declínio da mineração, estava a de inserir o cultivo em larga escala desse produto, originário da Etiópia, que tinha procura cada vez maior no mercado europeu e americano, por suas propriedades estimulantes – muito apreciadas num mundo cada vez mais industrializado. Assim, o café foi introduzido no Brasil ao final do século XVIII, porém foi no sudeste brasileiro que tomou ares de grande lavoura. Aos poucos, os antigos engenhos de cana foram se tornando fazendas de café. Em São Paulo, as primeiras plantações datam dessa época – finais do século XVIII – porém, é a partir do século XIX que as plantações começam a ter maior significação em sua economia, derrubando as matas e ocupando os mares de morro do Vale do Paraíba e depois seguindo pela região de Campinas e Itu, rumando posteriormente para o norte, em direção a Limeira e Rio Claro e, em seguida, a São Carlos, Araraquara – no sentido noroeste; e Casa Branca, Mococa, Ribeirão Preto, Franca – no sentido nordeste. Ao final do século XIX, as plantações eram expandidas para as regiões do chamado oeste novo – Araraquarense, Noroeste, Alta Paulista e Alta Sorocabana8.

Com a nova condição econômica, os casarões das fazendas começam a sofrer alterações, embora muito lentamente. Aos poucos, vão ficando maiores, o número de janelas e cômodos vai aumentando; porém, a sobriedade, a rusticidade, as técnicas construtivas são as mesmas de tempos passados.


Fazenda Bom Retiro, Bananal (SP), meados
do século XIX. Foto: Vladimir Benincasa.

As novidades da Europa e dos Estados Unidos, em matéria de conforto doméstico, como encanamentos de água e esgoto; as louças sanitárias; as calhas, os rufos e os condutores de águas pluviais de telhados; os vidros para as janelas; ou mesmo os novos estilos arquitetônicos; enfim, toda uma sorte de produtos industrializados e novas maneiras de morar ainda estão muito longe dos sertões brasileiros do início do século XIX.

A chegada da missão francesa9 e a mudança da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro contribuiriam para o início de uma mudança nesse sentido. Outros fatores também podem ser citados, como o surgimento de uma importante navegação a vapor pelos oceanos e a busca dos países industrializados (da Europa e da América do Norte) por novos mercados consumidores para seus produtos, que ajudaram a modernizar a casa brasileira, inclusive a rural.

A missão francesa ajudou a disseminar uma nova linguagem arquitetônica no Brasil, que já estava em voga pela Europa há algum tempo: o neoclassicismo. Nos distantes sertões paulistas, o neoclassicismo chegou de uma maneira bem superficial, restrito a alguns elementos de decoração de fachada (principalmente aqueles de linguagem da arquitetura greco-romana, como arcos plenos, cimalhas, capitéis etc.), e o uso de um ou outro elemento de ornamentação de interiores, como papéis de parede, lustres de cristal, mobiliário importado...

No entanto, a aparência geral das edificações se mantinha a mesma daquelas casas do ciclo açucareiro. Somente a partir da segunda metade do século XIX, com a implantação das ferrovias para o escoamento da produção cafeeira, é que as novidades em termos de construção e também as novas linguagens arquitetônicas penetram os sertões paulistas. Por essa época, já predominava na arquitetura europeia o historicismo, também conhecido como ecletismo. Essa linguagem surge em uma época que a industrialização havia se consolidado na Europa e nos Estados Unidos, havia um interesse enorme por novas ciências, inclusive a arqueologia. Foram as épocas das grandes escavações no Oriente Médio, na Grécia, na Itália, no Egito... Valorizava-se novamente a arquitetura dos vários períodos históricos, como o Românico, Gótico, o Renascimento, ou mesmo as arquiteturas mais tradicionais de cada país. Esse revivalismo, a princípio, gerou uma linguagem depurada de cada um desses períodos (às vezes, mais “autêntica” que a própria arquitetura antiga). No entanto, a seguir, essas linguagens foram se mesclando num mesmo edifício, gerando o ecletismo arquitetônico. É um período curioso, pois, apesar de um retrocesso no aspecto formal, deu-se um grande salto no nível tecnológico no tocante à construção civil.


Fazenda Riachuelo, Jaú (SP), final do século XIX.
Foto: Vladimir Benincasa.

O enriquecimento dos fazendeiros de café permitia-lhes enviar seus filhos para estudar na Europa e nos Estados Unidos, além de eles próprios terem contato com essa nova arquitetura e com os equipamentos de comodidade que iam surgindo. Todo esse novo modo de construir e, principalmente, viver foi sendo transplantado para as fazendas paulistas. A princípio, essa nova linguagem foi se mesclando à arquitetura mais tradicional; depois, foi suplantando-a.

Assim, novos materiais começam a ser mais usados, boa parte deles importados, trazidos por navios a vapor até o porto de Santos e, daí, pelas ferrovias que começavam a surgir pelo território paulista. A imigração também ajudou a difundir e a estabelecer essas novas formas de morar e construir, bem como a vinda de arquitetos e engenheiros estrangeiros ou brasileiros que se formavam na Europa e tinham nos fazendeiros grandes clientes.

Ao final do século XIX, as taipas de mão e de pilão praticamente desaparecem nos casarões rurais e, em seu lugar, dissemina-se o uso do tijolo, mais maleável e leve, permitindo construções mais sofisticadas. Algumas casas ainda são construídas com alvenaria de pedra em algumas regiões de São Paulo, onde esse material era abundante, como em São Carlos, Rio Claro, Itirapina, Ibaté – mas trata-se de um regionalismo.

Os porões baixos, que eliminam o interior da edificação da umidade do solo; as janelas e portas com folhas almofadadas ou venezianas, e folhas ou guilhotinas envidraçadas; as bandeiras com vidros coloridos; os gradis metálicos; os pisos assoalhados; forros trabalhados; paredes com pinturas ornamentais; o encanamento hidráulico; o surgimento do banheiro com água corrente e esgoto; o uso de telhas francesas; o aparecimento das platibandas e consequente uso de calhas e condutores de água pluvial... Tudo isso, e muitos outros elementos tornam-se comuns nas casas rurais paulistas ao final do século XIX, tornando-se mais internacionais e, claro, confortáveis.


Fazenda Boa Vista, Ribeirão Preto (SP), final do século XIX.
Foto: Vladimir Benincasa.

E não era só isso: novos cômodos surgem, como as salas de visitas; salas de jogos; bibliotecas; o fumoir (local para os homens fumarem elegantemente seus charutos importados); a copa; a sala de almoço; os corredores internos, que permitiam que as pessoas transitassem pela casa sem passar por vários cômodos... E os jardins com esculturas de porcelana ou mármore, lagos, repuxos, aves decorativas, flores e espécies arbóreas importadas...

A fazenda, e mais particularmente o casarão e sua área envoltória, reproduzia um pequeno éden particular, se transformava num cartão de visitas da sua produção cafeeira. Convidados ilustres de várias partes do mundo acorriam aos mais longínquos rincões paulistas para conhecer essa terra que ia se tornando mítica pela sua fertilidade, de onde saíam safras espantosas de café e alavancava-se toda a economia de uma nação. Inúmeras fazendas eram artigo de reportagens em revistas e jornais do mundo todo, a ponto de café e São Paulo terem quase se tornado uma coisa só.

Esse mesmo gigantismo das safras acabaria por determinar uma mudança radical nas fazendas do oeste novo. Os fazendeiros, tendo cada vez mais que tomar conta de seus vultosos negócios, acabam por mudarem-se para o ambiente urbano, de onde podem geri-los melhor. Isso também coincide com a Primeira Grande Guerra, em que os materiais importados tornam-se escassos, há crises econômicas, o café perde uma grande fatia de seus consumidores mundiais. Esses fatos internacionais repercutem nas fazendas que estavam sendo abertas: muitas delas passam então a ter seus casarões cada vez mais simples, a ponto de, em algumas, eles não existirem.


Fazenda Santa Fausta, Lins (SP), década de 1930.
Foto: Vladimir Benincasa.

Em outras, a sua arquitetura vai adquirindo a mesma linguagem da arquitetura urbana, perdendo aquele caráter rural que tinha sido construído ao longo do tempo. Na primeira metade do século XX, a circulação de revistas e jornais disseminou o gosto por uma arquitetura neocolonial, muitas vezes bastante simplificada, ou mesclada a outras linguagens...


Fazenda Santa Paulina, Casa Branca (SP), casa reformada entre 1958-1960,
quando perdeu suas características tradicionais do século XIX e
adquiriu feição neocolonial tardia. Foto: Vladimir Benincasa.

Outras linguagens arquitetônicas da segunda metade do século XX, aparentemente, não chegaram a definir um conjunto significativo de exemplares como as anteriores, ou talvez ainda não tenhamos um distanciamento histórico tão significativo para defini-lo. O fato é que, ao menos quando se trata de fazenda paulista, a imagem recorrente em nossa memória é a daquele imenso casarão assobradado, com incontáveis janelas e com um extenso e aconchegante alpendre à frente do terreiro.

Vladimir Benincasa é arquiteto e pesquisador da Escola de Engenharia de São Carlos, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

Notas

1 - Taipa de pilão: técnica construtiva de origem árabe muito usada pelos paulistas até o século XIX. É a parede feita com barro ligeiramente úmido e misturado com fibras vegetais, que é socado entre pranchões de madeira. Depois de seco o barro, as pranchas são retiradas. O resultado é uma parede muito espessa, às vezes possuindo cerca de 1,00m de largura ou mais, extremamente dura e muito resistente à compressão.

2 - Bruno, Ernani Silva. O equipamento da casa bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos. São Paulo: DPH da Prefeitura de São Paulo, 1977.

3 - Defendida em 2006, pelo MAE-USP, acessível pelo site de teses e dissertações da USP.

4 - Também defendida em 2006, pela FAU-USP, acessível pelo site de teses e dissertações da USP.

5 - Que ainda incluía os atuais territórios do Paraná, Mato Grosso e Goiás.

6 - Estrada que ligava a cidade de São Paulo às minas de Goiás e de Cuiabá, passando por Campinas, Mogi-Guaçu e Mogi-Mirim, Casa Branca, Franca, daí seguindo em direção ao centro-oeste brasileiro.

7 - Estrada aberta e abandonada várias vezes ao longo do século XVIII, que seguia quase inteiramente por terra de São Paulo até Cuiabá: passava por Itu, Piracicaba, pelas atuais cidades de São Pedro, Itirapina, São Carlos, Araraquara, São José do Rio Preto, seguia pelo rio Paraná acima, entrando pelo Paranaíba, seguindo em direção a Cuiabá.

8 - Esses nomes foram tomados das principais ferrovias que cortaram essas regiões.

9 - Uma equipe de artistas e cientistas contratada por D. João VI para trabalhar na mudança – principalmente – da paisagem do Rio de Janeiro, estabelecer um novo padrão de arte e de arquitetura e de ciências em geral, que teve repercussões em várias partes do Brasil.