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Artigo
O futuro do diagnóstico psiquiátrico no século XXI: a proposta de revisão do DSM
Por Yuan-Pang Wang
10/03/2011
A Associação Psiquiátrica Americana (APA) planeja lançar a quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM-V) em 2013. Este livro representa a revisão da obra mais influente na área de psiquiatria contemporânea e já consumiu mais de uma década de estudos para produzir as recomendações de classificação dos transtornos mentais.
O texto definitivo do DSM-V ainda não está pronto. Chefiados pelo professor David J. Kupfer, da Universidade de Pittsburg, e pelo doutor Darrel A. Regier, da APA, mais de 600 especialistas mundiais da saúde mental se reúnem desde 1999 para debater os caminhos do diagnóstico psiquiátrico no século XXI. Os cientistas envolvidos foram agrupados tematicamente para oferecer recomendações nas seguintes áreas: nomenclatura, a neurociência, o desenvolvimento, prejuízo e incapacitação, problemas transculturais e lacunas no sistema atual de diagnóstico. Os dois líderes enfrentaram críticas de várias áreas, bem como dilemas científicos e pressões políticas, para que os novos critérios diagnósticos contenham os novos avanços científicos na conceituação de transtornos mentais, mas que também atendam às necessidades dos pacientes.

A quarta edição do DSM foi publicada originalmente em 1994 e revisada em 2000, repleta de ressalvas e críticas pelos especialistas e usuários de saúde mental. As 357 categorias do DSM-IV são definidas como um padrão de comportamento ou síndrome psicológica, clinicamente significativa (com sofrimento, incapacitação ou perda da liberdade individual), que não representa respostas esperadas ou culturalmente sancionadas (por exemplo, reação de luto), nem desvios e conflitos socialmente determinados (por exemplo, política, religião e sexualidade). A classificação do DSM-IV é baseada numa lista ideal de sintomas, sem que a sua causalidade seja presumida ou exigida. A abordagem de classificação é categorial, isto é, permite descrever a presença ou ausência de um transtorno mental. Dois indivíduos que se queixam de quatro dos nove sintomas definidores de “depressão maior” são diagnosticados e tratados como equivalentes, sem levar em conta a intensidade dos sintomas presentes. Segundo o professor Kupfer, a principal inovação do DSM-V é introduzir o conceito de “dimensão”. Este tipo de classificação considera a intensidade e gravidade dos sintomas, com indicadores de sofrimento subjetivos e o grau de prejuízo associado (por exemplo, o risco de suicídio).
Além disso, as motivações para revisar o DSM-IV foram impulsionadas pelo rápido avanço do conhecimento científico, como os achados genéticos que revelaram similaridades entre transtorno bipolar e esquizofrenia e os estudos de imagem cerebral que diferenciaram os circuitos neurais das compulsões e as diversas formas de adicção. Em linhas gerais, recomenda-se que o novo sistema de diagnóstico tenha a sua validade reforçada por indicadores como a significância prognóstica, a disfunção psicobiológica e a resposta ao tratamento. Espera-se que os diagnósticos ganhem uma maior utilidade, através da conceituação precisa de uma condição mental transtornada, facilitando a sua avaliação e tratamento. Ponderando sobre o equilíbrio entre o potencial benefício e o abuso maléfico das mudanças, o DSM-V vai considerar as formas leves e fronteiriças de um quadro clínico, bem como a influência de fatores neurobiológicos. Entretanto, o professor Kupfer advoga que as mudanças sejam propostas somente quando há suficiente evidência científica para justificá-las. Os especialistas do DSM-V concordam que as mudanças no atual sistema de classificação devem se basear em dados empíricos. Para tanto, antes de propor mudanças significativas, os marcadores biológicos e contextuais precisam ser identificados a partir de investigações relevantes.
Entre as principais mudanças em pauta, o DSM-V pretende reduzir o excesso de categorias de transtornos mentais do DSM-IV através da abordagem dimensional. Por exemplo, os doze transtornos de personalidade serão agrupados em cinco: limítrofe, esquizotípico, evitador, obsessivo-compulsivo e antissocial/psicopatático. O “prejuízo cognitivo leve” representa uma forma neurocognitiva menor da demência de Alzheimer.
Algumas novas propostas diagnósticas, entretanto, devem causar rebuliço na comunidade acadêmica, como é o diagnóstico de “síndrome de risco pré-psicótico” – aplicável aos jovens ainda sem sintomas típicos de psicose – e uma redefinição dos transtornos do espectro do autismo que eliminaria a síndrome de Asperger, considerada por muitos como uma forma leve de autismo. Em resposta aos excessos diagnósticos de transtorno bipolar em crianças, o rótulo de “transtorno disfórico de desregulação de temperamento” é introduzido para descrever formas graves de explosões de raiva, alternando com estados negativos de humor. Os transtornos de jogo patológico ganhariam o status de “adicção”, com a retirada da distinção entre dependência e abuso de substâncias (álcool e drogas). A adicção à “internet” ainda está em debate e os supostos casos de “dependência ao sexo” recebem o rótulo controverso de transtorno de “hipersexualidade”.
Controvérsias e debates em torno das principais mudanças têm retardado a elaboração do seu texto definitivo. Contudo, o esboço dos novos critérios do DSM-V foi posto à prova em trabalhos de campo em 2010. A questão de fundo nos traz de volta ao objetivo fundamental de um sistema de classificação, que é auxiliar os médicos a ajudar os seus pacientes. É inegável que ainda há muito caminho pela frente, mas o campo da psiquiatria está em constante evolução e, portanto, as pesquisas e o tratamento dos transtornos mentais devem sofrer mudanças substanciais no século XXI.

Yuan-Pang Wang é doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo, médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e professor de pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Leitura complementar:

Kupfer, D.J.; First, M.B.; Regier, M.D. (eds.) A research agenda for DSM-V. Washington, D.C.: American Psychiatric Association, 2002.

McHugh, P.R. “Striving for coherence. Psychiatry’s efforts over classification”. JAMA 2005; 293: 2526-8.

Helzer, J.D.; Kraemer, H.C.; Krueger, R.F.; Wittchen, H-U; Sirovatka, P.J.; Regier, D.A. (eds.) Dimensional approaches in diagnostic classification: refining the research agenda for DSM-V. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, 2008.

Miller, G; Holden, C. “Psychiatry. Proposed revisions to psychiatry's canon unveiled”. Science 2010; 327(5967):770-1.

APA: DSM-5. DSM-5: the future of psychiatric diagnosis. Disponível em URL: http://www.dsm5.org/. Acesso em 28 de Fevereiro de 2011.