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Artigo
Financeirização e crescimento econômico: o caso do Brasil
Por Miguel Bruno
10/05/2011

Três condições necessárias se conjugam e se reforçam mutuamente no processo de desenvolvimento econômico e social: a) a aceleração do crescimento econômico e sua permanência em trajetórias sustentáveis por um longo período de tempo – no caso brasileiro, no mínimo por três décadas; b) distribuição de renda e acesso ao estoque de riquezas (terras agricultáveis, recursos naturais e demais ativos produtivos e financeiros) de forma equitativa por todos os membros da sociedade – o pressuposto é o de que a desigualdade de renda e de oportunidades de ascensão social é um resultado da elevada concentração de ativos em poder de uma minoria de proprietários e detentores de capital, pois a renda e a riqueza disponível provêm precisamente desses ativos; e c) implementação de estruturas de bem-estar social através da oferta pública, ampla e universal de serviços de saúde, transporte, educação e seguridade social (previdência e assistência social) – porém, essas estruturas devem basear-se, principalmente, em valores de solidariedade e compromisso social e não em valores puramente mercantis e individualistas.

Essas três condições precisam, no entanto, de recursos para seu financiamento adequado e a variável-chave que as impulsiona é o investimento produtivo ou formação de capital fixo. O investimento produtivo corresponde à aquisição de máquinas, equipamentos e construções não-residenciais que materializam as estruturas de produção e de distribuição do produto em um país ou região. Quanto mais alta a taxa de investimento – razão entre o investimento e o PIB – maiores serão as taxas de crescimento econômico e de geração de renda e de emprego, necessárias ao desenvolvimento social.

Apesar de seu indubitável potencial produtivo, derivado de sua dimensão geográfica continental e das disponibilidades de recursos naturais e de força de trabalho, atualmente o Brasil apresenta grande dificuldade para elevar suas taxas de crescimento e mantê-las altas e estáveis por longos períodos. O próprio modelo econômico e a política econômica que pressupõe, periódica e deliberadamente, abortam as expansões fortes da economia, pois elas são tidas como arriscadas demais por seus supostos impactos sobre a inflação e sobre as contas externas. Mas o principal motivo é a existência de fatores internos à sua própria economia que tornam o investimento pouco atrativo aos detentores de capital e não, como alardeado pela vulgata, uma insuficiência de poupança interna ou a existência de um setor público ineficiente e perdulário. Na realidade, dentre os principais fatores de bloqueio do desenvolvimento brasileiro, encontra-se a vigência de um processo particular de financeirização de sua economia. Mas o que significa financeirização e quais suas consequências? As próximas seções procurarão expor suas características e as formas que assume numa economia como a brasileira.

O fenômeno da financeirização

O conceito de financeirização – financialization, em inglês – é relativamente recente na literatura econômica internacional. As primeiras análises que o utilizaram apareceram nos anos 1990, e uma simples busca na internet revelará a profusão de trabalhos que já versam sobre o tema, com estudos sobre esse fenômeno para muitos países do mundo. A financeirização manifesta-se pela vigência de um padrão de funcionamento das economias onde a acumulação de riquezas desenvolve-se, de forma preponderante, por canais financeiros e não através das atividades diretamente produtivas (indústria, comércio e agricultura).

A possibilidade de acumulação de riquezas a partir de operações bancárias e financeiras está sempre presente em toda economia capitalista que apresente um grau mínimo de desenvolvimento financeiro. No entanto, quando é generalizada mediante a criação de um leque amplo de ativos financeiros que concorrem vantajosamente com os ativos produtivos no que concerne à liquidez, risco e rentabilidade, diz-se que a economia está sujeita a um processo de financeirização. Nessas condições macroeconômicas e estruturais, os detentores de capital podem, com facilidade e garantia do próprio Estado, revalorizar seus recursos através da alocação em títulos e valores mobiliários (títulos da dívida pública, títulos privados, ações, fundos, etc.), permanecendo líquidos e praticamente sem riscos consideráveis em suas operações. A questão-chave, por suas consequências para o desenvolvimento social e econômico, é que essa maior atratividade das operações financeiras tende a reduzir as mobilizações de capital nos setores produtivos da economia, já que estas são tidas como arriscadas demais em comparação às alternativas de aplicação financeira das poupanças de famílias e de empresas.

Do ponto de vista do debate acadêmico, a noção de financeirização tem o objetivo de proporcionar uma perspectiva crítica aos pressupostos fundamentais da teoria econômica convencional. Para esta teoria, os mercados financeiros são sempre eficientes, ou seja, são sempre capazes de se auto-equilibrar e de compatibilizar os interesses dos detentores de capital com o que é melhor para o conjunto da economia e da sociedade. Porém, os estudos de caso têm mostrado que não é exatamente isso o que ocorre. De fato, o aprofundamento dos processos de financeirização, que a própria liberalização das finanças promove em escala global, tem aumentado a frequência das crises bancárias e financeiras e impedido as economias de alçarem trajetórias sustentáveis de alto crescimento com distribuição equitativa da renda. Diferentemente do que ocorre com os mercados de produtos, cuja demanda varia inversamente com os preços de venda – nos mercados financeiros, quando os preços sobem, a demanda por ativos também sobe. Por exemplo, a subida dos preços das ações estimula a sua compra e a demanda por esses ativos cresce. Isso significa que as posições de equilíbrio desses mercados de ativos financeiros, tão caras aos economistas, frequentemente encontram-se no limite do estouro das bolhas especulativas e das crises financeiras de alta intensidade, como a crise americana atual, e então já é tarde demais.

O caso brasileiro: financeirização e acumulação rentista

As pesquisas recentes sobre o atual padrão de crescimento no Brasil apresentam evidências empíricas de vigência de um processo particular de financeirização por juros, que subordina o Estado e mantém a economia refém das expectativas dos mercados financeiros. Neste país, o processo de financeirização reproduz-se, predominantemente, por ativos de renda fixa e derivativos conectados direta ou indiretamente ao endividamento público e sob as mais altas taxas reais de juros do planeta. A lógica de valorização financeira e sua elevada rentabilidade sobrepõem-se aos setores produtivos, afetando-lhes as formas de gestão e induzindo-lhes à contenção salarial e ao baixo investimento em ampliação da capacidade produtiva instalada. Paralelamente, a autonomia da política econômica e as margens de manobra do Estado tornam-se muito reduzidas. As expectativas econômicas voltam-se, prioritariamente, para o curto prazo, explicando-se assim a grande importância atribuída às análises de conjuntura, nos últimos 20 anos.

Em consequência, horizontes temporais mais longos, mas necessários aos projetos de investimento produtivo que promovem o desenvolvimento econômico e social, são naturalmente postos em segundo plano ou simplesmente descartados pelas decisões empresariais. Tais investimentos de longa maturação são normalmente deslanchados apenas com o apoio institucional e financeiro do Estado, a exemplo dos financiamentos públicos do sistema BNDES. Nessas condições de elevado peso político do capital financeiro sobre o aparelho de Estado, e dado o controle que possui sobre a grande mídia, a formatação e condução da política econômica sofrerá forte ingerência dos interesses das classes rentistas e do sistema bancário-financeiro. Daí a ênfase unitária no combate à inflação e na manutenção da estabilidade das finanças, convertendo o emprego e o crescimento econômico em variáveis de ajustes para o alcance desse objetivo. Em outros termos, menos crescimento e menos emprego são os remédios amargos da ênfase na estabilidade financeira e de preços, quando a economia está sujeita à lógica da acumulação rentista sob condições estruturais da financeirização por juros.

Consequências da financeirização da economia brasileira

Entre os diversos impactos prejudiciais ao desenvolvimento econômico e social, podem ser destacados os seguintes:

a) Esterilização da poupança de famílias e de empresas por seu uso improdutivo – Mesmo que haja recursos disponíveis não consumidos que poderiam ser canalizados para as atividades geradoras de renda e de emprego (caso em que tais recursos convertem-se em poupança produtiva), as finanças permanecem muito mais atrativas por seus ganhos rápidos, com baixo risco e alta liquidez das operações. Em termos keynesianos, a financeirização exacerba e eleva a um paroxismo a preferência pela liquidez dos agentes econômicos, afastando-os das imobilizações de capital nas atividades produtivas, precisamente aquelas necessárias ao desenvolvimento econômico e social. Esta característica expressa-se como mais uma das contradições das políticas neoliberais: a pretensão de reduzir os papéis econômicos do Estado choca-se frontalmente com a maior demanda por seus serviços: por exemplo, a demanda de financiamentos a custo subsidiado e a demanda por benefícios de seguridade social, já que o nível e a duração do desemprego serão necessariamente maiores.

b) Perda de autonomia da política econômica – A opção por um padrão de inserção internacional que prioriza a liberalização financeira focada nas demandas de valorização rentista dos capitais de curto prazo promove a expansão da dívida pública interna. Isso ocorre porque o Estado tem que esterilizar o grande volume de reservas internacionais e o faz mediante emissão de mais dívida pública. O Estado é premido a tornar-se o “fiador” desse tipo de adesão neoliberal aos mercados financeiros globais. Mas para isso, ele promoverá uma expansão sem precedentes da carga tributária sobre as atividades produtivas e sobre o trabalho, já que tem de pagar fluxos de juros sempre generosos ao setor financeiro e às classes rentistas. Em consequência, a política fiscal e monetária perdem eficiência e deixam de ser instrumentos de promoção do crescimento econômico e de geração de emprego para tornarem-se instrumentos a serviço da estabilidade financeira sob liberalização profunda da conta de capitais.

c) Tendência à forte apreciação real da taxa de câmbio – Se a excessiva valorização do real frente ao dólar pode contribuir para a estabilidade de preços, o desenvolvimento industrial e dos setores de alta tecnologia fica comprometido. Os dados mostram que os setores que mais investem hoje no Brasil são os intensivos em recursos naturais e em escala, pois são setores pouco sensíveis ao câmbio. Não é à toa que, atualmente, as commodities representam mais de 60% da pauta de exportações brasileiras, enquanto que os produtos de maior conteúdo científico-tecnológico e valor agregado são supridos pelos países asiáticos, que sabem o quão importante são esses bens para o seu desenvolvimento.

d) Pressões recorrentes sobre o equilíbrio externo – A apreciação cambial, decorrente da liberalização dos fluxos de capitais, gera perda de competitividade externa e isso pressiona o balanço de pagamentos (registro contábil de todas as transações econômicas e financeiras do Brasil com outros países), exigindo mais aumentos das taxas de juros para manter atrativa a economia brasileira. Mas isso conduz novamente a mais apreciação cambial e, em seguida, a mais aumento das taxas de juros, num círculo vicioso que se reproduz endogenamente.

e) Intensificação da concentração funcional e setorial da renda – O atual modelo econômico subordinado à lógica e natureza da acumulação financeira em mercados globais utiliza de forma recorrente os aumentos de taxas de juros, numa economia onde esta variável já se encontra muito acima dos padrões internacionais. A elevação dos juros transfere renda dos devedores (em geral assalariados) para os credores (detentores de capital e classes rentistas, proprietárias de títulos da dívida pública), aprofundando ainda mais a concentração funcional da renda em favor dos lucros. Além disso, juros mais altos também promovem a transferência de renda das atividades produtivas para as empresas financeiras, contribuindo para a concentração setorial da renda.

Embora a valorização e a acumulação de riquezas na órbita financeira sejam legítimas nos quadros das economias capitalistas, pois suas operações obedecem à mesma lógica mercantil que comanda as demais atividades econômicas, a financeirização elevou o poder político das classes rentistas e do sistema financeiro sobre os governos. A hegemonia das finanças privadas, subordinando as finanças públicas e influenciando as decisões de política econômica, torna-se flagrante. Basta observar como os mercados financeiros monitoram tudo, todos os passos do governo, como se a economia tivesse de se estruturar apenas ou prioritariamente para eles, e não para o mundo do trabalho, da produção industrial, da agricultura e dos demais serviços também. Além disso, as principais características institucionais do atual modelo econômico brasileiro lhes são bem vindas e contam com o amplo apoio da mídia para a sua sedimentação ideológica e perenidade.

Na medida em que a financeirização reproduz os limites estruturais do desenvolvimento brasileiro, como sair dessa armadilha econômica que conspira contra o futuro do país? A saída é difícil, mas não impossível. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que esse fenômeno e a dominância financeira que implica reproduzem-se mediante estruturas institucionais específicas. A própria forma de inserção internacional sem controles significativos sobre os fluxos de capitais e com mercado de derivativos profundo é uma componente-chave na arquitetura institucional que define esse padrão de acumulação de riquezas. A política econômica baseada no tripé superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação é outra peça que lhe é complementar e necessária à sua reprodução.

Um novo modelo ou padrão de crescimento econômico pode surgir a partir de nova institucionalidade que promova o investimento produtivo, ao garantir um ambiente macroeconômico com baixas taxas de juros e câmbio competitivo. Estudioso dos padrões de desenvolvimento econômico, o economista francês Robert Boyer percebeu uma diferença crucial: no período de prosperidade do pós-guerra (1945-1975), as finanças privadas estavam a serviço do crescimento e do desenvolvimento econômico. Na atualidade, voltam-se prioritariamente para os ganhos fáceis com operações especulativas e de curto prazo, aumentando o potencial de crise e seus efeitos destrutivos sobre a economia e a sociedade. Seriam, então, necessárias novas regras para o jogo das finanças, readequando-as às necessidades sociais e a um futuro melhor para as nações.

Miguel Bruno é coordenador na Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea, professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e professor e pesquisador licenciado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE.