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Vivências efêmeras, lugares sem peso: a estetização nas cidades contemporâneas
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Vivências efêmeras, lugares sem peso: a estetização nas cidades contemporâneas
Por Leonardo Barci Castriota
10/10/2010
É hoje bastante comum se apontar que a urbanização contemporânea se caracteriza por uma crescente homogeneização da paisagem urbana, alimentada em parte pelo fato de, num mundo crescentemente globalizado, as cidades estarem passando a abrigar economias de serviços avançados. As cidades, que se apresentavam ao redor do mundo em suas mais diferentes configurações – formas-receptáculos de geografias e histórias distintas e irredutíveis, – passam, nesse início de milênio, cada vez mais a se parecer, apresentando traços comuns, detectáveis não só na presença das mesmas logomarcas e empresas transnacionais, mas também das mesmas tipologias construtivas – as torres da arquitetura corporativa, as estruturas aeroportuárias, os hotéis hollyday-inns, os complexos multiplex – e manifestando-se até na própria morfologia urbana – a urbanização difusa e os enclaves fortificados do new urbanism, que se espalham por todo o planeta. Cabe, no entanto, chamar igualmente a atenção para outro fenômeno correlato a essa homogeneização: nessas cidades modificadas do pós-fordismo, a estética – que por muito tempo parecera relegada frente à funcionalidade – passa a ocupar um papel proeminente, articulando um discurso visual poderoso e global. De fato, um “boom estetizante” parece perpassar hoje os diversos níveis da vida cotidiana, do styling individual e dos produtos de design à transformação massiva dos espaços públicos, com amplo rebatimento nas cidades.

Para refletir sobre a estetização nas cidades contemporâneas vamos recorrer a alguns autores que descrevem esse fenômeno, procurando circunscrevê-lo em suas diversas manifestações, atendo-nos, no entanto, mais particularmente àquelas abordagens que procuram entender os seus efeitos sobre os chamados “centros históricos”. Não nos limitando, porém, a uma abordagem fenomênica, vamos tentar nos interrogar mais profundamente sobre a articulação dessa estetização hodierna com o tipo específico de “vivência” do homem contemporâneo, perspectiva que nos coloca no coração de um tipo de reflexão de longa linhagem, sobre as conseqüências da modernidade na percepção, na memória e na recepção da arte.

A “urbanalização”: lugares sem peso
Saindo de uma análise abstrata e procurando ler essa nova “ordem visual”, o geógrafo catalão Francesc Muñoz cunha o termo “urbanalização”, com o qual procura compreender como as cidades vêm sendo afetadas de maneira concreta pela globalização. A primeira impressão passa, naturalmente, pela percepção de uma crescente homogeneização: “Se observarmos a paisagem urbana, vemos como cidades distintas – com história e cultura diversas, de populações e extensões nada comparáveis, e localizadas em lugares muito diferentes do planeta –, experimentam transformações muito similares e acabem produzindo um tipo de paisagem estandardizada e comum. Visitar centros históricos ou frentes marítimas em qualquer cidade nos produz a mesma impressão que dirigir por qualquer via expressa através de diferentes regiões metropolitanas: uma paisagem repetida e reincidente aparece ante nossos olhos que percorrem fragmentos do território cortados pelo mesmo padrão, num mesmo relato visual”1

No entanto, a “urbanalização” não seria, a seu ver, apenas o apagamento das diferenças, mas apresentaria uma dinâmica intrínseca muito mais complexa, articulada em torno de uma espécie de “gestão das diferenças”: para se obter como resultado uma paisagem comum, seria necessário também conseguir se absorver, em certo grau, o caráter “local”, que, no entanto, é sempre “domesticado” e expurgado dos seus elementos incômodos, que são “tratados” de forma a se tornarem palatáveis para um gosto global. O local aparece, então, nesses arranjos como um “tempero” exótico, que confere mais-valia a paisagens homogeneizadas.

Este diagnóstico não difere, em substância, daquele apresentado pelo Centro para os Assentamentos Humanos das Nações Unidas (Habitat), em seu relatório Cities in a globalizing world de 2001, onde já se lia: “O caráter histórico particular de uma cidade freqüentemente desaparece na busca direta e aberta de uma imagem internacional e de negócios internacionais. De Xangai a Joanesburgo, de Buenos Aires a Melbourne, de Hanói a São Petersburgo, uma classe executiva internacional molda escritórios, centros, hotéis de luxo, resorts e condomínios à sua própria imagem”.2

Esse processo afetaria inclusive os chamados “centros históricos”, que deveriam ser, de alguma forma, os repositórios das histórias – e das “diferenças” – locais: neles também as identidades se tornariam, como aponta o relatório do Habitat, apenas “um ornamento, um artefato de relações públicas projetado para ajudar o marketing”.

Numa abordagem bastante similar da mesma questão, Manuel Delgado, em seu artigo “Ciudades postizas”, chega a classificar os “centros históricos” de hoje como “falsificações”, derivadas das políticas de reabilitação em curso ao redor do mundo, associadas, como vimos, aos diversos espectros da globalização econômica, política e cultural. Essas políticas, que se esforçariam para transformar os “centros” em “centros históricos”, “reconvertendo-os”, combinariam estratégias que iriam do design urbano à proposta de “grandes instalações culturais – museus, centros de cultura, universidades – confiadas a arquitetos-estrela”, passando naturalmente pela já muito discutida “gentrificação”, pela “expulsão-exclusão dos setores populares” que até então tinham encontrado nesses centros seu “último refúgio”.3 

Essas remodelações seriam, a seu ver, o eixo fundamental de campanhas de promoção das cidades, que, imersas em processos da tercerização, teriam hoje pouco mais a oferecer, “caberia melhor dizer, vender”, que “sua própria imagem devidamente simplificada, convertida em mero logotipo ou marco capaz de atrair a esse turismo ávido de emoções e sensações que as agências lhes venderam e os guias de turismo lhes alardearam como 'culturais'”.3 No fundo, essas operações – que transformariam os centros históricos em mais um bem de consumo, representariam uma espécie de “apaziguamento” do urbano, expulsando dele toda diferença, toda heterogeneidade real. "Desatado o emaranhamento, expulsa qualquer marca de complexidade, o que sobra é uma encenação, que se constitui exatamente nisso: uma utopia, quer dizer, um lugar de nenhum lugar, uma realidade que não existe além dos limites de sua farsa, mas a que se concede o desejo de existir sob a forma do que não pode ser mais que uma mera paródia da perfeição".3

À cidade “real”, “sacudida por agitações com freqüência microscópicas, toda feita de densidades e espessuras, acontecimentos e usos nem sempre legítimos nem permitidos, deslocamentos que se generalizam”, se contraporia na era contemporânea essa “cidade monumentalizada”, tão bem sintetizada nesses novos centros “históricos”, assépticos e cenográficos. 

Há pouco mais de uma década, o filósofo alemão Wolfgang Welsch, em seu importante trabalho Grenzgänge der Ästhetik, já apontava para um processo contemporâneo de “estetização” da realidade, que perpassaria todas as esferas do vivido, chegando, no limite, a própria realidade a ser percebida como um “construto estético”. Se esse “boom estetizante” atingia cada vez mais elementos, indo da “estilização” individual até a economia e a teoria, ele se mostraria com muita força, no próprio espaço urbano, que seria como um primeiro nível desse processo, podendo se ver pelo mundo todo áreas urbanas inteiras sendo re-estruturadas esteticamente, para se tornarem “elegantes”, “chiques” e “centros de animação”. Na sua descrição irônica, as cidades estariam sofrendo uma espécie de facelifting, intervenção cirúrgica estética, que atingiria igualmente os centros históricos, as antigas áreas industriais ou degradadas das cidades e mesmo as novas periferias que se formavam, não escapando desse boom estetizante nem as pedras do calçamento das ruas, nem as maçanetas das portas. “Se pudessem”, conclui, “as sociedades industriais ocidentais avançadas transformariam in toto o meio-ambiente urbano, industrial e natural num cenário hiper-estético”.4

A cidade das vivências
Ao aprofundar sua análise desse fenômeno onipresente, Wolfgang Welsch nos apresenta uma chave importante de compreensão da cena contemporânea: para ele, essa hiper-estetização da realidade corresponderia, no fundo, a uma necessidade insaciável de se ter cada vez mais “vivências” (Erlebnisse), estando o mundo sendo crescentemente transformado num “espaço de vivências” (Erlebnisraum). Para o filósofo, a “vivência” seria, então, a palavra-chave nesse processo de “embelezamento” do mundo. "Toda butique e todo café têm que ser hoje “ativadores de vivências”. As estações de trem na Alemanha já não são chamadas “estações de trem” mas se denominam, desde que passaram a ser adornadas pela arte, “mundo de vivências com conexões ferroviárias”. Em nosso dia a dia, saímos de um “escritório de vivências” para uma “vivência de compras”, descansamos numa “vivência gastronômica” e desembarcamos, por fim, em casa numa “vivência do habitar”. Há inclusive sugestões de se encenar os monumentos – por exemplo, aqueles sobre o terror nazista – como “espaços de vivência”.4 

Se em sua análise recorre a autores contemporâneos como Gerhardt Schultz, que, nos anos 1990, falava de uma “sociedade de vivências” (Erlebnisgesellschaft) como chave para uma “sociologia do presente”5, Welsch nos remete, na verdade, a uma temática, já consolidada há bastante tempo na tradição alemã, que contrapõe a “experiência” (Erfahrung) à “vivência” (Erlebnis). Dentre os diversos autores que se situam em tal tradição, a abordagem de Walter Benjamin (1893-1940) nos parece muito adequada para enfocar a hiper-estetização da realidade contemporânea, na medida em que esse filósofo judeu-alemão relaciona a temática da vivência às mudanças trazidas pela modernidade aos domínios da percepção, da recepção da arte e da própria memória. De fato, no esquema delineado por Benjamin, a “experiência (Erfahrung)”, que permitia um conhecimento e uma moral concretos e não reduzidos no mundo pré-moderno e que era transmitida predominantemente pela narração, vai ser substituída, na modernidade, pela “vivência (Erlebnis)” individual e solitária do indivíduo moderno. “Erlebnis”, define Leandro Konder, vai ser, em contrapartida à experiência sempre coletiva, “a vivência do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos  imediatos”.6,11

Benjamin não compartilhava com a visão positiva que alguns filósofos seus contemporâneos reservavam à vivência: para ele, nada parecia apontar para a emergência de uma nova síntese, de uma nova totalidade épica na modernidade. Com o desaparecimento da experiência coletiva tradicional, aprofundava-se, a seu ver, o processo de fragmentação e “não só a totalidade harmoniosa do epos”, mas também a própria totalidade dilacerada do romance – que Benjamin apresenta como uma síntese provisória moderna – estariam “ameaçadas, sem possibilidade de retorno”7. Com a transformação na estrutura da experiência — no sentido de sua crescente desarticulação — parecia-lhe ficar cada vez mais restrita a possibilidade de se alcançar uma nova totalidade nos tempos modernos, entrevista por autores como Lukács.

A própria memória também seria profundamente afetada pela nova estrutura de vivências do homem moderno, que passaria a ter acesso a ela apenas através da “memória involuntária”, termo que Benjamin toma emprestado de Proust. Para uma explicação de tal transformação, o filósofo vai recorrer, no entanto, a outra fonte: ao Freud de Além do princípio do prazer, obra na qual se estabeleceria, a seu ver, “uma correlação entre a memória (na acepção de mémoire involontaire) e o consciente”, através do princípio segundo o qual o consciente surgiria “no lugar de uma impressão mnemônica”. De acordo com esta hipótese, o consciente se caracterizaria pela particularidade de que o “processo estimulador” não deixaria nele “qualquer modificação duradoura de seus elementos, como acontece em todos os outros sistemas psíquicos, porém como que se esfumaça no fenômeno da conscientização”.*N1 Benjamin traduz essas afirmações em termos proustianos: “Só pode se tornar componente da mémoire involontaire aquilo que não foi expressa e conscientemente ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito como ‘vivência’”.8 Para Freud, a função de acumular traços permanentes como fundamento da memória estaria reservado a “outros sistemas”, constatação que Benjamin também vê representada na obra de Proust: “Proust trata desses 'outros sistemas' de maneiras diversas, representando-os, de preferência, por meio dos membros do corpo humano, falando incansavelmente das imagens mnemônicas neles contidas e de como, repentinamente, elas penetram no consciente independentemente de qualquer sinal deste, desde que uma coxa, um braço ou uma omoplata assuma involuntariamente, na cama, uma posição, tal como o fizeram uma vez no passado”.8 

O consciente, segundo esta leitura benjaminiana, "como tal não registraria absolutamente nenhum traço mnemônico", tendo sim outra função importante: "a de agir como proteção contra estímulos". Benjamin cita Freud: "Para o organismo vivo, proteger-se contra os estímulos é uma função quase mais importante do que recebê-los; o organismo está dotado de reservas de energia próprias e, acima de tudo, deve estar empenhado em preservar as formas específicas de conversão de energia nele operantes contra a influência uniformizante e, por conseguinte, destrutiva das imensas energias ativas no exterior".8,N1
A ameaça dessas energias se faria sentir através de “choques”: quanto mais corrente se tornasse o registro desses choques no consciente, menos traumático seria o seu efeito. Este seria, então, para o filósofo, a estrutura que marcaria a percepção e a memória do homem moderno: assoberbada por “choques” constantes, a consciência humana trataria muito mais de se proteger do que de incorporar esses estímulos. O homem moderno viveria, assim, uma espécie de “treinamento no controle dos estímulos”, que caberia ao consciente.

Benjamin explicita esse processo: “O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida no sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento ao acervo das lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência poética".8 

Assim, quanto maior for a participação do choque em cada uma das impressões, “tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger contra os estímulos”. E, conseqüentemente, quanto maior for o êxito com que se operar essa proteção “tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência”.8 

Esta é a forma, portanto, pela qual se manifesta o que Benjamin denomina “choque (Schock)”, que vai determinar, a seu ver, toda a estrutura da “vivência” do homem moderno. Com efeito, para o filósofo, acompanhando Georg Simmel neste ponto, a modernidade se caracterizaria pela intensificação, levada ao paroxismo, das situações de choque, em todos os domínios. O choque se imporia, assim, como realidade onipresente na modernidade, manifestando-se nos diversos aspectos da vida, da experiência de “tomar um banho de multidão”, proposta por Baudelaire, até o trabalho mecânico repetitivo do operário.

A experiência do choque terminaria, com isso, por produzir um novo tipo de sensibilidade, onde “a instância psíquica encarregada de captar e observar o choque passa a predominar sobre as instâncias encarregadas de armazenar as impressões na memória”, como explica Sérgio Paulo Rouanet13. Diferentemente da sensibilidade tradicional, onde consciente e inconsciente, esforço voluntário e eventos involuntários se combinavam numa memória que ainda podia evocar o passado e as experiências coletivas, o homem moderno vê-se reduzido a uma percepção concentrada na interceptação do choque, em sua neutralização. Nelson Brissac Peixoto comenta: “A tomada de consciência nesse caso tem a função de, como em Simmel, servir de proteção contra os estímulos, sublimar os impactos, amadurecendo o susto em angústia ou diversão, para não sucumbir ao espanto”.9,12

Para Benjamim seria, então, essa “vivência” que marcaria a percepção e a sensibilidade do homem moderno, que encontraria diversas manifestações: da atitude blasé do homem das grandes metrópoles de Simmel à difícil recepção pelo público de alguns tipos de arte, como a poesia e as artes plásticas, que, neste momento, tentam absorver o choque como seu próprio método. Em relação a esse último ponto, cabe lembrar que para o filósofo, a montagem no cinema seria – ao revés – o exemplo perfeito de ajuste à nova sensibilidade epidérmica do homem moderno, na medida em que sua montagem já incorporava o “choque”. Com isso, o cinema “falaria” de forma mais direta – e progressista – às massas: a dificuldade sentida por elas frente à arte tradicional – as pinturas dos futuristas ou as colagens dos cubistas – cederia lugar a uma apreensão desatenta – e prazerosa – reservada ao cinema de Charles Chaplin ou de Disney. Ao mesmo tempo, por ser uma arte essencialmente coletiva – tanto em sua produção quanto em sua recepção, o cinema também se prestaria mais facilmente ao controle social do público, que poderia exercer crítica sobre ele.

Com essa chave otimista, Benjamin via na arte moderna afinada com as novas possibilidades tecnológicas a possibilidade de se contrapor à regressiva “estetização da política”, que vinha sendo realizada, sem pejo, pelo fascismo, que, a seu ver, permitia às massas a “expressão da sua natureza” mas não “de seus direitos”, mantendo intocadas as relações de produção. À “estetização da política” – que em última instância levava à exaltação do conflito bélico, Benjamin propunha contrapor a “politização da arte”, com a incorporação por parte desta das perspectivas emancipadoras trazidas pelas novas possibilidades técnicas – entre as quais se destacam a perda da aura – e, por conseqüência do poder de autoridade canônico da arte – e a diminuição da distância entre produtor e receptor, cabendo ao público um papel mais ativo e crítico. Na obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o público de simples receptor passivo passaria, de certa forma, também a produtor.

No entanto, essa promessa, vislumbrada por Benjamin na década de 1930, não parece ter se realizado: para Wolfgang Welsch, hoje o próprio campo da arte, ao invés de contribuir com seus mecanismos de choque para uma percepção mais progressista e crítica das massas, se juntaria a outros mecanismos da indústria cultura para alimentar um “maquinário vivencial”, recriando uma “dialética de tais pseudo-vivências”. “A frustração com as vivências, que na verdade não são vivências”, denuncia, “leva as pessoas cada vez mais rapidamente de uma vivência a outra”, o que se manifestaria, a seu ver, de maneira exemplar nos mega-eventos artísticos, como a Monumenta de Kassel de 1992, regida predominantemente pela lógica do mercado da arte e cujo sucesso de público não correspondia à sua (falta de) qualidade4. Assim, as leis da indústria do entretenimento, da “indústria cultural”, se manifestariam cada vez mais fortemente no próprio campo da arte, inserindo-a num circuito de estetização total da realidade.

Neste ponto, ao apontar o caráter regressivo do processo contemporâneo – mais amplo – de “estetização” da realidade, e não apenas da arte, Welsch se aproxima da perspectiva pessimista de Adorno e Horkheimer10: neste nível, estetização significaria muito mais “revestir” a realidade com elementos estéticos, “confeitando-se” o real com um “charme” artístico, que realizar o programa da arte de vanguarda, de dissolução ou ampliação das fronteiras da arte, dissolvendo-se, de vez, o antigo sonho de se melhorar a vida e a realidade com a introdução da arte. Isso, diga-se de passagem, só vai ser possível com a apropriação seletiva pelo mercado justamente daqueles elementos mais superficiais da arte – a sua “aparência” estética, afastando-se o seu poder de negatividade, transformando-se o “belo” (schön) multidimensional na “belezura” (hübsch), unidimensional e plana, facilmente apropriável. "Quando John Cage ou Beuys pregavam uma ampliação ou dissolução do conceito da arte, pensavam que se deveria compreender como “artístico” algo não-artístico, e, com isso, se ampliaria e se mudaria o próprio conceito de arte. Já na estetização atual, no entanto, dá-se justamente o contrário, transmitindo-se para a realidade propriedades tradicionais da arte, ficando o cotidiano “sobrecarregado” de caráter artístico".4 

Essa seria também a operação em curso no espaço urbano contemporâneo, da qual não escapam nas palavras de Welsch nem as pedras do calçamento, nem as próprias maçanetas: a sua estetização corresponderia, de fato, a uma redução de sua diversidade, a uma “domesticação” da complexidade e ao afastamento de qualquer “negatividade”, com a finalidade de moldar melhor os cenários a um consumo global por parte dos cidadãos-turistas.


Leonardo Barci Castriota é professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

*Este artigo foi originalmente apresentado no III Seminário de Geografia, Turismo e Patrimônio Cultural, realizado na Unicamp, em abril de 2010.


Referências bibliográficas
1- MUÑOZ, Francesc. Urbanalización. Paisajes comunes, lugares globales. Barcelona: Gustavo Gilli, 2008.
2- UNITED NATIONS CENTRE FOR HUMAN SETTLEMENTS (HABITAT). Cities in a globalizing world: Global report on human settlements 2001. London: earthscan Publications Ltd., 2001.
3- DELGADO, Manuel. Ciudades postizas. El 'centro histórico' como falsificación. G + C. Revista internacional de gestión y cultura contemporánea. Granada: Área de Trabajo, 2009. No.2. La ciudad temática. p. 18-21.
4- WELSCH, Wolfgang. Grenzgänge der Ästhetik. Stuttgart: Reclam, 1996.
5- SCHULTZ, Gerhardt. Die Erlebnisgesellschaft. Kultursoziologie der Gegenwart. Frankfurt am Main: Campus, 1992.
6- KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1988.
7- GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lukács e a crítica da cultura. In: ANTUNES, Ricardo; RÊGO, LEÃO, Walquiria D. (Org.). Lukácas: um Galileu no século XX. São Paulo: Boitempo, 1996.
8-BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas, vol. 3)
9- PEIXOTO, Nelson Brissac. A sedução da barbárie: o marxismo da modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1983.
10- ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
11- JAY, Martin. As idéias de Adorno. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
12- COHEN, Margaret. Profane illumination. Walter Benjamin and the Paris of surrealist revolution. Berkeley: University of California Press, 1995.
 
Notas
N1-FREUD, Sigmund. Jenseits der Lustprinzips, Viena, 1923. 3a. ed., apud BENJAMIN, Walter, 1989.