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Artigo
Os arquitetos e o patrimônio
Por Ana Carmen Amorim Jara Casco
10/10/2010

As décadas iniciais do século XX representam, como já observado por vários estudiosos da época, um momento em que o olhar sobre as tradições se sobrepunha a um outro vanguardista, de aspiração moderna, que resultou no movimento modernista nas artes – literatura, artes plásticas, arquitetura. Intelectuais e artistas se deixavam inspirar pela descoberta do passado brasileiro, marcadamente, o período colonial resguardado no patrimônio mineiro, assim como pelo anseio de produzir uma arte representativa daquele momento e destituída da retórica dos estilos que procuravam reviver o passado. Era uma tentativa de produzir uma face moderna tradicional para o país e, nesse sentido, “uma arte nova deveria acompanhar os esforços de industrialização, incorporando tradições e culturas específicas” (Cavalcanti, 2000, p. 9). Segundo Cavalcanti, “a singularidade do modernismo brasileiro reside na ação concomitante e dialética de nossos intelectuais no desejo de construção utópica de um passado e de um futuro para a arte e para o próprio país”, ou seja, ao mesmo tempo em que criavam uma arte e uma arquitetura novas, arquitetos e artistas inventavam o passado que deveria ser cultuado como berço da cultura brasileira.

A historiadora Márcia Chuva observa, por exemplo, que o projeto de construção da nação empreendido pelo Estado Novo nos anos 1930 era marcado pela associação da modernidade à tradição e que seria característica marcante desse Estado a capacidade de abarcar grupos de intelectuais com projetos culturais que continham profundas distinções ideológicas (Chuva, 2000, p. 105). Entre esses intelectuais figuravam, por exemplo, os escritores Carlos Drummond de Andrade, considerado como iluminista em sua busca do universal como forma de escapar do provincianismo, e Mário de Andrade, considerado como romântico na sua busca do singular como uma unidade capaz de representar a identidade brasileira.

Do ponto de vista dos arquitetos e dos movimentos antagônicos que tomavam parte no cenário dos anos 1920-30, talvez seja possível traçar um paralelo e imaginar que a corrente neo-colonial, que preconizava um retorno aos elementos formais da arquitetura colonial, fosse uma expressão inspirada pelo romantismo, enquanto o modernismo, na busca de produzir novos valores formais afinados à tecnologia do seu tempo, se configuraria como uma expressão inspirada pelo iluminismo e culto da razão.

O processo de redescobrir o Brasil, vivido de forma apaixonada por artistas e intelectuais dos anos 1920, era devidamente inspirado pela troca com intelectuais e artistas franceses que nas primeiras décadas do século XX estiveram em São Paulo e no Rio de Janeiro, como o sociólogo francês Roger Bastide, professor da USP, o casal de antropólogos Dina e Claude Lévi-Strauss, assim como o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, que muito marcou os jovens arquitetos modernistas brasileiros que ansiavam por buscar uma expressão arquitetônica da sua época como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos, Jorge Moreira, José de Souza Reis, entre outros.

Por outro lado as viagens etnográficas empreendidas por Mário de Andrade – que buscava ardorosamente descobrir (ou reencontrar) na face múltipla e quase cubista de um Brasil erudito e popular a força e a tenacidade da cultura que sentia pulsar nas grandes cidades como São Paulo (a sua Paulicéia desvairada) – eram um saudável contraponto ao diálogo com os estrangeiros. Mário de Andrade, o fotógrafo, turista e etnógrafo amador, pai de Macunaíma, personagem que talvez mais romanticamente sirva para trair a sua visão do Brasil. E brinco aqui com a partilha do mesmo radical que as duas palavras latinas possuem: traducere, que significa conduzir além, transferir, traduzir, e tradere, que significa entregar, trair. Macunaíma traduz e trai a imagem do brasileiro com uma delicadeza poética e uma ingenuidade desconcertantes, romântica mesmo, como, imagino, Mário era. Como, imagino, Mário poetava.

O que talvez se possa pensar, a partir dessas ilustrações e fragmentos do processo cultural em curso no Brasil das primeiras décadas do século XX, é o quanto o intercâmbio com culturas nativas e estrangeiras esteve presente no processo de formulação de uma política pública voltada para a preservação da memória, da história e do patrimônio cultural brasileiros. Recentemente, por ocasião dos debates e formulação de políticas públicas para preservação do universo patrimonial denominado de imaterial ou intangível, novamente o Brasil abraça o diálogo com intelectuais e especialistas estrangeiros, franceses em particular, assim como com a observação de manifestações da diversidade cultural presentes no cotidiano da sociedade brasileira. Disso resulta a promulgação do decreto que trata da preservação do patrimônio imaterial, o que coloca o Brasil na vanguarda do processo de preservação de manifestações culturais que até então não tinham sido objeto de tutela específica1. Não se trata de uma repetição da história, mas talvez o traço de uma característica cultural brasileira, de país jovem, que procura afinar à arrogância da juventude a sabedoria de ouvir e dialogar com os mais velhos, na reinvenção de um permanente vir a ser nação. Juventude que, entre outras qualidades, nos permite o deleite de nos surpreendermos com a criatividade brasileira, transformadora, de absorver o que vem de fora e inventar o novo, de duvidar da fronteira entre o erudito e o popular, de assimilar o presente sem descartar o passado, de fazer sínteses muitas vezes insuspeitas e pouco ortodoxas entre a tradição e a modernidade. E poder guardar tudo isso nos arquivos, nas bibliotecas, nos museus, nos monumentos e nos documentos que colecionamos.

Fatos importantes marcaram as décadas de 1920 e 1930 do século XX como: a Semana de Arte Moderna de 1922, da qual participaram os artistas modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti, entre outros; a criação da Universidade de São Paulo e do Departamento de Cultura, que foi chefiado por Mário de Andrade; a reforma do ensino de arquitetura no Rio de Janeiro liderada pelo arquiteto Lucio Costa e que pretendia consolidar a distinção dos campos profissionais dos arquitetos e engenheiros; os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, fundados em 1928 na Suíça e responsáveis por definir o que seria o international style; o concurso para escolher o projeto do edifício do Ministério da Educação e Saúde (MES) no Rio; a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O ministro Gustavo Capanema, integrante do governo Vargas, foi o responsável por duas decisões que representaram, de forma decisiva, a inflexão cultural que consolidaria o amálgama de tradição e modernidade característico da cultura brasileira durante o Estado Novo, gestos simbólicos de um Estado que pretendia operar transformações políticas substanciais não apenas nas ações voltadas para as classes trabalhadoras como na educação e na cultura. Em primeiro lugar, se recusou a construir o projeto marajoara do arquiteto Arquimedes Memória, vencedor do concurso para construção do edifício do MES, e convidou Lucio Costa para desenvolver um projeto moderno com a consultoria de Le Corbusier. Memória era professor da Escola Nacional de Belas Artes e, com seu projeto, concluía a trilogia com os Ministérios da Justiça e do Trabalho, vizinhos do MES, na qual o estilo arquitetônico estava intimamente relacionado à construção de uma imagem do Estado que o representasse em sua força, autoridade e poder. A escala das edificações e o uso de um repertório formal que ia do ecletismo ao art déco, estilo que marcou inclusive outras importantes edificações do período, como o Ministério da Guerra e a estação de trens Central do Brasil, ao lado da abertura da Avenida Presidente Vargas, foram gestos arquitetônicos e urbanos que refletem até os dias atuais a imagem do Estado Novo no Rio de Janeiro. Não se pode deixar de observar que esses urbanismo, arquitetura e estilos muito se assemelhavam ao que vinha sendo construído na Itália de Mussolini na mesma época. O gesto do ministro de Vargas deu vida ao belo projeto modernista do atual Palácio Gustavo Capanema, já tombado pelo Iphan como um exemplar da arquitetura modernista brasileira em seus primórdios. Prédio que cumpre à risca algumas regras do modernismo, como o pano de vidro da fachada sul, os brises soleils da fachada norte, os jardins suspensos e o generoso pilotis de acesso.

A segunda importante decisão de Capanema foi encomendar a Mário de Andrade um projeto para a criação do Serviço do Patrimônio, instituição que viria a se tornar responsável pela salvaguarda da memória e do patrimônio cultural brasileiros. Na verdade, os dois gestos mostram a perspectiva vanguardista do ministro na escolha de intelectuais e profissionais que, de alguma forma, dialogavam de maneira sincrética com a tradição e a modernidade, que pudessem pensar a conservação do passado sem serem completamente conservadores. Alquimia de lidar com a ousadia, a paixão e o destempero de uns, a elegância discreta e firme de outros, as diferentes competências que transitavam entre os saberes da literatura, da arquitetura, das ciências sociais, das artes plásticas.

O projeto e a construção do Palácio Gustavo Capanema, antigo MES, foi mais um dos momentos chave de explicitação do acirramento de uma ruptura entre conservadores aliados ao movimento neocolonial, passadista, e os modernistas representados pelos arquitetos admiradores de Le Corbusier e simpatizantes dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, antenados com o seu tempo e fiéis a uma arte que exaltava a pureza formal, inspirada pela redescoberta dos valores existentes na arquitetura colonial brasileira e determinados a realizar a comunhão entre função e forma.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é o organismo do governo federal responsável, desde 1937, pela preservação do patrimônio cultural brasileiro. Criado no Estado Novo, o Iphan resultou do projeto elaborado por Mário de Andrade a convite de Capanema. Foi implantado e consolidado como ente da administração pública federal pelas habilidosas mãos do advogado e jornalista mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, que teve como importantes colaboradores o poeta Carlos Drummond de Andrade e o arquiteto e urbanista Lucio Costa, além de inúmeros outros representantes da intelectualidade brasileira e até mesmo internacional, que o rodearam e apoiaram nessa desafiante tarefa de identificar e proteger os traços mais representativos do que, naquele momento, se queria construir e revelar como a identidade brasileira, ingrediente fundamental da receita de nação preparada pelo governo do presidente Getúlio Vargas.

Rodrigo Melo Franco de Andrade reviu e deu formato um pouco diverso às ideias de Mário de Andrade. Este propunha a criação de um Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, no qual a arte aparecia como uma espécie de palavra guarda-chuva que recobria todas as gamas de valores que poderiam vir a ser atribuídos aos bens a serem protegidos; Rodrigo criou o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuja designação tecia uma decisiva aliança e distinção entre a história e a arte na atribuição de valores, divisão que até os dias atuais vem pautando a ação do órgão.

O Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que “organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, estabelece quatro diferentes categorias para enquadrar o patrimônio cultural brasileiro (re)descoberto e protegido ao longo do tempo pelo instrumento legal do tombamento. Essas categorias se refletem nos títulos dos quatro livros de inscrição criados pelo decreto, que são: Livro do tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico, Livro do tombo histórico, Livro do tombo das belas artes e Livro do tombo das artes aplicadas.

À inscrição em cada um desses livros correspondia (e corresponde) uma série de responsabilidades, deveres e obrigações, por parte do Estado e da sociedade civil, selando um pacto de co-responsabilidade em relação à preservação dos elementos que foram e são identificados como representativos de nossa(s) história(s), memória(s) e identidade(s) social(is). Esse pacto vem sendo, ao longo dos 73 anos de existência do Iphan, redesenhado pelas diferentes possibilidades de negociação que governos e sociedade experimentam. Neste sentido, é muito importante pontuar que, além do Iphan, organismos estaduais e municipais voltados para a preservação do patrimônio foram criados, tornando muito mais complexa e rica a missão de guardar e escrever a história cultural do Brasil. As diferentes políticas estabelecidas a partir de cada nível de governo contribuíram para a recente construção da proposta de criação do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural que vem sendo debatida, articulada e negociada nos últimos dois anos entre o governo federal, os governos estaduais e municipais e a sociedade civil. A organicidade desse sistema aponta para uma sensível estratégia de apoio, troca, fortalecimento das ações voltadas para a preservação do patrimônio e uma efetiva aproximação do poder público com a sociedade reconhecida como a principal guardiã de seu patrimônio.

A classificação de um bem nas diferentes categorias representadas pelos Livros do tombo resulta de um processo intelectual de pesquisa, identificação e valoração do objeto a ser protegido, que se dá em diferentes etapas, desde um trabalho técnico e especializado voltado para o estudo do objeto e a identificação de seu valor, até a chancela desse estudo por parte do Conselho Consultivo do Iphan, instância de deliberação coletiva formada por intelectuais de renome ligados às diferentes áreas de conhecimento que hoje contribuem para pensar e lidar com a política cultural de preservação do patrimônio brasileiro.

A institucionalização da missão de preservar o patrimônio cultural brasileiro se deu em um momento de ebulição política e cultural no Brasil, como procurei mostrar no início deste artigo. Aquela realidade contribuiu para enriquecer e dar densidade à criação do Iphan que, segundo o arquiteto e antropólogo Lauro Cavalcanti (2000), era uma instituição “apaixonante, contraditória, dialética e devoradora”. Atributos que de certa forma pautam até hoje as ações do órgão.

Um aspecto bastante importante na consolidação do Iphan foi a forte e decisiva aliança do arquiteto Lucio Costa com Rodrigo Melo Franco de Andrade. Lucio Costa representava, segundo a análise da antropóloga Mariza Veloso, o especialista, o conselheiro de Rodrigo, uma espécie de “teórico do patrimônio”. Segundo a autora, “ele possuía o carisma de um profeta, do conselheiro que, com suas orientações, ajuda a esclarecer as grandes dúvidas, a delinear o significado das categorias-chaves organizadoras do discurso sobre o patrimônio e, em última análise, a arbitrar sobre o que deveria ou não ser tombado” (Veloso, 1996).

Aqui talvez caiba uma observação de caráter biográfico que de alguma forma se articula com as influências do diálogo com estrangeiros na criação e consolidação inicial do campo da preservação do patrimônio. É curioso constatar que Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lucio Costa estudaram e viveram na França durante períodos da infância e juventude, e puderam, a partir de sua própria experiência de vida, realizar a mistura das culturas francesa e brasileira e suas formas de pensar o mundo. Construíram, como sujeitos híbridos, um projeto cultural sofisticado e avançado para o seu tempo, um projeto para o patrimônio que era genuinamente brasileiro e que, em sua brasilidade, procurava dialogar com as contribuições das outras culturas de dentro (diferentes etnias que nos conformam) e de fora (os estrangeiros).

A presença de arquitetos, paisagistas e urbanistas no cenário da preservação do patrimônio desde as primeiras décadas do século XX se reflete na rica e inestimável coleção de edificações, cidades, paisagens que integram um monumental arquivo de pedras a respeito da história da nação brasileira. É a partir da prioridade conferida aos vestígios materiais da cultura brasileira, espelhado em modelos preservacionistas europeus mais antigos, que se dá o processo de monumentalização de edifícios e cidades pelo reconhecimento de seu valor enquanto patrimônio cultural e a sua transformação em documentos que passam a testemunhar uma história que tem mais de 500 anos de vida.

Responsáveis pela identificação e avaliação desse patrimônio, os arquitetos, ao lado de outros importantes intelectuais das áreas da literatura, da história e da sociologia, realizaram a tarefa inicial de subsidiar a ação de tombamento dos bens considerados como portadores de valor e, muitas vezes, ameaçados de desaparecimento em função do crescimento e das transformações urbanas e culturais que as cidades e o campo sofreram em diferentes momentos e ciclos econômicos do país. Posteriormente e de forma complementar, passaram a atuar na conservação e restauração de edificações e estruturas históricas, bem como no tratamento das áreas envoltórias dos bens tombados, denominadas como “entorno”, assim como na incessante fiscalização desse patrimônio. Eram intelectuais e artífices, arquitetos, urbanistas e mestres de obras quando necessário. Estavam (re)descobrindo arquiteturas, implantações urbanas e sítios urbanos antigos com os quais talvez não tivessem familiaridade, mas que sabiam perceber como portadores dos valores genuínos de uma brasilidade originária, perseguida enquanto espécie de argamassa capaz de amalgamar o projeto de nação empreendido pelo Estado Novo. Descobriam e registravam, aprendiam a reparar, reproduzir e, muitas vezes, transformar antigas tecnologias e materiais. Lidavam com os modos de fazer e pensar de nossos ancestrais – arquitetos, mestres de obra, operários, moradores – e afunilavam esse saber pelo telescópio da sociedade industrial, da qual eram filhos e para a qual, em muitos momentos, desenvolveram um olhar crítico e discriminador, como a querela dos arquitetos modernistas contra o estilo eclético em voga no Brasil desde o final do século XIX até o início do século XX.

Muitos desses intelectuais, entre os quais figuravam os arquitetos, foram responsáveis por grande parte da produção de nossa história cultural relatada a partir do estudo dos testemunhos materiais dessa história nas diferentes áreas de conhecimento que integravam o Iphan, como arqueologia, etnografia, arquitetura, urbanismo, história da arte etc. Estudavam, produziam artigos, instruíam processos, definiam critérios de intervenção para os imóveis e cidades, identificavam a autoria de objetos, escreviam a história de artistas e artífices, alimentavam arquivos e bibliotecas nos quais grande parte da riqueza prática e reflexiva de seus trabalhos encontra-se guardada até os dias atuais.

Deixaram uma herança de bens tombados, mas também um patrimônio intelectual muitas vezes difícil de aquilatar e que ainda está por ser descoberto pelas novas gerações que os sucedem na lida com o patrimônio, seja como técnicos, seja como cidadãos interessados na sua história, no seu patrimônio. Traduziram, estudaram, registraram e produziram conhecimento a respeito de equipamentos urbanos como o Aqueduto da Carioca, no Rio de Janeiro (José de Souza Reis), as Casas de Câmara e Cadeia espalhadas pelo território brasileiro (Paulo Thedim Barreto), a arquitetura rural (Paulo Thedim Barreto e o engenheiro Joaquim Cardoso), o mobiliário luso-brasileiro e a arquitetura jesuítica no Brasil (Lucio Costa), formações urbanas (Silvio de Vasconcelos, Augusto da Silva Telles), arquitetura civil (Robert Smith), a casa de morada no Brasil (José Wasth Rodrigues), apenas para citar uma parte do que se encontra publicado e disponível para consulta em bibliotecas.

Segundo a historiadora Márcia Chuva (2009), participaram da empreitada inicial dos trabalhos do Iphan por ela estudada, entre os anos 1930-1940, os arquitetos: José de Souza Reis e Renato Soeiro, a partir de 1937; Lucio Costa e Edgard Jacinto, a partir de 1938; Lucas Mayerhofer, de 1939 a 1940; Alcides da Rocha Miranda e Paulo Thedim Barreto, a partir de 1940; Silvio de Vasconcelos, a partir de 1945. Neste aspecto, é muito interessante observar a relação de alguns destes profissionais com o movimento modernista e com as transformações em curso no período pela reformulação do ensino de arquitetura e a produção de uma arquitetura moderna brasileira. De forma lateral, porque não integraram o quadro efetivo do Iphan, estiveram presentes também na constituição do olhar arquitetônico sobre o patrimônio cultural brasileiro os arquitetos Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos e Jorge Moreira, que se aproximaram da instituição durante o já citado desenvolvimento do projeto para construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.

Os arquitetos tiveram, como se pode rapidamente notar neste breve artigo sobre uma história tão longa e densa, um papel decisivo na constituição do patrimônio, não apenas como instituição, mas como construção da coleção de bens representativos da cultura brasileira e de saberes. Ainda hoje, estão à frente dessa tarefa que continua central na gestão das políticas públicas responsáveis pela construção de nações autônomas, livres e respeitadoras de suas histórias.

Não seria possível citar o nome de todos os arquitetos que, ao longo do tempo, vêm desempenhando ainda como uma missão que talvez só tenha comparação com o sacerdócio, no que diz respeito à crença, dedicação e condições adversas de trabalho, a tarefa de dar continuidade ao sonho de preservação de nossos antepassados e transformá-lo em legado para as gerações futuras, sem cometer a indelicadeza de explicitar esquecimentos e deixar lacunas na lista dos nomes. Nenhuma pesquisa ainda se dedicou a estudar, como o fez a historiadora Márcia Chuva, o processo da história recente da instituição, identificando seus autores e atores. Hoje os arquitetos do Iphan dialogam com historiadores, antropólogos, engenheiros, geógrafos, arqueólogos etc, e exercitam a arte de relativizar seus conceitos e verdades.

Atualmente, o ensino de disciplinas agrupadas como “técnicas retrospectivas” faz parte do currículo obrigatório dos cursos de arquitetura e urbanismo, sendo ensinado tanto o universo teórico de formação do campo da preservação e da restauração, quanto as práticas projetuais inerentes a essa temática. Sem dúvida essa ampliação do ensino é uma conquista, uma transformação na formação profissional que se deve à atuação do Iphan e de seus pares estaduais e municipais, mas principalmente aos arquitetos pioneiros que aprenderam como uma espécie de ofício a lidar com as estrutura históricas, compreender o que estas lhes ensinavam e transmitir, através da preservação material, da prática e da escrita, seus saberes. Arquitetos que nos legaram a abertura de novos caminhos, que deixaram pegadas da sua passagem para que possamos seguir e fazer derivas.

Ana Carmen Amorim Jara Casco é arquiteta, técnica do Iphan responsável pela edição da Revista do Patrimônio e professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.

Referências bibliográficas:

Cavalcanti, Lauro (org.). 2000. Modernistas na repartição. 2ª edição rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC-Iphan.

Chuva, Márcia. 2009. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

FAU/USP & MEC-Iphan. 1975. Arquitetura Civil I. Textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1980 2ª reimpressão, São Paulo: FAU/USP.

________. 1980. Arquitetura Civil II. Textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1980 2ª reimpressão, São Paulo: FAU/USP.

________. 1978. Arquitetura religiosa. Textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, São Paulo: FAU/USP.

________. 1975. Arquitetura Civil III, mobiliário e alfaia. Textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1980 2ª reimpressão, São Paulo: FAU/USP.

________. 1978. Arquitetura Oficial I. Textos escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, São Paulo: FAU/USP.

Fonseca, Maria Cecília Londres. 2005. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC-Iphan.

Rubino, Silvana. 2002. “A memória de Mário”, in Revista do Patrimônio n.º 30, pp. 138-155.

Santos, Mariza Veloso Motta. 1996. “Nasce a Academia SPHAN”, in Revista do Patrimônio n.º 24, pp. 77-96.

Nota

1 - Decreto n.º 3551 de 4 de agosto de 2000 que “Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências.”